publicado dia 31/03/2016

Qual o legado da ditadura civil-militar na educação básica brasileira?

Reportagem:

“Na ditadura militar a escola era boa”. Essa frase, repetida inúmeras vezes, pode soar como verdade para alguns. Os fatos, porém, não parecem corroborar essa tese. Diversos estudos e especialistas que se debruçam sobre o tema apontam que a Ditadura Civil-Militar (1964-1988) deixou marcas profundas na educação brasileira entre elas, a prática de expandir sem qualificar.

No período, houve um aumento significativo do número de matrículas na educação básica, mas com poucos recursos e pouca formação docente, ou seja, sem se preocupar com a qualidade ofertada.

A Constituição de 1967, aprovada pelo Regime Civil-Militar, promoveu duas alterações importantes na política educacional brasileira. Primeiro, desobrigou a União e os estados a investirem um mínimo, alterando um dispositivo previsto na Lei de Diretrizes e Bases, aprovada em 1961.

A legislação anterior, aprovada pelo Congresso Nacional durante o governo João Goulart, previa que a União tinha que investir ao menos 12% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação e também obrigava estados e municípios a alocarem 20% do orçamento na área.

financiamento dinheiro queda deminuicaoNo artigo “O legado educacional do regime militar”, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Dermerval Saviani, cita estudo que mostra que o governo federal reduziu sucessivamente as verbas. Em 1970, esse percentual foi de 7,6%, caindo para 4,31% em 1975 e recuperando um pouco em 1978, quando foram gastos 5% do PIB na área.

Uma segunda mudança importante introduzida pela Carta de 1967 foi a abertura do ensino para a iniciativa privada.

“Sempre que possível, o Poder Público substituirá o regime de gratuidade pelo de concessão de bolsas de estudo, exigido o posterior reembolso no caso de ensino de grau superior”, previa o artigo 168.

Em 1969, o Regime reforçou esse caráter por meio da Emenda Constitucional nº1, considerada por muitos como uma nova Constituição, que previa em seu artigo 176 que “Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive mediante bolsas de estudos”.

Mudanças na estrutura

Paralelamente, a ditadura civil-militar também transformou radicalmente a estrutura de educação básica no país. O modelo prévio, aprovado em 1939 durante a vigência do Estado Novo e mantido pela Lei de Diretrizes e Bases de 1961, dividia o ensino em pré-primário (maternal e jardim de infância), primário com duração de quatro anos, com opção de mais dois em caso de cursos de artes aplicadas, e médio com 7 ou 8 anos anos divido em ginasial (4 anos) e colegial (mínimo de 3 anos).

Apesar de mantida a essência da estrutura anterior, a LDB de 1961 tornava o ensino obrigatório apenas nos 4 primeiros anos (equivalente ao Fundamental I). Apesar disso, a legislação previa que em casos de pobreza dos pais, insuficiência de escolas e doença ou anomalia grave da criança, as famílias não eram obrigadas a realizar as matrículas de seus filhos.

Educação e economia

O início da década de 1960 no Brasil foi marcado por uma grande efervescência política. De um lado, o presidente João Goulart, diversos intelectuais e movimentos sociais propunham reformas populares. De outro, militares, empresários e pensadores que se posicionavam contra tais medidas.

Esse segundo grupo promoveu um golpe, depondo João Goulart e colocando em prática um regime autoritário, a semelhança do que veio a ocorrer em outros países da América Latina. É dentro desse contexto que devem ser compreendidas as mudanças na política educacional do regime militar.

Em 29 de novembro de 1961, um grupo de empresários de São Paulo e do Rio de Janeiro formaram o Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Ipes) que teve papel decisivo para a derrubada do governo Jango e na organização da política educacional do período militar. Já no final de 1964, o Ipes realizou um simpósio para discutir uma reforma educacional…(Continue lendo).

A constituição de 1967 alterou essa estrutura, instituindo a Educação Básica como obrigatória durante 8 anos, influenciando uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação aprovada em 1971 que implementou um modelo mais próximo com o que existe atualmente.

Essas alterações tiveram como efeito um aumento significativo no número de matriculados nas escolas, uma vez que a ditadura tornou o ensino obrigatório. A expansão que se seguiu a tal medida, entretanto, não foi acompanhada por aumento das verbas.

“Os gastos do Estado com a educação foram insuficientes e declinaram, o que interferiu: na estrutura física das escolas, que apresentaram condições precárias de uso; no número de professores leigos, que aumentou entre 1973 e 1983, fato que se mostrou mais grave na região Nordeste, onde 36% do quadro docente tinha apenas o 1º grau completo; e nos salários e condições de trabalhos dos professores, que sofreram um crescente processo de deterioração”, escreveu a professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Renata Machado de Assis em seu artigo “A Educação brasileira durante o período militar: a escolarização dos 7 aos 14 anos“.

A docente conclui que apesar da ampliação do contingente de estudantes, a política educacional promovida no período serviu para reforçar as desigualdades educacionais, até hoje, um dos grandes desafios a serem superados na educação brasileira. “Esse quadro demonstra que, embora significativos contingentes das camadas populares tenham tido acesso à escola, foi ofertada a esse público uma educação de baixa qualidade e de segunda categoria. Isso manteve as taxas de evasão e repetência em níveis elevados”, conclui a docente.

povo no poder

Faixa na parte de trás, com os dizeres “universidade para o povo”, expõe elitização da educação superior

O professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Amarilio Ferreira Júnior, afirmou que a política de expansão da educação promovida pela ditadura também teve impactos diretos na formação docente.

Um dos exemplos foi a criação de uma modalidade de graduação conhecida como Licenciatura curta. Os cursos das mais diversas áreas tinham duração de dois anos e meio e davam condições formais para milhares de profissionais lecionarem nas salas que estavam sendo abertas.

“O Brasil não tinha o números de professores necessários para sustentar a expansão da escolarização no ritmo e na dimensão que ocorreu. O resultado foi o rebaixamento cultural e a precarização das condições de trabalho dos professores que continua sendo a realidade de inúmeras redes de ensino até hoje”, avalia o professor.

Saiba + Glossário: formação docente

Infraestrutura

O espaço físico também é algo essencial para uma educação de qualidade, comprometida com o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Locais para alimentação, prática esportiva e desenvolvimento de outras atividades são essenciais na formação do aluno dentro de uma perspectiva integral.

A expansão veloz e sem recursos, no entanto, produziu prédios escolares precários e sem os recursos necessários para o desenvolvimento da educação, o que se tornou outra herança perversa do regime militar.

A precarização da escola pública e a queda na qualidade do ensino, combinada com a abertura do país ao ensino privado, fortaleceu a migração dos filhos das elites para colégios particulares.

Essa migração fortaleceu as desigualdades sociais e educacionais. A partir desse momento, cria-se a lógica de que os filhos dos ricos têm acesso a uma educação de qualidade e, portanto, mais chances de chegar ao ensino superior, enquanto aos filhos dos pobres resta uma educação pública e precarizada que praticamente impossibilita sua entrada na universidade.

Qualificar mão de obra

O ex-ministro do Planejamento, Roberto Campos (1964-1967) afirmou durante o seminário “A educação que nos convém”, realizado em 1968, que a intenção do governo era formar os filhos dos pobres até o ensino médio, apenas para qualificar a mão-de-obra. A universidade era um local destinado para as elites.

“A educação secundária de tipo propriamente humanista devia, a meu ver, ser algo modificada através da inserção de elementos tecnológicos e práticos, baseados na presunção inevitável de que apenas uma minoria, filtrada no ensino secundário ascenderá à universidade; e para a grande maioria, ter-se-á que considerar a escola secundária como uma formação final”, afirmou Campos.

Para Amarilio, porém, é uma leitura simplista colocar toda responsabilidade da situação atual da educação nas costas da ditadura militar, uma vez que o país já tinha uma história de 450 anos de privilégios das elites, em detrimento da garantia de direitos para as maiorias sociais. Entretanto, ele afirma que o Regime agudizou algumas tendências.

menino pobre

Expansão sem destinação de verbas suficientes aumentou precarização da educação pública e acentuou desigualdades sociais

“A ditadura não criou, mas acentuou a dualidade entre o ensino público e o privado, da pré-escola ao ensino superior. A consequência é que as escolas públicas perderam a qualidade e passou a ser destinada aos mais pobres, enquanto o ensino privado começou a ser uma alternativa para os mais ricos e para as elites que secularmente governaram o país”, afirmou o docente.

Currículo

Durante a ditadura militar também foram introduzidas mudanças curriculares com a inclusão da matéria Educação Moral e Cívica para os alunos do 1º e 2º grau. Também foi alterado o objetivo da disciplina Organização Social e Política do Brasil (OSPB).

A OSPB foi pensada pelo ex-ministro da educação do governo João Goulart, Anísio Teixeira, como forma de formar dos estudantes conhecerem melhor a legislação. A ditadura mudou o caráter da disciplina, tornando-a um espaço que previa o culto à pátria e aos valores do Regime. A matéria se tornou, portanto, uma forma de exaltar o nacionalismo presente.

Eram abordados, também, conteúdos que “aprimoravam o caráter do aluno por meio de apoio moral e dedicação tanto à família quanto à comunidade”. Outra herança importante da ditadura civil-militar no Brasil é o recorrente uso de livros didáticos que serviam a um duplo proposito: uniformizar o discurso dos professores na sala de aula, evitando que saíssem do discurso imposto pelo regime militar e servir como guia para os professores que foram levados à sala de aula com pouca formação.

Juliana Miranda Filgueiras estuda o tema e escreveu um artigo chamado “O livro didático de educação moral e cívica na ditadura militar de 1964: a construção de uma disciplina” e explica que durante a o período, a educação básica tinha um papel importante em difundir as noções de cultura brasileira que se pretendia instaurar.

Notícia sobre a obrigatoriedade da disciplina de Educação Moral e Cívida/ Crédito: Arquivo Estadão

Notícia sobre a obrigatoriedade da disciplina de Educação Moral e Cívida/ Crédito: Arquivo Estadão

“Das diversas maneiras possíveis de divulgar os padrões de conduta pretendidos pelo Regime Militar, o livro didático de Educação Moral e Cívica pode ter tido um papel de suma importância. Antigos livros didáticos foram reestruturados e novos livros foram publicados”, afirmou Juliana no artigo.

A lógica de padronização do ensino por meio de livros didáticos ainda é uma constante em muitas redes de ensino hoje. Dentro da perspectiva da educação integral, o currículo deve ser pensado para contemplar o desenvolvimento de todas as potencialidades do sujeito e isso exige que ele seja mais discutido entre os atores que fazem parte do processo de ensino.

Alterações curriculares

Ao mesmo tempo, foram excluídas as aulas de Sociologia e Filosofia do currículo básico dos estudantes e também foram promovidas alterações importantes em outras disciplinas, notadamente as de humanas, como História e Geografia. A Campanha de Assistência ao Estudantes (Cases), nascida em 1958 durante o governo Juscelino Kubitschek, organizou a coleção História Nova do Brasil (HNB) que tinha como proposta redefinir o programa e o currículo de história ensinado nas escolas.

Estudantes foram protagonistas na luta contra a ditadura militar. PH FOT 554 24

Estudantes foram protagonistas na luta contra a ditadura militar. Crédito: Arquivo Nacional. Correio da Manhã. PH FOT 554 24

Os signatários da coleção, Joel Rufino dos Santos, Maurício Martins de Mello, Nelson Werneck, Pedro de Alcântara Figueira, Pedro Celso Uchoa e Rubem César Fernandes, elaboraram várias monografias que foram compiladas em um material distribuído pelo então Ministério da Educação e Cultura (MEC) aos professores.

Em artigo, o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Cléber Santos Vieira, diz que um das primeiras medidas do golpe militar foi proibir a circulação da publicação e promover inquéritos contra alguns de seus autores. A ditadura militar decidiu manter o nome da publicação, mas fazer uma nova versão onde foram apresentadas três monografias.

O objetivo era consolidar outra visão de História, na qual o nacionalismo era ressaltado. “Por esta lógica, as monografias ‘Conceituação de Estudos Brasileiros’ nos três níveis de ensino, ‘Feriados Nacionais’ e ‘A Educação Cívica e o Trabalho’ teriam sido parte do ensaio geral da obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica nos estabelecimentos escolares de todos os níveis, estabelecida pelo Decreto-Lei 869/1969 e toda enxurrada de livros didáticos publicados após sua edição, cujos conteúdos buscaram interromper a reforma de base no ensino de história”, afirmou o professor no artigo “Da História Nova do Brasil à Coleção de Educação Cívica: Histórias da Divisão de Educação Extra-Escolar do MEC (1963-1966)”.

A Educação Moral e Cívica deixou de ser obrigatória em 1992 e foi abolida em 1993.

Gestão Democrática 

dialogo participacao protagonismo hlOutro princípio importante para educação integral é a gestão democrática, prevista na atual legislação brasileira. Nesse ponto a ditadura foi desastrosa, fomentando uma organização hierarquizada e vertical do ambiente escolar. Além disso, impedia a ação política dos estudantes. O Regime perseguiu e matou alunos da educação básica e jogou na ilegalidade grêmios estudantis e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) pela Lei nº 4.464, de 6 de abril de 1964, conhecida como Suplicy de Lacerda.

Um dos marcos mais importantes foi o assassinato do secundarista Edson Luis por um soldado durante manifestação contra o preço do restaurante estudantil, no Calabouço, Rio de Janeiro.

Enterro do estudante secundarista Edson Luís morto pela Ditadura Militar. Arquivo Nacional. Correio da Manhã PH FOT 55427

Enterro de Edson Luís morto pela Ditadura Militar. Crédito: Arquivo Nacional. Correio da Manhã PH FOT 55427

O velório na capital fluminense levou mais de 50 mil pessoas para as ruas e se tornou um ato de resistência à ditadura, transformando o jovem em um grande símbolo da luta contra a opressão. A liberdade de organização dos estudantes secundaristas voltou a ser garantida somente em 1985, durante a presidência de José Sarney, com a aprovação da lei Nº 7.398.

“Aos estudantes dos estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus fica assegurada a organização de Estudantes como entidades autônomas representativas dos interesses dos estudantes secundaristas com finalidades educacionais, culturais, cívicas esportivas e sociais”, previa o artigo 1º da lei.

Com a redemocratização, a discussão sobre a importância da gestão democrática das escolas volta com força. Segundo o professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jamil Cury, durante a elaboração da constituinte voltou a se discutir o tema.

“Uma das primeiras movimentações em prol de uma educação democrática ocorreu no âmbito da constituinte e, posteriormente, na montagem do capítulo da educação da Constituição”, afirmou o professor no vídeo Princípios e Bases da Gestão Democrática (ver abaixo).

De acordo com o Erasto Fortes Mendonça, as discussões sobre gestão democrática continuaram e influenciaram na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1995 que começou a aprofundar uma visão de que a democracia na escola não se limita apenas a eleger diretores.

“Esse princípio se expande um pouco mais com algumas características, como a formação de conselhos escolares, participação dos professores na formulação do Plano Político Pedagógico da escola. A concepção de gestão democrática se amplia para além da eleição de diretores”, afirmou no mesmo vídeo.

Regime militar subordinou reformas educacionais a interesses econômicos

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