publicado dia 14/12/2020
Fundeb: Educação pública perderá R$15,9 bilhões se o Senado não barrar alterações
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 14/12/2020
Reportagem: Ingrid Matuoka
Em 10 de dezembro, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 4.372/2020, que agora segue para votação no Senado. O PL, que se propõe a regulamentar como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) vai funcionar a partir do ano que vem, foi alterado por parlamentares de maneira a permitir o uso de verbas públicas pelo setor privado.
O PL original admitia esse repasse de recursos públicos para creche, educação do campo com formação por alternância, pré-escola e educação especial, etapas e modalidades em que há falta de vagas públicas. A partir das alterações feitas pela Câmara, esse escopo foi ampliado para abranger também instituições privadas sem fins lucrativos, o que inclui desde escolas ligadas a igrejas até o Sistema S (Senac, Sesi e Senai).
Para analisar como essas alterações impactam o Fundo, que é o principal mecanismo de financiamento da educação básica pública no Brasil, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação) lançaram, nesta segunda-feira 14, a nota técnica PL da Câmara sobre o Fundeb: retirando recursos de Estados, DF e Municípios e rasgando a Constituição.
“A Câmara dos Deputados aprovou um desvio de 15,9 bilhões de reais do novo Fundeb para o setor privado. Esse valor é maior que o montante repassado pela União ao Fundo no ano passado. Esse é o tamanho do rombo que as escolas públicas vão deixar de receber se o Senado Federal não for responsável, não respeitar a Constituição Federal de 1988 e não seguir as decisões por eles tomadas por unanimidade na aprovação da EC 108/2020 do novo Fundeb”, explica Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha.
A especialista aponta, ainda, que o texto afronta diversos artigos da Constituição por precarizar os profissionais da educação das redes públicas, por incentivar repasse do dinheiro público para etapas que já têm cobertura da rede pública e por fazer mau uso do recurso de manutenção e desenvolvimento do ensino. “É uma série de absurdos”, diz.
1. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação) reconhecem os avanços da EC nº 108/2020, como:
2. Pelo contrário, o Projeto de Lei nº 4.372/2020, aprovado em plenário no dia 10 de dezembro de 2020, é um retrocesso, não respeita a Constituição Federal de 1988 e o pacto democrático pelo direito à educação. Ele contém determinações que afrontam, além da EC nº 108/2020, outras normas, da própria Constituição da República e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996).
3. O PL ampliou as possibilidades de computar matrículas de instituições privadas sem fins lucrativos conveniadas com prefeituras, governos estaduais e do Distrito Federal. O PL original admitia esta possibilidade para creche, educação do campo com formação por alternância, pré-escola e educação especial, etapas de modalidades em que, sabidamente, há falta de vagas. O PL aprovado na Câmara acrescentou: (1) o ensino fundamental e o ensino médio (limitadas a 10% das matrículas públicas de cada ente); (2) o ensino técnico articulado; (3)o itinerário de formação técnica e profissional do ensino médio; e (4) matrículas no contraturno, como complementação da jornada escolar de estudantes da rede pública, para oferta de educação básica em tempo integral.
4. Caso o texto da Câmara seja aprovado no Senado, serão 15,9 bilhões a menos. Esse montante:
Emenda 10 – 10% no EF e EM: + R$ 10,2 bi para o setor privado
Emenda 7 – contraturno: + R$ 4,4 bi para o setor privado
Emenda 40 – Sistema S: + R$ 546 mi para o setor privado
Art. 7º Inciso I alínea c – pré-escola: + R$ 764 mi para o setor privado
Norte: – R$ 1,8 bilhão para as redes públicas
Nordeste: – R$ 4 bilhões para as redes públicas
Sudeste: – R$ 6,4 bilhões para as redes públicas
Sul: – 2,5 bilhões para as redes públicas
Centro-Oeste: – 1,3 bilhão para as redes públicas
Redes estaduais e DF: – R$ 7,7 bilhões (-6,8%)
Capitais: – R$ 1,5 bilhão
Municípios de 20 mil até 500 mil habitantes: – R$ 5,2 bilhões
5. Boa parte dos benefícios decorrentes da ampliação da complementação da União deixarão de ir para o setor público e poderão ir para o setor privado, que não possui estrutura e nem capilaridade para atender os desafios postos no PNE 2014-2024.
6. Em conjunto, as novas alíneas acrescidas ao art. 7º, inciso I, do PL 4.372/2020 afrontam os art. 213, §1º e o art. 206, incisos VII e VIII, todos da Constituição Federal de 1988, atacando preceitos sobre a destinação dos recursos públicos para as escolas públicas e o correspondente dever de sua expansão, a garantia de qualidade nas condições de oferta e as garantias do magistério. A regra constitucional estabelece a destinação para o setor privado não lucrativo quando houver falta de vagas. O texto da Câmara ignora essa trava e, portanto, a proposta é inconstitucional.
7. A proposta de reservar 10% da prestação do ensino fundamental e médio à iniciativa privada indica desmobilização das redes públicas e incentivo ao setor privado, com sérias responsabilidades para os gestores públicos perante o sistema de controle.
8. Não há falta de vagas na rede pública de ensino fundamental e médio. Mais do que isso, segundo dados do censo escolar, as matrículas dos estados e municípios no ensino fundamental e médio caíram de 36,2 milhões, em 2007, para 28,1 milhões, em 2019, ou seja, uma redução de 8,1 milhões. Isso indica que o próprio sistema público tem como incorporar eventuais aumentos de atendimento com maior rapidez e eficiência (economia de escala) que o setor privado não lucrativo.
9. O texto de regulamentação, ainda, tenta reabrir um debate encerrado na EC 108/2020, quando grupos tentaram desfigurar o sentido da autorização constitucional temporária às parcerias com a iniciativa privada no ensino obrigatório, sem êxito. A Constituição Federal de 1988 fez uma opção explícita pela prestação direta do serviço público do ensino obrigatório e pela transitoriedade das parcerias com a iniciativa privada, exclusivamente para atender os déficits de vaga nas escolas públicas, obrigando os gestores expandir a oferta em suas redes de forma direta. Este entendimento é objetivo e decorre da interpretação sistemática do art. 213 e seu §1º combinado com o art. 208, §2º.
10. Mas não é só. O sentido da restrição constitucional do art. 213, §1º tem razão prática de ser e atenta para outro dever constitucional: a garantia de padrão de qualidade do direito à educação (art. 206, inciso VII), que se materializa nas condições de oferta. Autorizar de forma permanente a prestação concorrente do ensino obrigatório pelas redes públicas e pela iniciativa privada implica diferenciação nas condições de oferta, o que causa uma discriminação intolerável entre os destinatários do serviço público de caráter universal, igualitário e inclusivo. Tal situação foi considerada aceitável apenas transitoriamente, não podendo consolidar permanente modelo de segregação.
11. Além disso, o modelo de parceria não desonera da oferta de programas suplementares como os de transporte e alimentação, já que tal atividade não pode ser assumida pela iniciativa privada porque não está compreendida no objeto de atuação de instituições educacionais.
12. Os estados têm amplas possibilidades de expandir sua oferta de educação profissional de nível médio, uma vez que têm se desobrigado da oferta de ensino fundamental e educação infantil (queda de 5,8 milhões de matrículas entre 2007 e 2019), ao longo das três últimas décadas.
13. O Sistema “S” recebe mais de 21 bilhões por ano de recursos públicos, 0,3% do PIB, e nem por isso garante um sistema massivo de educação profissional. Segundo o Censo Escolar 2019, o sistema possui 1.365 escolas distribuídas em apenas 10% dos municípios brasileiros (552 localidades). 72% são municípios com 50 mil habitantes ou mais. Ou seja, tem pouca capilaridade no país, além de cobrar mensalidades em muitos estados. Em 2019 o Sistema S atendia apenas 1,7 mil alunos no ensino médio profissional integrado (o que garante formação mais sólida) e 196 mil no ensino médio profissional concomitante ou subsequente. Enquanto isso, a rede estadual atendia 359 mil, na primeira modalidade, e 344 mil na segunda. Ou seja, a rede estadual pública é mais factível e mais eficiente em termos de ampliação. Uma ampliação de 20% no ensino médio integrado, significaria aumentar em 42,5 vezes a matrícula no Sistema S para essa modalidade.
14. A entrada dos serviços nacionais de aprendizagem no Fundeb irá reduzir ainda mais recursos para estados, DF e municípios. A necessária expansão da rede estadual de ensino médio articulado à educação profissional, que possui qualidade comprovada, é também uma forma de equilibrar o balanço de recursos entre estados e municípios, que hoje é favorável aos municípios em virtude do intenso processo de municipalização do ensino ocorrido desde o Fundef.
15. Subvenções públicas a entidades de caráter assistencial não constituem despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino, conforme o Art. 71 da LDB. O artigo 70 desta Lei arrola despesas de MDE e em tal categoria se enquadram somente aquelas “realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis. Por estes motivos, incluir no Fundeb instituições conveniadas que atendem estudantes das redes públicas no contraturno escolar é irregular e, além disso, dificilmente contribuirá para ampliar a oferta de educação em tempo integral no Brasil. É medida que, se adotada, exigirá extremo controle para verificação da oferta, ou não, da educação em tempo integral com o contraturno escolar.
16. As alterações repentinas ao texto dos incisos II e III do art. 26 do PL 4372/2020 atacam o principal fundamento da política de fundos na educação: a valorização dos profissionais do magistério, como fator de indução da qualidade na oferta. Conforme disposto no art. 212-A da Constituição da República, no mínimo 70% dos recursos do Fundeb de cada ente devem ser aplicados no pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício. Atendendo aos preceitos constitucionais, o art. 2º do PL nº 4.372/2020 explicita que os fundos se destinam “à manutenção e ao desenvolvimento da educação básica pública”; como já registrado, a inclusão de instituições conveniadas é uma excepcionalidade e deveria limitar-se em termos temporais e a segmentos em que as redes públicas ainda precisam ampliar a oferta para garantir direitos. Portanto, o mínimo de 70% para pagamento de pessoal deve ser exclusivo dos profissionais da educação básica pública, ou seja, as categorias definidas no art. 61 da LDB.
17. A EC n° 108/2020, contudo, ainda representa uma grande vitória e um grande avanço para a educação brasileira. Esta nossa vitória não será aplacada, ainda que a Câmara dos Deputados não tenha feito jus ao texto que as/os próprias/os deputados e deputadas votaram. O Senado Federal deve impreterivelmente corrigir esses rumos inaceitáveis, respeitar a votação unânime ao texto da Emenda do Fundeb naquela Casa e garantir melhorias que sacramentem os avanços já conquistados na Constituição Federal de 1988. Seguiremos trabalhando para o melhor texto legislativo, que possa garantir os avanços necessários para uma fiel e robusta implementação do novo Fundeb. O projeto de educação pública urge ser fortalecido pois é o sustentáculo de uma sociedade democrática e promotora de justiça social.
Leia a nota técnica PL da Câmara sobre o Fundeb: retirando recursos de Estados, DF e Municípios e rasgando a Constituição completa.
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