publicado dia 26/06/2024

“O que vivemos foi um sonho”: Cieja Campo Limpo resiste e enfrenta barreiras para atender jovens e adultos 

Reportagem:

🗒️ Resumo: Inovador e reconhecido internacionalmente, o Cieja Campo Limpo teve alterações desde o começo do ano, devido ao fechamento de salas e mudanças na sua organização escolar. Entenda a proposta pedagógica e os impactos para professores, professoras e estudantes.

“Antes, a gente dizia que estava na Sala da Liberdade, na Sala do Respeito. Agora, as salas se chamam A, B, C. Para quem não tem conhecimento nessas coisas de letras, ficou uma confusão”, compartilha Vanderlucia da Silva Pereira Gomes, 52 anos, sobre uma das transformações ocorridas no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos Campo Limpo (Cieja CL), em São Paulo (SP), desde o começo de 2024.

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O exemplo da estudante sintetiza o desmonte que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) como um todo já enfrenta no Brasil. A fim de se adequar às legislações, processos importantes para professoras e estudantes da escola, reconhecidos e premiados no Brasil e internacionalmente, são deixados de lado. 

Conheça a edição 2023 do Projeto Político Pedagógico (PPP) do Cieja Campo Limpo. A atual está em reescrita.

“O que nós vivemos foi um sonho da Educação”, diz Diego Elias, coordenador geral do Cieja. “Agora que estamos modificando a proposta, vimos que várias das nossas decisões realmente faziam sentido, o que falta é caminho legislativo para isso”, explica.

Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação que acompanha o trabalho da escola, lembra que a legislação não é imutável. “O Cieja Campo Limpo foi criando um Projeto Político Pedagógico (PPP) que dialoga com a realidade daqueles estudantes. É uma oportunidade de aprender com essa experiência, que dá respostas para um problema histórico da EJA: a evasão”, analisa Pilar.

A proposta do Cieja Campo Limpo

O Cieja Campo Limpo está localizado na periferia sul da cidade de São Paulo, em região de alta vulnerabilidade social. O sobrado florido e cheio de grafites, que corta um quarteirão inteiro, possui salas amplas e iluminadas onde jovens, adultos e idosos estudam em pequenos agrupamentos. Há uma biblioteca comunitária, um ateliê, espaços para grandes rodas de conversa e para praticar esportes. 

No começo dos anos 2000, a educadora Eda Luiz, pupila de Paulo Freire (1921-1997), assumiu a gestão da escola e colocou os ensinamentos do Patrono da Educação Brasileira em prática.

Portas abertas, mesas conjuntas, metodologias diferenciadas e gestão democrática. Trabalho intersetorial pela garantia de direitos dos estudantes, inclusão de todas as pessoas, currículo conectado ao território e suas entidades, com saídas culturais e pesquisas de campo, a fim de garantir que o conhecimento seja útil para a vida daquelas pessoas.

Festas, palestras e eventos com artistas, pensadores e lideranças da comunidade, do Movimento Negro, de aldeias indígenas, se tornaram frequentes. Prêmios, pesquisas, reportagens e uma série de iniciativas se voltaram para a escola, reconhecida internacionalmente por seu pioneirismo.

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A escola fica localizada em um ponto alto do bairro Capão Redondo. Mesmo a quilômetros de distância é possível ver este grafite, que dá o tom da proposta da escola: para todos e todas.

Crédito: Ingrid Matuoka

“É uma escola que inova com sucesso e inspira outros trabalhos. Ela tem um olhar muito avançado em relação às pessoas com deficiência, à valorização das diversidades e à organização de tempos e espaços, que dialoga com a vida real dos estudantes”, observa Pilar.

A fim de atender ao aumento constante da procura de vagas e às demandas de seus estudantes, o Cieja alterou sua estrutura curricular e horários, à luz da Constituição Federal e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Os estudantes passaram a poder estudar pela manhã, tarde ou noite, de acordo com sua rotina familiar e de trabalho. As aulas passaram a ter 2h15 de duração e as disciplinas foram agrupadas em áreas do conhecimento. 

“Quem trabalha em hospital e outros lugares com turnos variados, conseguia acompanhar”, afirma Diego, eleito sucessor de Eda Luiz em 2018. Geógrafo, Diego nasceu e cresceu no Capão Redondo, bairro onde está a escola.

A cada mês, as turmas faziam uma imersão em uma das áreas. A partir de um tema gerador, desenvolviam uma sequência didática, com metodologias investigativas, para criar uma apresentação para toda a escola no final do mês.

Essa forma de organização interdisciplinar demandava e permitia que os professores avaliassem a semana que passou e planejassem a seguinte de forma coletiva, sempre às sextas-feiras. A atenção também era dedicada a adequar o plano de aprendizagem de cada estudante às suas particularidades.

“O meu histórico escolar diz que eu cursei até a 4ª série, mas eu nunca estudei, porque trabalho desde criança. Se a escola não tivesse adaptado isso, eu não teria conseguido voltar a estudar”, conta Vanderlucia. 

Essa é a realidade de ao menos 9,3 milhões de brasileiros, que são analfabetos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sem contar os alfabetizados que não concluíram os estudos.

“Paulo Freire já dizia que com analfabetismo, não temos democracia. Estamos em uma crise social em que o subemprego está sugando as pessoas, que têm cada vez mais dificuldade de voltar e ficar na escola”, aponta Diego.

Dos poucos que retornam à escola, muitos se deparam com a mesma forma de funcionar e de abordar os conhecimentos que fez com que elas fossem excluídas em primeiro lugar. “Se temos uma via institucional de dar possibilidades dessas pessoas transformarem as suas vidas e as das próximas gerações, ela não pode só ofertar uma Educação bancária. Ela precisa gerar reflexões que façam sentido, que permitam as pessoas se posicionarem como seres humanos de direitos”, diz Diego.

Os impactos das mudanças no Cieja Campo Limpo

O histórico de autonomia para decisões de como organizar os tempos, espaços e conhecimentos foi alterado significativamente, com a diminuição das turmas. 

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Para readequar a forma de funcionamento da escola, o diretor propõe criar um grupo de trabalho entre a escola e a Secretaria. Procurada pela reportagem do Centro de Referências em Educação Integral, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo preferiu não comentar o ocorrido.

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Por toda a parte, plantas, grafites e frases, todas escolhidas e desejadas pelos próprios estudantes.

Crédito: Ingrid Matuoka

Roberto Catelli Jr., doutor em Educação pela USP e coordenador de Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa, reforça a importância de alterar a legislação para privilegiar as adaptações à comunidade. 

“Essas unidades têm o potencial de serem centros de inovação pedagógica, porque correspondem à realidade, não ao que está no papel. É urgente reconhecer que elas produzem conhecimentos e precisam de legislação própria”, defende.

Enquanto isso não avança, muitos professores e estudantes deixaram a unidade. “A gente tinha um professor por mês e dava tempo de aprofundar. Agora troca a cada 45 minutos, que não dá nem tempo de corrigir a lição. Se eu, com 52 anos, estou com esse problema todo para me adaptar, imagina meus colegas de 70, 80 anos”, diz Vanderlucia.

Para a professora Ana Karina Manson, que leciona na escola há 17 anos, o novo esquema de horários dificulta cultivar um ambiente que incentive os estudantes a se sentirem seguros para aprender e participar. 

“Temos nos reconstruído para não deixar de oferecer ao estudante aulas de qualidade, mas é um impacto muito grande. A Educação precisa acontecer de verdade, não só para constar em um documento. É uma pena que eles tenham índices para medir tanta coisa, mas não a transformação na vida dos estudantes”, diz Ana Karina. 

Na falta de meios oficiais para dar tal medida, Vanderlucia deixa seu testemunho: “O Cieja é alegre e festeiro, para quem está entrando não querer sair, para as pessoas não desistirem de escrever o nome. Muitas professoras foram embora desde o ano passado, mas eu continuo lá, honrando o que elas me ensinaram e seguindo em frente, porque o Cieja é um lugar onde a gente aprende de verdade”, diz.

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