Em Serra Grande (BA), escola valoriza saberes locais na construção de projeto político pedagógico
Publicado dia 13/11/2019
Publicado dia 13/11/2019
*Por Cecília Garcia, em parceria com Portal Aprendiz
As jangadas feitas em Serra Grande, vila do município de Uruçuca (BA), foram feitas para balançar nos mares de lá. Talhadas a partir de 13 espécies de árvore, sua engenharia é projetada para lidar com os ventos e marés específicos da região. Esse é um dos exemplos de saber local da vila, cercada por Mata Atlântica e duas áreas de proteção ambiental (APA).
“Serra Grande é a terceira biodiversidade do mundo, abriga duas APAS e está incrustada na Mata Atlântica. Como todo o resto do município, sua fonte de renda é a da cultura do cacau e também o turismo”, explica Célia Raimunda Rocha Calmon, assessora pedagógica da Secretaria de Educação.
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Para além do patrimônio ambiental, Serra Grande também se distingue pela articulação comunitária e luta pela garantia de direitos e implementação das políticas públicas.
“Antigamente, as políticas públicas nunca chegavam. Como liderança política local, ajudei a mobilizar a comunidade e fazer valer os nosso direitos. Aqui é todo mundo articulado”, explica Joselita Machado, conhecida como Dona Jô.
É nessa vila que o Centro Integrado de Educação Integral, uma escola pública 100% sustentável e financiada pelo governo está em construção. Em comunhão com as especificidades do território e dos locais, está sendo projetada com o apoio da arquiteta Bia Goulart, especialista em territórios educativos.
“A escola nasceu do diálogo com a comunidade e da necessidade de um espaço novo para se chamar de escola, para ser esse lugar que as crianças vão se educar. A escola vem dessa vocação: de diálogo com a comunidade, do querer da população”, complementa Célia.
Na construção dessa escola futura, com previsão de abertura de março em 2020, a Secretaria Municipal de Educação decidiu renovar o projeto político pedagógico (PPP), olhando com mais agudeza para as singularidades do território.
A educadora Ana Paula Zampieri, formadora e responsável pela coordenação do projeto via Centro de Referências em Educação Integral, conta que a feitura do PPP tem sido muito amparada no Plano Participativo Municipal.
“O Plano Participativo, que eles publicaram em 2012, já mostra que a comunidade de Serra Grande é muito engajada, e já vislumbrava uma escola que ainda não existia. Desde aquela época se organizavam em grupos de trabalho para pensar a questão pedagógica. A discussão não estava amortecida, pelo contrário.”
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Célia adiciona que o currículo local – tanto o que está em vigor quanto o que está sendo sonhado – já olha para a vila como um espaço diferente do resto do município. “Há um respeito pela identidade local. A gente faz uma jornada pedagógica em Serra Grande, mesmo que os professores não sejam daqui, para que se entenda o local do ponto de vista biológico e cultural.”
O projeto arquitetônico também foi construído de forma participativa. Foram formados grupos de trabalho apoiados por especialistas em clima, construção de baixo impacto e tecnologias locais, com o objetivo de que a escola seja referência em sustentabilidade e respeito a cultura e bioma local.
O projeto prevê o aproveitamento da luz solar como fonte de energia e iluminação; captação da água da chuva, tratamento e distribuição de água tratável para uso menos nobre, reduzindo o consumo de água potável; construção de coberturas que amenizam a
concentração de calor; entre outros aspectos.
O PPP é dividido então em três eixos: o de saberes – a epistemologia local, o conjunto de saberes inerentes a Serra Grande; o ambiental – que olha para a biodiversidade da região e como a comunidade se relaciona e trabalha com ela; e por fim, o patrimônio cultural, as diversas culturas que perseveraram na vila.
Para exemplificar, Ana Paula rememora a questão das jangadas – embarcações que em Serra Grande tem feitura própria.
“Esse conhecimento tem sido acumulado ao longo dos anos. Quando você vê um jangadeiro construindo uma jangada daquele jeito, com toda a configuração física, adequada para a direção do vento, é incrível. Fizemos encontros com a comunidade local, e um rapaz nativo ficou emocionado de ver que seu conhecimento como jangadeiro apareceu no PPP, afirmando que aquilo precisava ser visível para não ser perdido.”
A mesma corrida contra a perda dos saberes acontece quando se fala em plantas medicinais – também presentes no PPP:
O PPP do Centro Integrado de Educação Integral é dividido em três eixos: o de saberes – a epistemologia local, o conjunto de saberes inerentes a Serra Grande; o ambiental – que olha para a biodiversidade da região e como a comunidade se relaciona e trabalha com ela; e o patrimônio cultural, as diversas culturas presentes em Serra Grande.
“Quando a gente fala de plantas medicinais, a comunidade imediatamente se reconhecesse e começa a dar exemplos das práticas das famílias. Muitas das doenças são curadas por uma diversidade de plantas da região. Eles também reconhecem que esse conhecimento precisa ser passado para gerações seguintes. Por que não fazê-lo na escola?.”
Jô também aponta a necessidade de se passar esse conhecimento adiante: “Ainda tem muitos mestres, erveiras e parteiras na nossa região, mas esse conhecimento não está sendo repassado.”
Com uma faixa generosa de Mata Atlântica e duas áreas de proteção ambiental, Serra Grande possui culturas que dependem do meio ambiente para sobreviver, como as caiçaras e marisqueiras. Em outubro e novembro deste ano, Serra Grande não escapou das grandes e ainda insolúveis manchas de óleo que apareceram na extensão litorânea brasileira.
Jô, que foi uma das primeiras voluntárias a chegar na praia, comenta: “na primeira semana, bateu o desespero e corremos para as praias sem proteção nenhuma. Não tinha ou eram EPIS [Equipamentos de Proteção Individual] errados. Resultado? Muita gente doente, como foi o meu caso. Ainda não medimos os reais impactos de tudo isso. Já sabemos que primeira consequência é a fome que já ronda os pescadores. É medonho saber que praias tão bem conservadas estão cheias de óleo na areia.”
Para Célia, os efeitos teriam sido piores se as pessoas não tivessem a consciência ambiental já incrustada no bojo da comunidade. “As pessoas sabem do valor do lugar que vivem, do patrimônio ambiental e cultural de Serra Grande, e prontamente se articularam.”
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A assessora acredita que o desastre é um motivo ainda mais forte para que a biodiversidade local faça parte das discussões que rodeiam a escola e a comunidade.
“Trabalhamos com notícias, manchetes, dentro das escolas. Os estudantes se manifestaram, fizeram trabalhos, emitiram a opinião deles. Muitas das crianças foram porta-vozes do conhecimento para que seus pais não se arriscassem. É o lugar onde eles vivem, a fonte de renda, negócio da família deles e a escola não podia fechar os olhos ou fazer de conta que isso não está acontecendo.”