publicado dia 19/08/2021

Auxílio Criança Cidadã retira verba de creches públicas e destina às privadas; entenda

Reportagem:

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) apresentou ao Congresso Nacional, em 9 de agosto, a Medida Provisória (MP) nº. 1.061, que institui o Auxílio Brasil. O programa social substitui o Bolsa Família e cria o Auxílio Criança Cidadã. Com isso, os recursos que eram direcionados às prefeituras para financiamento de instituições públicas de educação infantil, serão destinados diretamente à creches privadas por meio de um voucher. Os municípios que contavam com esse recurso previsto em lei, sobretudo no contexto desafiador da pandemia, ficarão descobertos.

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“Trata-se, como um todo, menos de um programa para garantir vagas e educação de qualidade e mais de um artifício para aumentar o valor aparente do novo Bolsa Família”, indica José Marcelino de Rezende Pinto, professor da Universidade de São Paulo (USP), especialista em financiamento da Educação.

Mônica Correia Baptista, professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concorda: “Dificilmente o valor do voucher será suficiente para assegurar um atendimento de qualidade”.

A política apresenta, ainda, outra fragilidade: o Auxílio estipula que as famílias devem estar empregadas para receber o recurso, em um contexto de recorde de desemprego no país. Segundo a Pnad Contínua, o índice de desemprego de fevereiro a abril de 2021 foi de 14,7%, o maior desde o início da série histórica do IBGE, em 2012.

“No Chile o voucher induziu à criação de um setor privado de baixo custo e qualidade”, explica o professor José Marcelino.

Experiências internacionais também revelam debilidades da política. “No Chile o voucher induziu à criação de um setor privado de baixo custo e qualidade, com escolas selecionando os alunos ou pedindo um valor extra para a matrícula, levando o país a abandonar progressivamente a política”, explica o professor da USP, que também é autor da pesquisa “Financiamento educacional na América Latina: indicadores e análise de algumas experiências”.

Aqui no Brasil, o programa será gerido pelo Ministério da Cidadania em contato direto com os estabelecimentos de ensino. Para o especialista, isso dá espaço para mecanismos de fraude. “Temos acompanhado os convênios, que são mais regulamentados, e mesmo assim tem bastante problema”. 

A Medida Provisória, que já está em vigor, ainda precisa ser analisada pelo Congresso e o Ministério da Cidadania espera que ela passe a valer em novembro próximo.

Existem alternativas

O Auxílio Criança Cidadã substitui o programa Brasil Carinhoso, vigente desde 2012, e que repassava recursos federais aos municípios para garantir vagas em creches públicas ou conveniadas. Ao longo dos últimos anos, o programa sofreu um significativo desfinanciamento. Se em 2014 foram destinados R$ 765 milhões aos municípios, em 2020, foram 7,9 milhões, de acordo com dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), o que representa uma redução de 99% de investimentos. 

“A política tinha seus limites, mas sua lógica era eficiente. Ela vinha articulada ao Proinfância, que estimulava a construção de escolas, e ao Plano Nacional de Educação (PNE). Com isso, vimos uma expansão interessante, praticamente universalizando o atendimento a 4 e 5 anos e quase atingindo a meta do PNE de cobertura da creche”, explica José Marcelino.

O programa auxiliava, ainda, a bancar os estudantes recém-matriculados na rede, uma vez que os municípios só poderiam contar com o valor adicional per capita do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) no ano seguinte.

“Ainda temos muito a melhorar, e precisa ser rápido, mas isso significaria mais recursos para a educação pública e não o esvaziamento dessas instituições. É verdade que o voucher é mais barato do que investir nas escolas públicas, mas educação de qualidade custa caro. E quando se investe nisso, a resposta é muito boa”, diz a professora Mônica.

Muito além do dinheiro: a concepção de educação e os direitos de bebês e crianças

A discussão do financiamento das creches não é apenas econômica e diz respeito, também, às concepções de educação em jogo. “As escolas têm papel fundamental em definir que sujeitos queremos formar, e as instituições públicas têm o caráter de serem pautadas por debates coletivos e construir comunidades. Por outro lado, essa proposta lança a ideia perversa de que o sujeito pode optar, o que já não será verdade, e ainda traz um individualismo perigoso, menos comprometido com a ideia de solidariedade, contribuindo para o esgarçamento social é cada um por si”, complementa Mônica Baptista.

“As escolas têm papel fundamental em definir que sujeitos queremos formar”, destaca a professora Mônica Baptista.

Não à toa, o Auxílio Criança Cidadã é lançado em um contexto: vem na mesma esteira em que correm projetos como o de regulamentação do ensino domiciliar, também conhecido como homeschooling, a tentativa de promover a escolarização inadequada da Educação Infantil por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), e ecoam ataques a professores e à educação como um todo, representados, por exemplo, pela fala do Ministro da Educação, de que a “universidade deveria, na verdade, ser para poucos”.

“O slogan desse governo, de que família educa e escola ensina é absolutamente criticável, porque cuidado e educação não se separam. Basta verificar o efeito de uma instituição de educação infantil em uma comunidade, ela é um equipamento de proteção social, de promoção de direitos, de criação de vínculos para as crianças e para as famílias. O voucher quebra essa condição. É a economia em detrimento do direito da criança, numa perspectiva que já havia sido superada na legislação, de que para criança pequena qualquer coisa serve”, finaliza Mônica. 

“Não existe mecanismo de maior redistribuição de recursos do que o Fundeb”, afirma Dorinha

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