publicado dia 31/10/2023
Merenda escolar: mais de 60% dos municípios gastam além do limite com alimentos não saudáveis
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 31/10/2023
Reportagem: Ingrid Matuoka
🗒️Resumo: Pesquisa mostra que o biscoito é o quinto alimento mais comprado pelas escolas brasileiras e que 60% dos municípios gastavam mais do que o limite da verba destinada à alimentação escolar (merenda escolar) com alimentos não saudáveis. Entenda os impactos para o desenvolvimento integral dos estudantes e os caminhos para reverter o cenário.
No Brasil, a maior parte da merenda escolar deve ser composta por alimentos naturais ou minimamente processados, como o arroz e feijão, que passam por limpeza, mas sem adição de químicos.
No máximo 20% dos gastos podem ser destinados a alimentos processados (industrializados com adição de sal, açúcar ou conservantes) e ultraprocessados (totalmente industrializados, com aditivos químicos, como biscoitos, salsichas e refrigerantes). A realidade nos pratos dos estudantes, contudo, é outra.
Contrariando essa determinação de 2020 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que fornece recursos a estados e municípios para a compra de alimentação escolar, o biscoito, um alimento ultraprocessado, é o quinto mais comprado para as escolas públicas brasileiras, ficando atrás de carne bovina, frango, leite em pó e banana.
Os dados da pesquisa “Os municípios brasileiros estão prontos para cumprir com as metas de redução de compra de alimentos processados e ultraprocessados para a alimentação escolar?” foram obtidos com base na análise da prestação de contas que estados e municípios fazem anualmente da compra de alimentos para escolas com verba federal.
Divulgado nesta segunda-feira (9/10), o estudo foi realizado por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da USP, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa), da Unicamp, e do Observatório de Alimentação Escolar.
“O poder público precisa entender o papel social da alimentação escolar e quanto bolacha não resolve fome”, diz Patricia Samofal
O cenário é especialmente preocupante diante de um país com 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e outras 70,3 milhões em insegurança alimentar, conforme indicou o relatório publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em julho deste ano.
“A alimentação é um dos direitos que faz parte da garantia do direito à Educação dos estudantes, porque como vão aprender com fome? Ainda mais em um país em que a principal ou a única refeição completa de muitas crianças é dentro da escola. Então o poder público precisa entender o papel social da alimentação escolar e quanto bolacha não resolve fome”, diz Patricia Samofal, nutricionista e assistente de pesquisa no Nepa.
O estudo também mostrou que mais de 60% dos municípios brasileiros gastavam mais do que o limite da verba destinada à merenda com alimentos não saudáveis em 2019. A região Nordeste apresentou o pior resultado, com apenas 22,5% de municípios dentro da meta de alimentação saudável para as escolas.
Na outra ponta, o Sudeste tinha 62,5% dos municípios dentro da meta. A região Sul é a recordista de ultraprocessados, utilizando 18,1% dos recursos destinados à merenda com esses alimentos.
Os pesquisadores analisaram as prestações de conta até 2019. Na próxima etapa, a pesquisa vai olhar para os anos seguintes à determinação de 2020 do FNDE sobre o limite de gastos destinados a alimentos processados e ultraprocessados.
“Alimentação escolar envolve uma série de fatores além do prato de comida”, afirma Patricia
O objetivo é avaliar o impacto das restrições. “Alimentação escolar envolve uma série de fatores além do prato de comida e não podemos abrir mão da qualidade”, reforça Patricia.
Os recursos federais para a alimentação escolar são distribuídos por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que ficou sem reajuste por cinco anos, desde 2017. Promessa de campanha do presidente Lula (PT), os valores diários por estudante subiram até 40% neste ano.
Ainda assim, são baixos. O repasse atual é de R$ 1,37 para matriculados em creches e em tempo integral, R$ 0,72 para estudantes do Fundamental e Médio regular e R$ 0,86 para os de escolas quilombolas e indígenas.
É na escola que muitas crianças têm a oportunidade de aprender a se alimentar de forma mais saudável e a conhecer alimentos diferentes, inclusive levando esse hábito para dentro de casa.
“Sempre escuto famílias falando que passaram a comprar mais frutas porque a criança começou a comer na escola e gostou. Já tive que ir em uma escola pedir receita de uma farofa nutritiva porque o menino sentiu falta durante as férias escolares”, relata a nutricionista.
Para conquistar o paladar das crianças, contudo, não basta apenas ofertar o alimento e é preciso um trabalho pedagógico sistemático. “Em uma escola de Ensino Fundamental, me surpreendi porque as crianças comiam muita rúcula”, conta Patricia.
Para entender como a escola chegou nisso, percebeu que a nutricionista trabalhava junto com as professoras e merendeiras para incentivar os estudantes a se permitirem experimentar e entender a importância disso para seu organismo.
“É necessário respeitar a alimentação culturalmente aceita pelo estudante”, defende Patricia
O PNAE também estipula desde 2009 que 30% dos recursos da alimentação escolar sejam destinados à agricultura familiar. Isso porque incentiva o desenvolvimento econômico local e a oferta de alimentos de qualidade, com menos veneno e culturalmente adequados à comunidade. Este último ponto é especialmente importante para escolas que atendem os povos tradicionais.
“A população brasileira tem deixado de comer os alimentos tradicionalmente da nossa cultura e é necessário respeitar a alimentação culturalmente aceita pelo estudante”, frisa Patricia.
A proximidade com os produtores agrícolas oferece, ainda, outra possibilidade: a da Educação Ambiental. “O estudante pode ir até o sítio do produtor e entender de onde vem o alimento e todo seu processo de plantio e colheita”, sugere a pesquisadora.