publicado dia 18/03/2015

“Escolas não podem ensinar apenas para pessoas com certas características”

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Pedro Brandão Carrera, 20 anos, atualmente cursa Gastronomia no Senac. A entrada do jovem no ensino superior tem um significado especial, sobretudo para seus familiares. Foram eles que, cientes dos direitos do jovem com Síndrome de Down, encabeçaram uma luta para que seu percurso educativo fosse trilhado em uma instituição de ensino regular.

Ainda que o cenário aponte um aumento no número de matrículas de alunos com necessidades específicas em escolas comuns, há entraves a serem combatidos. Dados do Censo Escolar 2013 apontam que, das crianças com deficiência que estão na escola, 77% se encontram em salas de aula comuns. A esfera pública concentra a maior parte desse contingente, registrando 78,3% das matrículas, enquanto a rede privada registra 21,7%.

A mãe de Pedro, Ana Paula Brandão, conta que recebeu a negativa de duas instituições privadas de São Paulo pela matrícula do filho. Na que ele, enfim, cursou a educação básica – também particular – a família ainda teve que lutar contra o desencorajamento para que o jovem seguisse para o ensino médio. Esse caso ilustra o drama de muitas famílias que esbarram nesses impeditivos e não sabem como lidar com a situação ou a quem recorrer.

“Qualquer escola, pública ou particular, que negar matrícula a um aluno com deficiência comete crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.” [Art. 8º da Lei nº 7.853/89].

Foi na tentativa de orientar as famílias do direito à matrícula em classes comuns do ensino regular a todas as crianças e adolescentes, com ou sem deficiência, que o Movimento Down lançou uma cartilha sobre Educação Inclusiva, “Escola Para Todos – Educação Inclusiva: o que os pais precisam saber?”. A publicação reúne informações sobre a inclusão, e busca amparar a sociedade quanto à legislação e à rede que atua para sua garantia.

Para entender mais sobre a questão, o Centro de Referências em Educação Integral conversou com a coordenadora do Movimento, Maria Antônia Goulart. Confira a entrevista.

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Centro de Referências em Educação Integral: Qual a importância de uma cartilha orientativa sobre educação inclusiva direcionada para pais?

Maria Antônia Goulart: Desde que o Movimento Down começou – completamos 3 anos agora em março -, recebemos muitas mensagens de famílias relatando a dificuldade que têm de garantir a matrícula de seus filhos nas escolas regulares. O que elas colocam é que a forma como as escolas se posicionam as deixam em dúvida se de fato têm esse direito, ou se as escolas teriam que fazer uma concessão para aceitar essas crianças e adolescentes. Então, queremos abordar os direitos em relação à educação para apoiar esse posicionamento de maneira correta. É impressionante. Há casos de famílias que receberam recusa de 16 escolas. Já é difícil compatibilizar questões como linha pedagógica que essa mãe ou pai acredite, a própria localização geográfica da escola, e aí ainda ter que encarar o fato de que ninguém aceita seu filho? E sempre tem uma resposta que nos parece muito vazia: “Não estamos preparados”, “Aqui não é o melhor lugar pra ele”.

A partir do momento que você se constitui como instituição de ensino, parte-se do princípio de que será capaz de ensinar pessoas, independente de certas características ou habilidades. Não dá pra ser uma instituição educacional para um grupo. Isso não está de acordo com a delegação dos serviços educacionais que temos no Brasil e vale também para a rede privada. Então, daí surge nossa demanda de orientar as famílias de maneira muito clara e objetiva sobre os direitos, o exercício deles e quais são os canais que podem apoiá-los no caso de violação.

CR: Ainda que seja um direito garantido por lei, como fazer com que as escolas garantam não só o acesso, mas também um trabalho de inclusão qualificado para que essas crianças não fiquem à parte dos processos de construção de conhecimento?

Maria Antônia: Nós que trabalhamos com educação e avaliamos os indicadores educacionais no Brasil, se levarmos à risca, podemos dizer que a escola não está preparada para quase ninguém. Basta avaliarmos a situação de crianças que não conseguem ser alfabetizadas na idade certa, ou que chegam à segunda etapa do ensino fundamental com baixo letramento, com raciocínios matemáticos abaixo do esperado. A inclusão lida com uma crise do sistema educacional muito maior do que simplesmente a questão das crianças com deficiência. Temos escolas que fazem o que chamamos de processo de seleção, ou seja, que reprovam e expulsam seus alunos para configurar um grupo selecionado ao final, em situação bastante singular, e vender isso como resultado escolar; e as que, por outro lado, desencorajam as crianças que tem baixo desempenho ou mais dificuldades de prosseguirem, participarem de exames. A crise educacional não está restrita aos alunos com deficiência, atinge os demais por diversos motivos.

O que temos discutido no Escola para Todos, e que norteou a primeira parte da campanha foi a necessidade de garantirmos o acesso dessas crianças nas escolas, sem qualquer impeditivo para a matrícula, pois isso é crime e não pode ser tolerado. Agora, a segunda parte é refletir sobre um processo educacional pleno, que não deixe essa criança à parte dos processos e nem entenda que ela está ali só para socializar. Ainda temos casos graves de escolas que aceitam a matrícula, mas só reforçam as diferenças, o que também é um motivo de violação de direitos. Também precisamos discutir como garantir os recursos necessários para que essa criança seja atendida. Todas as pessoas precisam de um apoio para aprender, e esses recursos devem variar de acordo com a etapa escolar e fase da vida desse indivíduo. A escola não pode ter um conjunto limitado de recursos, uma vez que os alunos são muito heterogêneos. É preciso diversificá-los e colocá-los a serviço desse professor que está no processo de ensino aprendizagem com aquela turma.

CR: O que você entende por recursos?

Maria Antônia: Por exemplo, o mediador é um recurso importante. O que não significa que o fato da criança ou adolescente ter deficiência implicará na atuação desse profissional. A questão é reconhecer essa necessidade caso a caso, ou seja, crianças que necessitam de mais tempo para desenvolver determinada atividade, ou de mais repetição para o entendimento de conceitos. Outro recurso importante é a adaptação de material. Temos discutido com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e vários países da América Latina a questão do livro didático acessível. Não temos hoje um livro didático do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) acessível para pessoas com deficiência intelectual. Então, como é que falamos que eles têm direito se o que vai para a escola como recurso – aliás um dos principais recursos escolares – não é acessível a eles? É importante que pensemos sobre isso.

As salas de recursos multifuncional e os professores de Atendimento Educacional Especializado (AEE) são um esforço nesse sentido de garantir um espaço na escola com equipamentos, materiais e professores com essa formação mais ampla. Mas, o que vemos é que muitas vezes isso não é suficiente, porque os alunos sem deficiência acabam tendo acesso a materiais com qualidade bem superiores, com padrões estéticos mais refinados, enquanto as crianças com deficiência acabam tendo adaptações de baixa tecnologia. Sem querer desmerecê-las, porque são importantes, elas não podem ser o único recurso, porque se limitamos esse repertório, ou não investimos nessa qualidade, estamos, mais uma vez, reafirmando a diferença. É fundamental que as escolas aceitem a matrícula, mas garantam as condições para que essa inclusão seja feita com a qualidade necessária para que essa criança esteja convivendo com seus colegas, socializando, mas também aprendendo coisas necessárias para o seu desenvolvimento, a partir de seu ritmo, tempo e expectativas individuais, e evolua se avaliada em relação a ela mesma.

CR: Como você vê essas necessidades frente à formação dos professores?

Maria Antônia: Acho que na graduação temos um erro grave. O espaço que se dá para discutir prática pedagógica e sala de aula é mínimo. É como se ele fosse preparado para discutir teoria da educação, isso tomando como base o tempo que é dedicado para cada reflexão. Temos que ter um equilíbrio maior nos currículos de formação de professores para que de fato se aprofunde em sua prática em sala de aula. Precisamos ter uma proposta de formação mais direcionada aos desafios que eles enfrentam no dia a dia. Isso pode ser construído a partir de uma escuta com os professores. No Movimento Down, recebemos inúmeras dúvidas de docentes sobre quais estratégias adotar nas práticas cotidianas para incluir os alunos. Claro que cada criança responde de uma forma, e um diagnóstico inicial nem sempre dá conta de abarcar as necessidades específicas. Mas ter acesso a algumas estratégias ou recursos pode nortear melhor esse trabalho educativo.

Já ouvi relatos de professores que diziam que uma adaptação feita com um aluno com deficiência acabou ajudando vários outros alunos. Às vezes o problema de atenção não é específico da criança com deficiência. O repensar das práticas, que pode ser induzida por uma criança com deficiência, pode trazer mais respostas para a turma como um todo. Isso é um processo de reflexão importante. No caso da criança com deficiência ter acesso a algo diferente é mais flagrante, urgente, mas o fato é que todas as crianças precisam ter acesso a algo diferente do que a escola oferece hoje. A inclusão de um aluno com deficiência em uma turma pode ser o estopim para uma reflexão profunda sobre os processos de aprendizagem e uma melhoria da qualidade do ensino para a escola como um todo.

CR: O atendimento educacional especializado cumpre que papel na escola? É uma complementação à atuação do professor?

Maria Antônia: Isso é fundamental. O professor do atendimento educacional especializado (AEE) não é o professor da criança. Quem tem de assumir essa condução é o professor da sala de aula, que leciona para toda a turma. A ideia é que esses profissionais consigam aproximar os recursos do AEE da sala de aula a partir de trocas, construções coletivas, com o objetivo de facilitar a aprendizagem. O que é possível, em caráter complementar  ao horário da jornada desse alunos, é a sua ida para a sala de recursos multifuncionais trabalhar alguns conceitos que, por ventura, eles tenham dificuldades ou antecipar algumas questões que serão abordadas em sala de aula, sempre com orientação do professor responsável. O AEE é uma oportunidade para que essa criança tenha mais tempo na escola, qualificando o trabalho que será desenvolvido. É um recurso da escola, um recurso a mais para o professor. Deixar um aluno somente sob a condução de um atendimento educacional especializado é novamente promover a sua exclusão dos processos participativos de aprendizagem.

CR: Como você vê o amparo na legislação? O Plano Nacional de Educação trouxe na redação de sua meta 4 [que trata da inclusão] a educação “preferencialmente” na rede regular de ensino. Isso não depõe contra o direito pelo qual se luta?

Maria Antônia: Esse debate foi forte por parte do Movimento Down e da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD). A gente empossou um movimento grande contra a inclusão do termo na lei. A gente entende que, de fato, o “preferencialmente” abre uma janela que não deveria ser aberta. Agora, de qualquer forma, o que a gente entende é que as escolas precisam se preparar para garantir o atendimento educacional especializado lá dentro. Enquanto isso, aquelas que ainda não o tem podem fazer parcerias com organizações de seus territórios que tenham condições de oferecer esse serviço. Mas somente no contraturno, nunca no horário escolar dessa criança. Agora, quando esse atendimento é feito fora da escola, as trocas entre o professor e esse profissional acabam ficando comprometidas; quando dentro, o salto de qualidade é muito maior. Então, embora o texto da lei tenha contemplado essa possibilidade, entendemos que isso deve ser considerado após exauridas todas as tentativas de configurar esse atendimento dentro da escola.

CR: Em que momento a luta pela inclusão se encontra?

Maria Antônia: Em relação à questão da educação, o ano passado, o principal enfrentamento foi esse da lei. Mas temos outras pautas, como a dos livros didáticos acessíveis, a dos exames como ENEM acessíveis, apoio para que os alunos consigam dar continuidade aos seus estudos. Nesse ponto, nos preocupa muito o número limitado de pessoas com deficiência no ensino médio. Com todo esse esforço, o ensino fundamental tem sido para a grande maioria o ponto final na sua escolaridade. E aí as possibilidades de inclusão no mercado de trabalho ficam muito limitadas. Então, temos outras lutas que temos travado no sentido de garantir qualidade e uma trajetória mais longa para as crianças com deficiência dentro do sistema educacional. Se não, não adianta vermos as empresas colocando que há vagas, mas não pessoas preparadas. Porque elas se preparam ao longo da vida. Tudo está ligado. Não tem como garantirmos autonomia na fase adulta sem assegurar os direitos dessas pessoas na fase escolar.

O que é uma escola inclusiva?
É aquela que recebe crianças sem deficiência e com deficiência, e outras “diferenças”, de braços abertos. Uma escola inclusiva segue os seguintes princípios, entre outros:
– Reconhece e respeita as diferenças nas crianças: idade, sexo, etnia, língua, deficiência, classe social, estado de saúde;
– Permite que estruturas, sistemas e metodologias de ensino atendam às necessidades de todas as crianças;
– Faz parte de uma estratégia mais abrangente de promover uma sociedade inclusiva;
– Reconhece que a educação é um processo dinâmico, que está em evolução constante;
– Sabe que o ensino não deve ser restrito ou limitado por salas de aula numerosas nem por falta de recursos materiais.
(Trecho da publicação “Escola para Todos – Educação inclusiva: o que os pais precisam saber?”)

“Fazer educação inclusiva é construir uma sociedade inclusiva”

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