publicado dia 31/03/2016
Polarização política nas escolas: o que fazer?
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 31/03/2016
Reportagem: Ana Luiza Basílio
Você é a favor ou contra o impeachment? Vai ter golpe ou não? A destituição da presidenta é legal ou ilegal? Você foi para a rua? Que dia? Petralha ou coxinha? Amarelo ou vermelho?
As perguntas que pautam boa parte das conversas entre os brasileiros nas últimas semanas e inundam as redes sociais também chegaram às escolas. Mais: estão na boca e na cabeça das crianças e adolescentes. E se nas ruas, nas mesas de jantar, nos corredores do trabalho e nos comentários na internet, tal polarização política tem causado desentendimentos e desconfortos, nas escolas não têm sido diferente.
O caso com a professora de História em Curitiba ocorreu após ela se colocar contrária ao impeachment em sua página pessoal do Facebook, como relatou a revista Carta Capital. Segundo a reportagem, o ataque teria sido liderado por pais de alunos do Colégio Medianeira, da capital paranaense.
Alguns episódios foram abordados pela imprensa, como o caso do pai que postou, orgulhoso, o desenho do filho de 4 anos, com as frases “Morre Diuma (sic)” e “Morre Lula“. Também foi dado destaque à perseguição sofrida por uma docente do Paraná, após ela se manifestar politicamente em sua página no Facebook. Outros inúmeros casos de bullying e desentendimentos entre estudantes, pais e professores foram registrados em redes sociais.
Se o tema já invadiu a escola e ignorar a realidade é uma opção tão equivocada quanto impossível, a pergunta é: como abordar o debate da forma mais adequada dentro das escolas? Como lidar com os conflitos que nascem a partir do debate político?
Um exemplo vem da zona sul de São Paulo, na EMEF Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, localizada no bairro de Campo Limpo.
A diretora Solange Aparecida Tabrito de Amorim conta que o desejo dos alunos de entender a atual conjuntura coincidiu com o momento da escola revisitar seu Plano Político Pedagógico, tarefa designada ao Conselho Escolar uma vez ao ano. Assim, decidiram incluir atividades dedicadas ao debate, com e para seus estudantes. Solange conta que o ponto de partida foi a defesa intransigente da democracia e suas relações com a educação. A seu ver, a gestão democrática da escola, prevista em lei no Brasil, só pode se concretizar se há democracia no território e na sociedade.
A gestora relata que os docentes buscaram trazer reflexões sobre o papel dos meios de comunicação na atual crise política. “Por que está sendo tão comum nas redes sociais e na mídia o compartilhamento de textos e imagens incitando o ódio? Pregar o extermínio de determinado grupo político, por exemplo, cabe dentro de uma democracia?”, ilustra.
Para as turmas do Fundamental II e EJA (cerca de 650 alunos e 17 turmas) foi elaborada uma sequência de atividades com previsão de um mês de duração e baseado na interdisciplinaridade. Ao todo, 35 professores estão envolvidos na tarefa.
“Tudo parte de uma sala montada de acordo com o tema identificado pela turma e seu professor orientador. Por exemplo, se o tema for ‘o que é fascismo?’, a ideia é reunir nesse espaço diferentes recursos: imagens, textos, depoimentos e músicas para despertar os primeiros sentimentos e impressões”, exemplifica Solange.
Ao longo do processo os estudantes ainda construirão um painel político no pátio da escola com os recortes que forem considerando importantes, além de elaborarem textos opinativos que têm como regra clara obedecer a princípios éticos e não pactuar com o ódio. Ao término, toda a produção será apresentada para a comunidade em um sarau aberto, proposto para o dia 30 de abril.
Os desdobramentos da polarização política, entretanto, nem sempre permitem um planejamento didático antecipado. Não há dia nem hora para que as crianças e adolescentes se manifestem, muitas vezes, reproduzindo discursos da mídia ou de familiares.
Durante uma de suas aulas de Português na EMEF 19 de Novembro, zona leste de São Paulo, a professora Juliana Regina Marques ouviu de uma de suas alunas, de 14 anos, “que todo mundo que esteve nas ruas de vermelho era marginal e tinha que morrer”. A fala foi um gancho para que a docente propusesse uma conversa inicial sobre estereótipos e sobre o problema de legitimá-los. Indagações como “o que é uma marginal?”, “por que um grupo teria o direito de se manifestar e outro não?” foram utilizadas por Juliana para iniciar um trabalho com os alunos que teria continuidade dentro do projeto de escrita que ela desenvolve na instituição.
“Preparei uma aula sobre discurso de ódio”, conta a professora que utilizou artigos de opinião. “O grande problema é a raiva que busca deslegitimar a opinião do outro”, coloca. A docente propôs que os estudantes identificassem outros estereótipos presentes na sociedade, buscando desconstruí-los de forma crítica e construtiva. “Perguntei a eles: ‘Toda menina gosta de ballet?’ ‘Todo gay é afeminado?’ ‘Toda pessoa que estava na mobilização era petista?’ ‘Todo petista é marginal?'”.
Juliana conta que a partir dessas reflexões, os estudantes se envolveram e pediram mais. “Vamos seguir debatendo legalidade e ilegalidade, para que eles possam entender por que há tanta discordância entre as diferentes representações”, coloca a docente. Como próxima atividade, ela pediu aos alunos uma pesquisa sobre as acusações que pairam sobre as figuras políticas atuais.
“Entendo que a escola tem o papel de fazer com que os estudantes saibam se colocar na sociedade, até porque isso parte do interesse deles. Agora, temos que tomar cuidado para não nos fecharmos em uma posição, e atermos às discussões propostas”, finaliza a professora.
Analisar as mídias sociais foi o foco da professora orientadora de sala de leitura Marlei Luciane Bernun, que atua na EMEFM Professor Lineu Prestes, também na zona sul da capital. A decisão foi tomada justamente por verificar que os discursos polarizados apareciam mais nas vozes dos adolescentes, grandes usuários da internet, de modo geral.
A ideia foi sondar como eles interagem com as informações dessas plataformas e se, quando as compartilham, de fato leram ou entendem o conteúdo difundido. “Nesse levantamento em aula, percebi que a maioria deles não lia de fato o que endossava”, comenta a educadora.
A partir disso, em uma proposta conjunta com um professor de História, buscaram desconstruir o foco empobrecedor da polarização entre bem e mal. “Abordamos as estratégias de colonização e de guerra em que primeiro se oprime, depois se implementa o ódio, se parte para a ideia de salvador da pátria e então se domina”, explica.
Ela entende que mais do que o momento político atual em si, é necessário contextualizar os fatos a partir de uma leitura crítica referenciada. “Isso diz de não acreditar em tudo que se ouve e tornar o debate mais sadio”, sentencia.
A professora se diz também preocupada com a postura de alguns educadores que acabam por reforçar o mal estar nas salas de aula. “Temos que ser os mais neutros possíveis para que os nossos estudantes formulem suas opiniões. Somos condutores desse processo e não influenciadores”, critica a docente.
A Escola Teia Multicultural, que recebe alunos da educação infantil e fundamental, não elaborou nenhuma ação específica para o atual contexto político. A escola entendeu que as ocorrências iriam ser orientadas dentro do trabalho pedagógico que já desenvolve com as crianças, que é a de educar em diálogo com as experiências do cotidiano. Lá, desde os quatro anos de idade as crianças já são envolvidas nas assembleias escolares.
Rosa Bertholini, uma das diretoras da instituição e também coordenadora pedagógica da Educação Infantil, ilustra com um caso recente: “Na turma 2, que reúne crianças de 4 e 5 anos, trabalhamos por projeto, e um deles passa pela Era Medieval por meio dos contos infantis. Em uma aula, a educadora falava sobre a Guerra de Troia quando uma criança disse que o que estava acontecendo no Brasil era bem parecido, que se tratava de uma guerra. Aí começou o assunto. Outro aluno disse que uns não querem que a Dilma seja presidente e outro emendou que ela fez muitas coisas erradas, mas que a gente não pode impedir que ela seja presidente. Em outro caso, ouvíamos uma música do Chico Buarque em outra atividade e uma menina trouxe que a mãe gostava muito dele porque ele era a favor da Dilma”, resgata a gestora.
Ela coloca que os discursos são sempre orientados de acordo com o cotidiano escolar, que preza a cultura de paz, o respeito às diferenças, buscando garantir não só a democracia interna da escola, mas também a do nosso país, onde todo mundo deve ter direito a voz e a voto”, reflete. A decisão da escola de não fazer algo específico, segundo Rosa, foi justamente para evitar possíveis situações de parcialidade.
No entanto, entre os casos de orientação pedagógica com vistas a construção de conhecimento e possibilidade de leitura crítica, ainda resistem casos de intolerância. Uma situação dessas encontrou a docente Gina Vieira Ponte, que atua nas escolas CEF 02 e CEF 20, em Brasília, ainda na época das eleições, situação em que a polarização também esteve bastante marcada. “Lembro que os meninos me perguntaram qual era a minha posição e eu falei. Não é correto fazer proselitismo, mas é necessário de maneira ética colocar a sua posição”, explica.
Após isso, Gina conta que os estudantes a pegaram pelo braço em uma postura violenta de tentar intimidar seu voto. Ela conta que sua posição foi de esperar “os ânimos se acalmarem” e propor uma conversa sobre a gravidade que representa violar o direito do outro ter uma posição diferente da sua e lançar mão de posturas agressivas para sustentar sua posição. E longe de se isentar de uma possível responsabilidade no fato, a educadora polemiza: “que tipo de pessoas estamos formando que não conseguem escutar o direito do outro pensar diferente? Quem tem fundamento não precisa agredir”, reflete.
O professor de Sociologia da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), Elie Ghanem, comentou os casos de intolerância que a polarização política têm fomentado nas escolas em uma conversa com a BBC Brasil, veiculada na página do canal no Facebook.
Suas reflexões partiram de um caso em que um menino de 8 anos foi hostilizado em uma escola de São Paulo por ter ido à aula com uma camiseta vermelha que trazia estampada a bandeira da Suíça.
Para Ghanem, as escolas precisam criar um clima de diálogo e respeito às diferenças, mesmo no que se refere aos trajes que as pessoas usam e entende que infelizmente o país não está muito preparado para lidar com esse desafio.
Ele recorre à História para apontar que não há a tradição de relacionamento baseado no diálogo e compreensão e que no lugar se foi afirmando a confrontação.
O pesquisador coloca que tanto nas escolas quanto nos ambientes domésticos há falta de informação sobre as leis que regem a educação e reforça as diretrizes do artigo 205 da Constituição Federal: “ele estabelece três grandes objetivos para a educação brasileira que parecem ser plenamente desconhecidos, como o pleno desenvolvimento da pessoa, do seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ele entende que esses princípios são pouco debatidos, não são orientadores dos cursos de formação inicial nem de grande parte da formação continuada do magistério. Em uma passagem, o pesquisador diz: “aparentemente fazemos muito pouco ou nada pelo desenvolvimento das pessoas”.
Para tentar solucionar essas questões, Elie Ghanem fala da necessidade das escolas serem pautadas pelo diálogo e, dessa forma, transformarem-se em locais de debates públicos sensíveis a toda a sociedade, afastando-as cada vez mais da concepção de transmissão de conhecimento numa via unilateral.