publicado dia 21/10/2021

“Diante do luto, que as escolas possam convocar crianças e adolescentes para a vida”, diz Ilana Katz

Reportagem:

Selo Reviravolta da EscolaAo menos 113 mil crianças e adolescentes ficaram órfãos durante a pandemia, no Brasil. Outros tantos perderam avós, avôs, tias, professoras, amigos e pessoas próximas. No mesmo período, alguns ainda assistiram a crianças e jovens de sua idade morrerem também em decorrência do coronavírus ou serem mortos por violência ou negligência do Estado, e elas próprias podem ter adoecido. Há também os outros tipos de perda, como a do convívio social, da escola, do emprego da família, de segurança alimentar e física. Para a psicanalista Ilana Katz, a Educação deve olhar para todos esses lutos a fim de apoiar a reconstrução dos sujeitos, das escolas e de um mundo pós-pandemia melhor e mais justo para todos e todas.

Leia + Pandemia reforça a importância da atuação em rede para garantir o direito à educação

“Precisamos pensar o luto como uma demanda de saúde pública, de cuidado urgente e necessário para podermos perspectivar o começo da saída dessa crise que vivemos e para podermos produzir algo com ela. A medida número um é ter a população vacinada, mas é muito mais do que isso: é fazer nossos lutos, repensar nossas perspectivas de laço, cuidado, compromisso e responsabilidade com o outro”, disse Ilana Katz.

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, também reforçou que é preciso nos distanciarmos da “patologização dessa tristeza”. Destacou também que as crianças, jovens e adultos atravessaram a pandemia de maneiras muito diversas, de acordo com seu acesso aos direitos e à proteção social, de seu marcador de classe, raça e gênero, e detalhou como as diferentes experiências de luto impactam as infâncias.

“Elas deixam saber quanto a vida delas vale pouco para o outro quando não são protegidas, quando não moram em uma cidade que cuida delas, e isso tem um efeito direto sobre a relação delas com a morte e com o jeito de viver”, explica a psicanalista. Confira a seguir os principais trechos da conversa:

Centro de Referências em Educação Integral: Como a pandemia impactou diferentes crianças, jovens, professores e famílias de acordo com as diversidades e desigualdades do território e da sociedade brasileira?

Ilana Katz: Existe a crise sócio-sanitária que é comum ao mundo e existem as escolhas de gestão dessa crise. No Brasil de Bolsonaro, parece um erro estratégico chamar de desgoverno essa gestão, porque é um governo que faz escolhas certeiras de seus princípios, do que quer sustentar, e isso define as experiências vividas.

Todo mundo viveu perdas decisivas, isso é comum a todos. Mas o modo de experimentar e lidar com o sofrimento depende do tipo de acesso a direitos e à proteção social, do recorte de classe, raça e gênero, que no Brasil são marcados por diferenças absurdas.

De forma geral, uma condição importante foi a supressão de um recurso fundamental para lidar com a vida que é a alternância entre ambiente público e privado, familiar e coletivo, estar com a mãe e estar sem a mãe, e que tem efeitos muito mais abrangentes do que estar em casa ou não. A alternância de certa forma rege o investimento que fazemos nas coisas, nas pessoas e nas relações e, sem ela, perdemos a condição de administrar os investimentos nas pessoas e nos nossos objetos. 

Para as famílias que puderam cumprir o isolamento social, cercadas de privilégios, podendo proteger os seus e se proteger, produziu-se uma confusão com o tempo dos investimentos nas coisas e nas pessoas. Então ficamos praticamente o tempo inteiro no mesmo espaço, mas não necessariamente isso quis dizer que compartilhamos nossas experiências.

Por outro lado, as famílias que não tiveram o “privilégio” da proteção dos seus, ficaram muito expostas e desprotegidas, em uma experiência violenta de violação de direitos, que tem um efeito ruim na relação entre seus membros, desarticulando o cuidado que vinha sendo possível. 

“A escola tem muito essa direção de convocar tanto os trabalhadores da educação quanto crianças e adolescentes para o investimento na vida, porque a escola abre todo um universo para conhecer. Investimento que não deve concorrer com a perda, mas deve circunstanciar a perda, deixando um lugar para o que se perdeu e abrindo novos espaços de investimento, interesse e afeto”, diz Ilana Katz. 

Com a retirada da escola como um elemento fundamental da rede de proteção social, sobretudo para as crianças, foi muito mais do que não acessar os conhecimentos produzidos pela humanidade. Embora isso faça parte como elemento estruturante da escola, não é o único, porque a escola também cumpre seu papel em garantir a segurança alimentar, a promoção da saúde mental e a experiência de cidadania. 

Quando isso se retira, muitos direitos são violados e vamos entendendo a centralidade que a escola assume na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, e isso para todas as classes sociais. Crianças e adolescentes também foram mostrando como a escola faz falta, como o constrangimento da relação com o outro afeta a nossa saúde mental, porque a gente vive com os outros. Cada um sofre de um jeito e todo mundo sofreu.

CR: Como as crianças e adolescentes vivenciam e processam as várias perdas e lutos enfrentados no último ano e meio de pandemia?

IK: Até julho deste ano, eram 113 mil crianças e adolescentes órfãos, fora as crianças que morreram. As crianças que vivem a morte, no Brasil sob Bolsonaro da experiência de Covid: precisamos nos perguntar de quem a gente fala, porque tem algumas formas de se viver a morte. De um lado tem as crianças que vivem a morte porque elas adoecem e, nesse caso, a coisa mais comum é que os adultos tenham a ideia de que é preciso evitar falar sobre a morte e a doença para que não fiquem pensando nisso. Esse é um erro importante, porque as crianças não se relacionam só com o que a gente fala, mas com os nossos sofrimentos, com o mundo ao redor, então é preciso conversar sobre isso.

Tem as crianças que vivem a morte de seus adultos queridos e de seus pares, e tem as que vivem a articulação desses dois fatores (o adoecimento e a desproteção social), o que também precisa ser pensado a partir da divisão de classe e do racismo estrutural, especialmente porque quando se pensa em crianças e adolescentes que morrem, existem as que morrem pelo adoecimento do corpo e as que são assassinadas. 

As crianças e adolescentes assassinados diretamente ou indiretamente pelo Estado que não as protegeu, além de escancarar toda a expressão violenta da nossa desigualdade, elas contam que a sua vida não vale, não pesa e não importa para as outras crianças que vivem sob as mesmas condições e sob os mesmos determinantes sociais, como as que estavam na kombi com a Ágatha, que estavam indo para a escola com o Marcos Vinícius. Elas deixam saber quanto a vida delas vale pouco para o outro quando não são protegidas, quando não moram em uma cidade que cuida delas, e isso tem um efeito direto sobre a relação delas com a morte e com o jeito de viver.

É por isso que os direitos da criança e do adolescente são transversais a toda e qualquer política de cuidado, porque é preciso garantir, por exemplo, que eles tenham condições de ter presentes cuidadores diretos a quem são ligados afetivamente. Assim, cuidar da criança demanda toda uma articulação territorial e inclui, por exemplo, a segurança pública de forma muito direta. 

CR: Quais dimensões fazem parte de encarar o cuidado a partir de uma perspectiva de articulação territorial?

IK: Precisamos pensar o luto como uma demanda de saúde pública, de cuidado urgente e necessário para podermos perspectivar o começo da saída dessa crise que vivemos e para podermos produzir algo com ela. A medida número um é ter a população vacinada, mas é muito mais do que isso: é fazer nossos lutos, repensar nossas perspectivas de laço, cuidado, compromisso e responsabilidade com o outro. 

Saiba mais sobre o que significa promover o acolhimento dos estudantes e a importância de cuidar também dos educadores.

Isso significa poder pensar no cuidado com a criança como transversal a toda a política, o que envolve o território e o estabelecimento de redes. Se para cuidar de uma criança é preciso uma aldeia, isso quer dizer em termos de políticas públicas uma rede de proteção e cuidado social e, portanto, precisa de orçamento. 

Isso também significa oferecer às crianças um espaço para falar disso, que possam pensar a temporalidade do luto como algo que se coloca em outro tempo, que não é depressão, que não pode ser patologizado e nem medicalizado. As crianças, os adultos, todo mundo que viveu uma perda vai entristecer e é preciso construir tempo e espaço para isso. 

E é importante que a gente possa fazer isso com os outros, que o sofrimento tenha lugar nas relações, porque sofrimento não é doença, embora ele transitive: eu falo para você que estou sofrendo e você vai contar para sua chefe, e depois a sua chefe vai vir te perguntar se eu melhorei. Isso é criar laços. Não faz você sofrer minha dor, mas faz você se enlaçar comigo para que a gente possa se cuidar. 

E também precisa cuidar dessa possibilidade no espaço público, com políticas de cuidado que incluam essa perspectiva, ao contrário de tudo que temos visto: cartilhas sobre ansiedade, estresse, que patologizam o sofrimento e a experiência da criança. 

A patologização do sofrimento cumpre papel político de individualizar para gerir: torna o problema que é coletivo em um problema individual. E aí a questão é que “aquele fulano está doente e portanto o problema é dele”, e a desresponsabilização produz formas de laço que também são adoecedoras. 

Por isso, precisamos perspectivar a dimensão do luto como um problema de saúde pública, inventando cuidado com o luto coletivamente, porque todos nós, no laço social, podemos nos responsabilizar por isso, inclusive as instituições. 

CR: Nesse sentido, qual é o papel das escolas e dos educadores em garantir tempo e espaço para o luto de sua comunidade?

IK: Precisa ter lugar no currículo, precisa ter tempo e espaço na escola, para que a gente possa falar sobre as nossas perdas todas, dos professores, dos alunos, mas não na direção de grupos terapêuticos dentro da escola. A escuta não é prerrogativa do psicólogo, porque todo mundo pode escutar. E escutar significa ouvir para saber quem é o outro, é a possibilidade de se afastar do nosso entendimento de vida para se aproximar do jeito que a vida se articula para outro sujeito. 

É por isso que trabalhamos em rede de proteção social que inclui Saúde, Educação e Serviço Social; as infâncias são muito favorecedoras do tecimento dessa rede, porque não dá para abrir mão de nenhuma ponta.

“Não temos que estar ótimos para escutar alguém, temos que estar abertos”

Mas é importante lembrar que professores e escolas também precisam de cuidado. É claro que podemos inventar respostas e as escolas e educadores têm feito isso, inventando respostas de cuidado, nos espaços que foram deixados vazios pelo Estado. As iniciativas privadas quando respeitam o funcionamento das políticas que regem os espaços também colaboram. Mas não se pode nunca romantizar essa saída na direção de abrir mão de políticas públicas que garantam condições de cuidado.

Tenho visto muitas soluções bonitas sendo construídas, a maior parte delas mostrando que a gente se cuida enquanto cuida. Não temos que estar ótimos para escutar alguém, temos que estar abertos, porque podemos recolher do outro algo que nos ajude com a nossa experiência. Também não devemos tentar substituir o que perdemos, porque isso reforça a possibilidade de patologizar. Não precisa substituir o que perdemos, pode deixar o que perdemos como perda E, não é OU, investir em outros objetos. 

A escola tem muito essa direção de convocar tanto os trabalhadores da educação quanto crianças e adolescentes para o investimento na vida, porque a escola abre todo um universo para conhecer. Investimento que não deve concorrer com a perda, mas deve circunstanciar a perda, deixando um lugar para o que se perdeu e abrindo novos espaços de investimento, interesse e afeto. 

O que é a #Reviravolta da Escola?

Realizado pelo Centro de Referências em Educação Integral, em parceria com diversas instituições, a campanha #Reviravolta da Escola articula ações que buscam discutir as aprendizagens vividas em 2020 e 2021, assim como os caminhos possíveis para se recriar a escola necessária para o mundo pós-pandemia.

Leia os demais conteúdos no site especial da #Reviravolta da Escola.

Não é crise, é projeto: reformas estruturais que reduzem o Estado restringem o direito à educação, mostra estudo

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.