publicado dia 05/07/2023
A concepção de Educação Infantil no Compromisso Nacional Criança Alfabetizada
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 05/07/2023
Reportagem: Ingrid Matuoka
Em junho, o Ministério da Educação (MEC) divulgou sua proposta de política pública nacional para a alfabetização: o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
Embora a política seja centrada no Ensino Fundamental, quando tem início o processo de alfabetização no sentido mais estrito, a concepção que ela traz impacta a forma de trabalhar na Educação Infantil.
“Na perspectiva da psicogênese, a criança produz conhecimentos desde sempre e a alfabetização não se instaura no Ensino Fundamental. A criança aprende na sociedade, não só a partir da escola”, diz Maria Thereza Marcílio, presidente da Avante – Educação e Mobilização Social, em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral (CR).
Em março deste ano, a organização enviou ao MEC uma série de contribuições sobre alfabetização e Educação Infantil. “Este é um campo fértil para a chegada de receitas metodológicas, de redução do papel da Educação Infantil a uma preparação para o Ensino Fundamental”, diz um trecho da nota.
Durante a entrevista ao CR, Maria Thereza avaliou como se deu o avanço nas teorias da alfabetização em paralelo com as mudanças nas matrículas no Brasil e a importância da proposta do MEC, mesmo que publicada, poder ser atualizada para adequar-se às teorias mais atuais.
“Se a escrita é um objeto social, a criança tem que estar em contato com esse uso social para poder formular suas hipóteses”, afirma a especialista. Leia a entrevista completa a seguir:
Maria Thereza Marcílio: Não cabe ao MEC definir um método e festejo que não tenham tentado impor isso como o governo anterior fez. Mas cabe ao MEC dizer quais são os princípios teóricos que o país advoga para o processo de alfabetização, porque a teoria independe do local e das circunstâncias, é um conhecimento, e isso ele não fez. Não fica clara qual é a concepção de alfabetização.
Por outro lado, ao falar de como a avaliação será feita, já informa sobre uma concepção, que não é plenamente aceita e, inclusive, é objeto de muitos questionamentos.
Essa concepção que a política traz foi muito utilizada quando houve a incorporação na escola de um contingente muito grande das camadas populares, estrangeira àqueles códigos escritos.
Conforme houve a expansão do acesso à informação escrita e das matrículas no Brasil, a teoria também avançou, porque o conhecimento é sempre provisório, e com isso a Emilia Ferreiro, e outras pesquisadoras, desenvolveram a concepção da psicogênese da língua escrita.
Aqui no Brasil, ela sofreu duas grandes distorções. A primeira foi transformar a psicogênese em um método. Assim, as hipóteses de escrita passaram a ser consideradas degraus que a criança tinha que percorrer e a professora deveria dirigi-las para esses degraus.
A outra distorção é tratar os estágios como sendo coisas absolutamente espontâneas, que vão acontecer a despeito de qualquer circunstância, deixando os meninos soltos, o que também não é verdade.
Se a escrita é um objeto social, a criança tem que estar em contato com esse uso social para poder formular suas hipóteses. O professor não dá as hipóteses, mas prepara o ambiente e utiliza a escrita e a leitura em situações sociais para que as crianças formulem suas próprias hipóteses.
MTM: Na perspectiva da psicogênese, a criança produz conhecimentos desde sempre e a alfabetização não se instaura no Ensino Fundamental. A criança aprende na sociedade, não só a partir da escola.
A Educação Infantil não aparece muito no Compromisso, que é muito centrado nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Não fala sobre a literatura infantil e os espaços organizados de acesso à língua escrita.
Mas a Educação Infantil tem uma importância enorme porque, embora ela não prepare para a alfabetização, se a criança ouve histórias, prepara receitas, vê a lista de presença da sala, os combinados escritos, os recados para a família que vão e voltam, sob o olhar profissional, de preparação do espaço, de organização, ela vai chegar no Ensino Fundamental com um repertório muito maior de hipóteses e de avanço nessas hipóteses para a compreensão do processo.
Isso tudo é muito mais refinado do que aprender a reconhecer letras e palavras isoladas e ensinar a juntá-las.
MTM: O lúdico deveria prevalecer até os 12 anos, porque brincar é aprender. Na nossa sociedade, a brincadeira tem a conotação de algo que se faz quando não se tem nada o que fazer, para ocupar um espaço vazio da rotina. Mas brincar é a forma privilegiada de se aprender.
São intrínsecos à brincadeira o explorar e a curiosidade. Quando se pode explorar a partir de um impulso de curiosidade, isso é lúdico, porque não tem o objetivo de cumprir uma tarefa, alcançar um patamar, um resultado. É explorar livremente e isso não é não ser sério, é processo de descobrimento.
“O lúdico deveria prevalecer até os 12 anos, porque brincar é aprender”, destaca Maria Thereza Marcílio
Os cientistas têm o mesmo princípio: é estar aberto ao imprevisto, a aprender, e as crianças têm isso desde que nascem. Quem corta isso é a sociedade e a escola. A criança, brincando, vai tecendo relações, relacionando aquilo com o mundo em que vive, compreendendo os papéis sociais, e isso para todas as áreas do conhecimento, não só leitura e escrita, mas também com elas.
Juntar letrinhas e escrever coisas sem sentido, não promove a mesma aprendizagem do que quando ela está imersa naquela prática, quando escreve um bilhete para saber o que aconteceu com o colega que faltou. É aí que ela entende a função da escrita.
Se ouve história, entende a função literária, o lugar da Literatura, aprende a fabular e organizar a narrativa ao modo das histórias quando vai contá-las. Com uma receita, aprende a organizar, definir uma sequência e orientar sua memória.
Quando a leitura e a escrita chegam com sentido, a criança vai aprendendo o que está por trás da escrita, como a representação gráfica. Ao invés de começar por ela, ela se torna um resultado.
MTM: Tem que estar sempre avançando, porque o conhecimento muda, não é para fazer parar no tempo. Isso requer um espaço de abertura, de diálogo permanente com a sociedade.
As universidades precisam ser ouvidas, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a de Pernambuco (UFPE), que trabalham seriamente há anos nessa área.
Entidades formadoras, que fazem pesquisa e os entes responsáveis pela oferta também precisam estar nesse diálogo para deixar claro qual é a concepção de alfabetização que se tem.