publicado dia 26/02/2018
Meu aluno fez um comentário discriminatório. E agora?
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 26/02/2018
Reportagem: Ingrid Matuoka
Em uma quadra de esportes da escola, os alunos jogam futebol quando um grita para o outro: “macaco!”. O que um professor pode fazer, de imediato, diante de um comentário como este? Na Escola Projeto Âncora, esse episódio desencadeou uma série de ações para combater a discriminação na escola. A primeira delas, conversar.
Leia + Alvos de discriminação e exclusão, alunos LGBTs contam o que esperam da escola
O jogo foi interrompido e todas as crianças sentaram em roda, conta o professor do Âncora, João Paulo Santa Bárbara: “o menino ofendido contou como se sentia ao ouvir isso, chorou e foi ouvido. Falamos dos sentimentos que isso gerou nele, e também o que o garoto que ofendeu estava sentindo quando falou, de onde veio esse comentário e o que ele significa”.
Muitas vezes, os preconceitos são reflexos de comportamentos e falas que as crianças testemunham em suas próprias famílias e outros ambientes de convívio
O professor explica que essas são algumas das questões que levantam, sempre que algo semelhante ocorre, para tentar entender e resolver a situação. “Tentamos pensar juntos, com os envolvidos ou a turma toda, o que aconteceu para que chegassem a esse ponto, de onde vieram essas percepções e comentários, e sempre que necessário recorremos às famílias”, diz.
Para Eugenia Portela de Siqueira Marques, docente da faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados, muitas vezes, os preconceitos são reflexos de comportamentos e falas que as crianças testemunham em suas próprias famílias e outros ambientes de convívio.
“Para combater a discriminação, seja ela por raça, sexualidade, origem, o que for, não pode haver silenciamento nas práticas pedagógicas ou no currículo. Também não podemos deixar que essas violências sejam vistas como meras brincadeiras. A escola não pode deixar passar”, ressalta a professora, que é também coordenadora do Grupo de Trabalho Educação e Relações Étnico-Raciais da Anped, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.
É por meio da ação coletiva que a Escola Projeto Âncora procura enfrentar as discriminações e bullying no espaço escolar. Das crianças, partiu a vontade de criar um grupo de mediação de conflitos, liderado por elas mesmas e com o apoio dos educadores.
Esse grupo cria regras sobre como cuidar das pessoas para que elas não pratiquem e nem aceitem sofrer discriminações e bullying na escola ou fora dela. Para isso, fazem intervenções, projeções de filmes, sugerem textos, visitam lugares, chamam pessoas e já até fizeram intervenções com familiares.
O professor João Paulo relembra certa vez em que duas meninas conduziram uma conversa com o pai de um garoto que estava fazendo bullying com outro menino. Sentaram todos juntos, explicaram e refletiram sobre o que estava acontecendo e por que aquilo precisava parar. O pai, ao se deparar com a perspectiva das próprias crianças, abriu-se e entendeu a situação.
“O diálogo entre as crianças funciona porque eles estão na mesma situação e passam por isso o tempo todo”, diz João Paulo. “Nós, adultos, temos a tendência de dar sermão, falar de um jeito excessivamente elaborado, que não chega para as crianças de uma maneira tão direta quanto outra criança conversando com ela”.
Todas as ações de enfrentamento à discriminação que ocorrem em uma escola devem, sobretudo, estar amparadas por uma gestão democrática e um projeto político pedagógico (PPP) e políticas educacionais orientadas pela valorização da diversidade, lembra a professora da Universidade Federal da Grande Dourados.
Além da Constituição de 1988, existem outras leis específicas que respaldam o combate à intimidação sistemática e a discriminação dentro da escola, como a Lei 13.185 de 2015, que trata diretamente do bullying e a Lei 10.639 de 2003, para o ensino sobre as relações étnico-raciais.
Todas as ações de enfrentamento à discriminação que ocorrem em uma escola devem, sobretudo, estar amparadas por uma gestão democrática e um projeto político pedagógico
“É fundamental que quaisquer ações para deter violências na escola tenham um respaldo muito claro no PPP e na gestão, para evitar medidas isoladas que só são tomadas quando acontece um fato. A secretaria de Educação também tem a obrigação de estar atenta às necessidades das escolas e professores neste quesito”, esclarece Eugenia Marques.
Ela ressalta ainda que a formação inicial dos docentes é vital para que eles cheguem às escolas cuidadosos sobre o comportamento dos alunos. Contudo, há ainda uma grande parcela de professores que não tiveram discussões sobre racismo, discriminações e preconceito na formação inicial e carecem de formação continuada no assunto.
“Temos um número significativo de professores que foram formados sob a ótica do silenciamento ou do mito da democracia racial, que acham que certos xingamentos e violências não passam de brincadeira de criança”.
Em suma, diz a professora Eugenia Marques, “o que a escola precisa fazer para combater a discriminação é trabalhar na perspectiva de mostrar o que temos de forte por termos diferenças e não silenciar diante de nenhuma violência, pois não tolerar a discriminação é o primeiro passo para caminhar em direção ao respeito”.
João Paulo, da Escola Projeto Âncora, defende que o professor é responsável por intervir nessas situações imediatamente. Sem esse cuidado, diz, não é possível garantir uma educação integral.
“Respeitar, entender que existem visões diferentes, cuidar do outro, compreender limites e se relacionar com o mundo fazem parte da aprendizagem, e isso é muito mais importante do que o conhecimento formal”, finaliza o professor.
Leia também