publicado dia 19/09/2018
Educação de ciganos no Brasil é marcada por preconceito e exclusão
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 19/09/2018
Reportagem: Ingrid Matuoka
O Brasil teve dois presidentes descendentes de ciganos: Juscelino Kubitschek e Washington Luiz, além de outras personalidades notórias. Essa origem passa despercebida, em geral, porque permeia o imaginário da maioria dos brasileiros outra imagem.
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“Os ciganos são obrigados a lidar com estereótipos de que roubam crianças, de que não são confiáveis, que dançam, cantam e preveem o futuro, de que são itinerantes e vivem em barracas”, relata Mirian Alves de Souza, professora de Antropologia no Instituto de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O desconhecimento de outras facetas dos ciganos deriva da marginalização e do preconceito contra esta população
Embora a itinerância e as condições precárias façam parte da realidade de alguns ciganos, existem muitos outros sedentarizados, ocupando cargos de prestígio e em camadas socioeconômicas privilegiadas. Esse desconhecimento de outras facetas dos ciganos deriva, também, da marginalização deste povo e do preconceito contra eles.
Uma das consequência disso é o apagamento forçado de suas culturas a fim de evitar a discriminação. Isto é, muitos ciganos omitem suas origens para não sofrerem preconceito. E esse processo, por vezes, tem início cedo.
Mio Vacite é músico e descendente de ciganos iugoslavos e testemunhou muitas dessas omissões da identidade cigana. Na época em que frequentou o Ensino Fundamental, qualquer arte divinatória era considerada contravenção penal, lei que só foi revogada em 1976. Também em decorrência disso, o preconceito permeava a sociedade. E na escola não foi diferente.
“Chamaram a minha mãe de vigarista e me xingaram de cigano, usando tom pejorativo. Eu dei uma ‘bolacha’ no moleque que disse isso, e o coordenador pedagógico me tirou da sala, e nunca perguntou o que tinha me motivado a agir assim. Simplesmente assumiu que eu estava errado”, conta Mio.
Depois deste episódio, a gota d’água de várias outras violências vivenciadas, Mio nunca mais voltou à escola. “Fomos proibidos de falar o idioma e mudamos de bairro para não saberem que éramos ciganos. Tudo para proteger o meu irmão que tinha acabado de entrar na faculdade. Hoje ele é procurador de Justiça, mas como vários outros ciganos, ele não se assume por causa desses traumas”, conta o músico.
A professora Mirian, que pesquisa a educação escolar de ciganos, conta que incidentes como estes não são isolados. Quando há brigas, uma das ameaças é dizer que vai contar para todo mundo que o outro é cigano: “revelar a identidade, para muitos ciganos, é sinônimo de destruir a vida dele.”
Os ciganos são um grupo muito heterogêneo e, no Brasil, predominam ramificações de três etnias: os Rom ou Roma, provenientes da Romênia, Turquia e Grécia, os Calon, da Espanha e Portugal, e os Sinti, que vieram da Alemanha e da França.
Dos que se declaram ciganos, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) conseguiu mapear 500 mil pessoas vivendo em 291 acampamentos em 21 estados do País.
Em 1993 a Constituição ampliou a garantia de direitos às várias populações brasileiras minoritárias, dentre elas, a cigana. E desde 2007 eles são protegidos pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Ainda assim, segundo o IBGE, somente 13,7% dos ciganos têm acesso a políticas sociais como Educação e Saúde.
As comunidades ciganas itinerantes, sobretudo, são as que têm mais dificuldade de acessar a escola. Isto porque a instituição, por vezes, exige documentações que as famílias não possuem, como comprovante de endereço e histórico escolar das crianças, embora uma resolução de 2012 do Conselho Nacional de Educação (CNE) defina que isso não é obrigatório.
Segundo o IBGE, somente 13,7% dos ciganos têm acesso a políticas sociais como Educação e Saúde
Tirando algumas experiências educativas esporádicas, não existe uma abordagem pedagógica de e para ciganos, tanto pela falta de recursos e dificuldade de articulação entre as comunidades, quanto pelo contingente relativamente pequeno e esparso de ciganos. Assim, as famílias quando chegam nas escolas regulares, fora os entraves para a matrícula, encontram outras barreiras.
“As crianças ciganas estão acostumadas com formações em roda, então ter que sentar enfileirado é um desafio. São obrigados a usar farda com calça e tênis, quando a indumentária faz parte da sua identidade”, conta Flávio José Oliveira Silva, especialista em educação de crianças ciganas e professor na Faculdade de Educação da Universidade Potiguar (UnP).
Durante uma de suas pesquisas, a professora Mirian se deparou com o caso de uma professora que afirmou, durante uma aula sobre água, que as famílias têm que lavar suas casas e roupas uma vez por semana. Nisso, uma criança cigana respondeu que em sua casa não era assim, e a professora retrucou dizendo “mas é porque vocês não têm higiene”. “Na verdade, a menina só não tinha acesso à água, um problema recorrente dessas comunidades. Por isso é importante ter sensibilidade à alteridade”, diz Mirian.
O material escolar também apresenta problemas. “O verbete ‘cigano’ em vários dicionários é discriminatório e este é um livro básico na escola. A obra Memórias de um Sargento de Milícias representa muito negativamente os ciganos e está em listas de vestibulares”, diz Mirian.
Ela ressalta que o ideal não é simplesmente tirar esses livros da sala de aula, mas ter consciência de que muitas comunidades minoritárias são descritas de maneira simplificada, permeadas por estereótipos, o que leva a preconceitos e discriminação.
“Conheci crianças ciganas que foram chamadas de ladras em sala de aula e a professora não interveio, como se fosse algo legítimo de ser dito. Por isso, a escola precisa confrontar e criticar essas narrativas estigmatizantes, sobre qualquer grupo étnico, no cotidiano e no material escolar”, recomenda a professora Mirian.
Flávio José acrescenta ainda: “Esse modelo de escola, que historicamente ocupou o lugar de promover a educação sistematizada, é a mesma que os itinerantes matriculam seus filhos e, por anos a fio, desafia sua cultura, tornando-os seres vitimados pelo preconceito.”
O apreço dos ciganos pelos estudos parte do respeito a sua identidade. “Por isso, tentamos mostrar aos jovens a nossa cultura belíssima, para eles se sentirem menos abatidos. Eu tenho muito orgulho de ser cigano, do nosso código ético. Também me orgulho da irmandade da nossa comunidade. Somos brigões, não violentos, mas no dia seguinte está todo mundo pedindo desculpa. É assim o povo a que pertenço. Eu sou o que não consegue guardar, que não consegue fixar o ódio, eu sou o que flui”, diz Mio.