Como trabalhar com bonecos para uma abordagem pedagógica multicultural e inclusiva
Publicado dia 31/05/2017
Publicado dia 31/05/2017
Brincar está longe de ser uma atividade frívola. É na interação proporcionada pelas brincadeiras que as crianças exploram o mundo, aprendem a lidar com os outros e descobrem sobre si mesmas.
Além de estimularem a imaginação, os brinquedos são importantes objetos para a construção do imaginário e repertório dos pequenos, estimulando a cognição, criatividade, entre outras habilidades.
Leia + Como trabalhar com o folclore em sala de aula?
Por meio dos bonecos, por exemplo, as crianças projetam emoções, simulam situações e ensaiam comportamentos próprios e de pessoas do seu convívio. São, portanto, instrumentos que as ajudam a expressar sentimentos, compreender o cotidiano e, até mesmo, construir a identidade.
Por essas razões, é essencial que os bonecos reflitam a diversidade sociocultural na qual as crianças estão inseridas. Quanto maior for o repertório de culturas, etnias e situações representadas pelos bonecos, maior também será a chance de identificação simbólica do sujeito com o objeto e suas oportunidades de desenvolvimento integral.
Além disso, a possibilidade de brincar com bonecos diversificados favorece atitudes mais inclusivas e o respeito às diferenças desde a primeira infância, já que é na interação lúdica com essas representações da figura humana que as crianças se colocam no lugar do outro.
Sabendo disso, o ateliê Preta Pretinha, localizado na Vila Madalena, em São Paulo, confecciona artesanalmente bonecas de pano que estampam a diversidade da população. Bonecas negras, indígenas, orientais e muçulmanas dividem o espaço com bonecos com síndrome de Down, deficiência auditiva, visual, cadeirante, muletante, entre outros.
“Na minha infância, procurei sempre bonecas negras, que fossem uma extensão da minha família, e quase nunca as encontrei. Quando havia algum modelo nas lojas, era sempre estereotipado, com olhos esbugalhados, vestido de chita, a noção pejorativa da ‘nega maluca’”, conta Joyce Venâncio, sócia do ateliê ao lados das irmãs Lúcia e Cristina.
Quanto maior for o repertório de culturas, etnias e situações representadas pelos bonecos, maior também será a chance de identificação simbólica do sujeito com o objeto
O quadro incentivou que as irmãs começassem a produzir seus próprios modelos e não demorou muito para que o espaço fosse procurado por educadores, fonoaudiólogos, pediatras, psicólogos, entre outros profissionais ligados à infância. “As bonecas são instrumentos potentes para promover o debate da diversidade e inclusão em sala de aula”, explica Lúcia.
Como parte desse compromisso social, em 2008, as irmãs fundaram o Instituto Preta Pretinha, organização sem fins lucrativos, com o objetivo de viabilizar ações de educação em quatro eixos: etnias, gênero, fases do desenvolvimento e pessoas com deficiência. Além disso, desde 2015, a loja passou a ser reconhecida como ponto de cultura da cidade de São Paulo.
Se é no brincar que os pequenos desenvolvem afeto e carinho, ao brincar com bonecos que representam as pessoas em sua diversidade também estão sendo educados para o respeito e uma infância livre de julgamentos.
“Outro ponto importante é que quando a criança negra, deficiente física, se vê representada em um brinquedo há um resgaste da sua autoestima, uma valorização da sua identidade”, explica Joyce, lembrando como a sua primeira boneca negra, confeccionada pelas mãos da avó, foi importante para seu empoderamento.
Em novembro de 2016, o Sesc Santo André utilizou as bonecas para compôr a exposição “O meu cabelo é bom” em celebração ao Dia da Consciência Negra. Na mostra, 33 bonecas de pano com diferentes penteados afros personificaram a beleza do cabelo crespo e suas manifestações culturais como turbante, tranças e afins com o objetivo de valorizar a identidade, beleza e autoestima negra.
“Os efeitos foram muito perceptíveis. Jovens que usavam o cabelo preso, alisado ou coberto por boné, saíram de lá com vontade de revelar seus fios crespos, tendo orgulho deles”, conta Joyce.
Buscando fomentar essa relação, o Centro de Referências em Educação Integral reuniu alguns exemplos de atividades desenvolvidas por educadores que valeram-se de bonecos diversificados e inclusivos para trabalhar o respeito e a autoestima no cotidiano das escolas.
Na CEI Jamir Dagir, em São Paulo, os bonecos integram o Projeto Identidade, iniciado em 2016, sob a iniciativa das educadoras Rosana Cordeiro e Vanessa Artes. Com o objetivo de quebrar paradigmas e preconceitos, a atividade coloca um boneco para compor a turma e propõe que as crianças o levem para casa nos fins de semana e feriados.
Em 2016, o “novo colega” era um boneco negro. Este ano, o projeto continua, desta vez, com uma boneca negra. “Os alunos são pequenos, não possuem preconceitos. Mas os pais sim. Creio que a tensão que deverá aparecer decorrerá, principalmente, do fato dos alunos meninos terem que brincar com uma boneca”, conta Rosana.
Se a hipótese se concretizar, as educadoras aproveitam o ensejo para falar com os pais sobre a importância de desconstruir os estereótipos de gênero nas brincadeiras. “Falamos sempre como a menina pode brincar de carrinho e menino, de boneca. Afinal, os meninos vão ser pais também e podem brincar de cuidar”.
Nomear os bonecos, atribuindo-lhes características e integrando-os à rotina da escola, pode ser também uma maneira de aproximar os alunos empaticamente de alguns temas importantes como a discriminação e o bullying.
“É comum as crianças falarem em nome do boneco sobre situações que acontecem com elas próprias. Falar sobre como o boneco deve se sentir rejeitado, excluído, confuso, quando na verdade estão falando sobre seus sentimentos. Nesta perspectiva, os bonecos são gatilhos para que a discussão aconteça”, explica Joyce.
Entre as discussões suscitadas, aparecem também temas que para o universo infantil soam abstratos ou distantes como orientação sexual e diferentes religiosidades. “Temos o bonequinho que representa a comunidade LGBT e outros que representam diferentes culturas como a boneca muçulmana que, em tempos de intolerância, se fazem muito relevantes”.
Além disso, um dos bonecos mais sensíveis do ateliê é um modelo careca usado, principalmente, para representar crianças em tratamento para doenças como o câncer infantil. “Tinha esse menino que estava fazendo quimioterapia, ia ficar carequinha e estava tendo muito dificuldade para aceitar. Com o boneco como suporte, conseguiu lidar melhor com suas emoções, como se ele tivesse um parceiro na jornada”.
Na Escola Castanheiras, em Santana de Parnaíba (SP), os bonecos compuseram um projeto interdisciplinar voltado para todas as etapas de ensino que teve como tema, neste ano, as mulheres na literatura. “O projeto envolveu exposições de trabalhos, oficinas, debates e também montamos uma instalação homenageando a escritora Ana Maria Machado e sua obra Menina Bonita do Laço de Fita, que tem como protagonista uma menina negra”, conta Lucia Paranhos, coordenadora da biblioteca. Assim, uma bonequinha com essa característica ajudou a compor o cenário e encantar as crianças para o universo literário.