publicado dia 16/06/2016
“O aumento da oferta da pré-escola não garante sua universalização”
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 16/06/2016
Reportagem: Ana Luiza Basílio
Inserir 600 mil crianças de 4 e 5 anos na pré-escola. Esse é o desafio que a Educação Infantil deve enfrentar para cumprir o previsto na meta 1 do Plano Nacional de Educação (PNE). A seis meses do término do prazo dessa meta, no entanto, a única garantia que se tem é que ela não será alcançada.
Convidada pelo Centro de Referências em Educação Integral para repercutir esses e outros desafios da agenda, a coordenadora da Coordenação Geral de Educação Infantil (Coedi) do Ministério da Educação (MEC), Rita Coelho, coloca que pesa sobre o descumprimento questões como volume de financiamento e capacidade de gestão dos municípios.
Ela também entende que para equacionar esse direito são necessárias outras políticas para além da Educação Infantil, já que o desafio da universalização da pré-escola está ligado ao combate à desigualdade social do país. Hoje, quem não consegue acessar esse direito são as crianças que vivem em zonas rurais – incluindo as indígenas e quilombolas – ou nas periferias dos grandes centros urbanos. Assim, afirma Rita, não basta apenas aumentar o número de vagas na Educação Infantil, já que, para que essas crianças possam de fato ocupar esse espaço, é necessário articular essa oferta com outras políticas sociais.
Confira a entrevista completa:
Rita Coelho: É um papel muito importante, considerando as características do desenvolvimento nessa faixa etária. Esses primeiros anos de vida são essenciais do ponto de vista da formação humana. Além disso, a Educação Infantil é o primeiro espaço coletivo, de vida pública e de interação com outros adultos e crianças. Ela deve ter entre os objetivos de aprendizagem respeitar os direitos das crianças. Ao mesmo tempo, ela é uma forma institucionalizada e profissionalizada de organizar essas mediações, o que é um papel dos adultos, sobretudo quando elas começam a conhecer a si e aos outros, a se expressarem, a brincarem. Nessa faixa da vida, a educação – seja ela familiar ou como um processo de socialização amplo – é muito importante. No caso da educação escolar, estamos falando de um dever do Estado. Então, ela se diferencia das outras formas de educação, principalmente porque é institucionalizada, coletiva, profissionalizada, com intencionalidades planejadas para o desenvolvimento da criança.
RC: Nosso percentual médio de atendimento hoje é em torno de 84% da população. O desafio da universalização da pré-escola é muito ligado à desigualdade social do país. Quem não consegue acessar esse direito hoje é a população moradora do campo, indígenas, quilombolas e os das periferias dos grandes centros. Então, não adianta apenas você aumentar a oferta de vagas. Mesmo assim, pode ser que não ocorra a universalização. É preciso direcionar esse crescimento para algumas regiões e populações mais desprivilegiadas. Temos um desafio de expansão? Temos. Mas ele não é o maior; o maior é garantir a equidade no acesso, a igualdade de condição para as crianças mais pobres, vulnerabilizadas. Esse é o grande desafio da pré-escola.
RC: Essa é uma discussão que nós precisamos fazer, na qual o governo federal tem uma responsabilidade grande. As próprias diretrizes curriculares, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e a Constituição Federal garantem o respeito a essa diversidade, à especificidade das identidades culturais. Por outro lado, isso não pode significar a flexibilização das características identitárias da Educação Infantil. Não posso oferecer um programa de brincadeiras, por exemplo, ou um programa de desenvolvimento de literatura infantil como equivalente ao direito à Educação Infantil.
Então, que formato é esse, que ajustes são esses que vamos fazer para a população do campo, por exemplo, em termos pedagógicos e de formato? Lembrando que essas populações são dispersas, de regiões com características muito desafiadoras, como a amazônica ou o semi-árido. Entretanto, em nome de ajustar a Educação Infantil a essas realidades, não podemos prescindir de professores habilitados, de propostas pedagógicas sistematizadas, de financiamento e da frequência sistemática das crianças. O Brasil precisa de debate, de pesquisa, de interlocução com essas populações para construir essa adequação. É um grande desafio. Essa escola que fazemos hoje, com jornada de até nove horas e um mínimo de 60 alunos por escola, por exemplo, não atende a realidade do campo.
A segunda diferença é que o atendimento na creche é mais complexo, não é só uma questão de financiamento, mas uma complexidade de gestão. Atender bebês tem especificidades, características muito distintas de atender crianças de 4 a 6 anos, que já falam, andam, fazem atividades sozinhas. São desafios diferentes tanto na natureza do direito – pois a creche é uma opção da família – quanto na complexidade do atendimento e no volume do financiamento. Numa pré-escola eu posso ter 20, 25 crianças por um agrupamento; num berçário eu não posso ter mais do que seis, oito crianças por um professor.
RC: Não vamos cumprir, isso temos clareza. A gente monitora a meta nacional de acordo com a média nacional. Então, tem município que atende mais de 100% porque atende população de município vizinho e acaba compensando. Agora, dizer que todos os municípios brasileiros vão universalizar a pré-escola até dezembro deste ano, está claro para nós que não conseguiremos. Temos avançado bastante, mas não alcançaremos. Há um grupo significativo de municípios que já universalizaram a pré-escola, mas temos municípios que não atendem nem 60%. Não vamos atingir como meta municipal. Aí é a questão das metas muito ambiciosas. Acho importante ter uma meta que puxa para cima, mas também tem que pesar os dados, o volume de financiamento, a capacidade de gestão do município. A parcela que não conseguimos universalizar não se equaciona só com educação, precisamos enfrentar outras políticas relacionadas à desigualdade social.
RC: Olha, é até bastante claro no sentido de ter exemplos de outros países e até de outros municípios, mas dizer que isso está pactuado no governo não está. Nesse sentido, temos recentemente aprovado o Marco Legal da Primeira Infância que sinaliza essa questão da intersetorialidade, da atuação de outros ministérios, como a Cultura, o Desenvolvimento Social, a Cultura, da Justiça, Direitos Humanos. É uma questão mais abrangente. Tem famílias que não sabem desses direitos e outras sabem e ainda não os têm assegurados. É preciso uma política mais ampla.
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RC: O desafio da formação do professor, do financiamento e da gestão municipal. Não basta ter dinheiro e ter gestão, se não tiver um professor formado que assegure uma qualidade nesse atendimento. Não é só vaga que é universalizar. Universalizar o direito à educação infantil não implica em garantir apenas uma vaga. É preciso que a gestão municipal entenda essa política entre as suas prioridades e reconheça a sua identidade própria que não é igual a do Ensino Fundamental e que nem é de assistencialismo e filantropia. Esse é um desafio importante para a gestão.
RC: Na verdade, a qualidade implica numa mudança de concepção da nossa sociedade sobre quem é essa criança. A sociedade e o sistema educacional precisam entender que essa criança é competente, se coloca hipóteses e vive experiências criativas desde bebê. Então, a qualidade da Educação Infantil passa por você (sociedade, sistema educacional, escola, professor) enxergar essa criança de outro modo.
Segundo, passa por uma mudança importantíssima de paradigma sobre o que é educar nessa etapa da vida. Nós tentamos enfrentar isso na construção da Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Não adianta dar conteúdo para criança nessa etapa, ela não aprende assim, mas sim a partir do que determinado conteúdo significa para ela, ou seja, se há essa relação de construção de significado. Então, tem uma mudança também na concepção do que é educar, sobretudo dentro do sistema educacional. Educação infantil não se organiza por áreas do conhecimento, por disciplinas, por conteúdos disciplinares, embora estejam presentes. Uma criança aprende a andar sem saber nada de Física, de movimento, de equilíbrio; aprende a falar sem saber nada de Gramática, percebe?
Essa mudança na compreensão do processo educacional de uma criança pequena é importantíssima e está intimamente ligada à qualidade e à formação de professor. Claro que, em decorrência dessas concepções, nós vamos ter outros padrões de estrutura de espaço, de mobiliário, de materiais pedagógicos e de organização de acervo para bebês.
Hoje, o maior desafio do Brasil não é a expansão, isso é uma questão de tempo e já encontramos caminhos para expandir essa política. Já sabemos que temos que fazer busca ativa, que temos que ampliar a rede, construir novos equipamentos. Qual nosso desafio? É a qualidade e isso ainda está em disputa dentro do próprio sistema educacional. Por isso que na minha avaliação, o grande desafio é o que eu chamei de uma agenda de qualidade para a Educação Infantil.
RC: Estão relacionadas à concepção da educação, a forma de organizar as crianças. Ainda há uma tendência de um questionamento à institucionalização da creche: precisa de professor, precisa ter carreira e formação para trabalhar na creche? Isso ainda é muito questionado no Brasil pelos próprios municípios que fazem concurso sem exigência de formação. São concepções e incompreensões que estão sendo disputadas na nossa sociedade. Embora a legislação tenha equacionado isso, na prática, não está equacionado.
RC: A gente não dá aula, a gente interage com a criança, faz mediações, levanta hipóteses. A Educação Infantil tem que garantir processos de formação de identidade do sujeito. Seu grande papel é contribuir, assegurar, por meio de princípios éticos (autonomia, responsabilidade, solidariedade e o bem comum), políticos (respeito à ordem democrática, direitos de cidadania) e os estéticos (sensibilidade, criatividade, ludicidade, liberdade de expressão das diferentes manifestações artísticas e culturais). O papel da Educação Infantil é contribuir, possibilitar, garantir uma formação humana desse sujeito a partir desses princípios.
Na verdade, isso vai significar uma outra organização do cotidiano infantil, uma outra concepção de currículo com essa centralidade nas inteirações e nas brincadeiras, uma compreensão da indissociabilidade do educar e cuidar, com centralidade nas crianças, o que pressupõe uma atitude de acolhimento, a singularidade dos bebês, das crianças, dos próprios professores e dos outros adultos envolvidos, como as merendeiras, os auxiliares, o secretário da escola, o vigia etc.
RC: Pouquíssimo. O que as pesquisas mostram é que na formação esses conhecimentos e conteúdos necessários para a Educação Infantil têm um percentual mínimo, seja na Pedagogia, ou na Licenciatura. Esse é um grande desafio no qual o Ministério da Educação (MEC) tem um papel importante. A formação do professor não incorporou as necessidades e as demandas de uma docência com bebês pequenos e crianças, mas é ainda muito voltada para o Ensino Fundamental.
RC: Dentro dessa disputa ou desse processo de construção que viemos trilhando há contradições. Com certeza a discussão sobre alfabetização e Educação Infantil é uma delas. Esta tem um papel importante e específico na formação do leitor, do escritor, na relação da criança com a leitura e a escrita, e isso é inquestionável. Mas que este papel se reduza a práticas de alfabetização, com objetivos e metas, aí há uma divergência. Também, muitas vezes, em nome de se opor a uma concepção de alfabetização reduzida à aquisição de códigos, não se possibilita às crianças uma experiência rica, plural, motivadora na relação com a leitura e escrita.
Ou seja, nem sempre quem critica a relação da Educação Infantil com a alfabetização tem uma posição boa; critica e tem uma prática omissa em relação às experiências que as crianças precisam ter com todas as linguagens, com a música, com a arte, com a dança, o teatro, a leitura, a escrita. Muitas vezes as práticas da Educação Infantil são uma cópia, uma antecipação das práticas do Ensino Fundamental, e isso é um equívoco grave.
RC: A Educação Infantil no sistema educacional ainda tem muito esse caráter da preparação. Culturalmente, é comum ver a Educação Infantil com esse papel preventivo. Vemos economistas dizerem que investir na educação infantil previne violência, gravidez na adolescência; ou que a pré-escola prepara para o Fundamental. Eu acho que a Educação Infantil tem objetivos próprios de promoção que acontecem agora, não são para depois. Claro que ela tem decorrências para o resto da vida, mas o objetivo é promover direitos plenos nessa etapa da vida, em um tempo presente, ou seja, é um tempo de promoção não de prevenção para o percurso escolar ou para a adolescência.
RC: Isso é importantíssimo. Tivemos a aprovação, em março, do Marco Legal da Primeira Infância que é uma legislação que explicita as políticas públicas prioritárias nessa etapa da vida, ou seja, ela reconhece que existe uma especificidade e uma relevância nos primeiros anos de vida, e vai reafirmar várias diretrizes nacionais e definir quais são as áreas prioritárias para as políticas para primeira infância, como saúde, alimentação, nutrição, a Educação Infantil, a convivência familiar, a assistência social, a proteção.
Então, percebe-se claramente que a Educação Infantil é uma das políticas da primeira infância, ou seja, não é a política de primeira infância e nem a política de desenvolvimento integral. O desenvolvimento integral de uma criança pressupõe uma política de saúde, de alimentação e nutrição, a convivência familiar. Muitas vezes, por insuficiência das nossas políticas públicas, é cobrada da Educação Infantil que ela seja a política de primeira infância contra maus tratos, para apoio na jornada noturna de trabalho da mãe, apoio nas férias.
O que eu acho espetacular nesse marco dentro outras coisas é que ele reconhece a especificidade da Educação Infantil. Nós não somos uma política de assistência, de apoio ao trabalhador, de saúde. É claro que ela tem impacto nisso tudo, somos uma política de proteção. Mas essa não é a nossa identidade. Então você tem uma criança desnutrida e a rede de saúde encaminha para matrícula compulsória na creche, percebe? Agora, não se tem outra porta para bater. É preciso criar outras políticas e é isso que o Marco vem propor.
RC: Essa política hoje é muito mais fortalecida do que já foi. Mas observa-se que vários municípios não aplicam recurso do Fundeb, quer dizer, não é uma prioridade do município. A própria rede de assistência técnica que criamos no MEC para monitorar os planos de educação é muito maior do que a que temos para monitorar a Educação Infantil. Se pensamos nos investimentos que têm sido feitos pelo próprio MEC em relação à formação de professores, acesso aos programas ao ensino superior, Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, Pacto pelo Fortalecimento do Ensino Médio – o que é que nós temos para a Educação Infantil?
Nesse sentido ela precisa ser fortalecida. A emenda 59 tornou obrigatória a matrícula, mas tornou todos os programas suplementares para toda a Educação Básica obrigatórios. Qual é o programa nacional de livro e material pedagógico para a Educação Infantil? Não existe e nem será o PNLD com esse formato. São necessários outros materiais, são outros livros. Olhe o mobiliário escolar da Educação Infantil: é o mesmo do Fundamental, mas diminuído. Parece a concepção de infância dos pintores do século XVIII que concebiam a criança como um adulto em miniatura – e não é isso.
O mobiliário na Educação Infantil tem inclusive outras funções. A criança pega uma cadeira e transforma em um carro. Acho que o MEC tem esse papel indutor, assim como hoje temos a compra de agricultura familiar na educação escolar, graças a indução do Ministério, podemos ter outros processos também nesse quesito.