União com a comunidade faz Educação Integral acontecer na EE Dom José Baréa (RS)
Publicado dia 13/12/2024
Publicado dia 13/12/2024
Desde 2013, a EEEF Dom José Baréa, em Três Cachoeiras (RS), se empenha em criar e recriar seu projeto de Educação junto à comunidade. De 2021 para cá, contudo, enfrenta resistências para manter a essência de seu trabalho. Conheça a história da escola e confira um Raio-X detalhado de seu trabalho no Especial Escolas de Educação Integral.
Quando o Mais Educação foi encerrado em 2016, a comunidade da Escola Estadual de Ensino Fundamental Dom José Baréa, em Três Cachoeiras (RS), que aderiu ao programa em 2013, decidiu se unir para reformular o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e continuar a ofertar uma Educação de qualidade para as crianças e adolescentes.
“Fizemos uma pesquisa com as famílias e a comunidade para entender o que eles gostavam na escola e o que eles queriam mudar. Formamos um grupo junto com a associação de mães e a de moradores do bairro, a Pastoral e outras organizações comunitárias locais para mostrar e convencer a Secretaria de Educação de que era esse o projeto que a comunidade queria e lutaria para realizar”, relembra Julci Machado, vice-gestora da unidade.
O que surgiu da escuta dos estudantes e da comunidade foi o desejo por mais tempo na escola, a integração do currículo com a cultura e os esportes importantes para o bairro, além do compromisso em enfrentar a vulnerabilidade social das famílias. Em 2017, a escola passa a funcionar nesta perspectiva, que é alinhada à concepção de Educação Integral.
“Nesse processo também criamos nosso currículo subjetivo, que são os valores que desejamos desenvolver e que perpassam toda e qualquer prática na escola. O objetivo é desenvolver a autonomia dos estudantes, para que eles não precisem de vigilância e saibam cuidar de si e do outro”, conta Maura Raulino, gestora da escola.
Mais Educação
Criado em 2007, o programa Mais Educação foi a principal ação indutora da Educação Integral no país. Em 2016, durante o governo de Michel Temer (MDB), o programa foi substituído pelo Novo Mais Educação, encerrado em 2009. Saiba mais sobre a Linha do Tempo da Educação Integral.
Neste mapa de valores, três foram sugeridos pela comunidade: respeito, afetividade e responsabilidade. Os outros três, pelos professores: cooperação, honestidade e perseverança. Cada turma também cria seus próprios valores que vão nortear aquele ano e servir como parte de sua autoavaliação.
No incentivo à autonomia dos estudantes, a escola promoveu uma transformação que até então não previra: os banheiros passaram a não ter qualquer separação por gênero ou cargo. E a ideia partiu dos próprios alunos.
Em 2018, as meninas levantaram um incômodo: o banheiro que utilizavam era menor, e portanto vivia mais lotado, do que o dos meninos, que inclusive tinha espelhos e bancadas. “Em uma assembleia sobre o tema, os meninos disseram que elas poderiam dividir o banheiro com eles”, conta Julci.
Teve início um processo de teste, após estabelecerem combinados e removerem as placas. “Até hoje nunca tivemos nenhum tipo de problema”, afirma a vice-gestora. “Depois repensamos os banheiros separados para educadores e funcionários, que hoje é de todos. É um símbolo do nosso compromisso com a humanização da escola”, diz.
Em 2021, a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul implementou um regimento para toda a rede escolar do Estado. “Perdemos muita coisa que estava prevista no nosso PPP”, lamenta Julci.
“Agora a grade curricular vem formatada do Estado, então não podemos escolher se faz mais sentido ter mais aulas de Artes ou Educação Física, por exemplo. Antes fazíamos um trabalho mais integrado entre as áreas do conhecimento, agora está tudo mais dividido. O foco agora é nas notas, na padronização e em preencher planilhas”, continua a vice-gestora.
A escola também perdeu parte dos recursos de merenda, o que dificultou a oferta das quatro refeições diárias com qualidade. As famílias e a comunidade, mais uma vez, se uniram para fornecer todo o leite e banana consumidos na merenda.
“Nós somos um grupo coeso, tanto é que nossa escola não tem portão e a comunidade está sempre aqui e nós estamos sempre com eles. A gente se ajuda muito, se autossustenta e faz resistência para encontrar jeitos de fazer acontecer o nosso desejo e da comunidade em meio a essa padronização”, diz Maura.
Entre 2019 e 2021, a escola foi objeto de pesquisa do mestrado de Ilda Renata Agliardi, que publicou o livro Nina & uma escola chamada Bareá (Casa Leiria, 2021), para contar a história da escola para o público infantil.
“A Baréa tem o diferencial de não educar sozinha. Ela traz questões do cotidiano, problematiza junto com a comunidade e mostra para os estudantes que pode ser diferente. E faz isso ensinando valores, não só os conteúdos, e fora da sala de aula também”, observa Ilda.
Entre o que a escola conseguiu manter de sua essência nos últimos anos, está o trabalho com a Educação Ambiental, desenvolvido há duas décadas. A proposta é uma formação interdisciplinar para a sustentabilidade e a ecologia de forma permanente, a partir de problemas reais e do território, envolvendo os estudantes na criação de soluções práticas.
Para tanto, contam com a parceria da ONG Centro Ecológico, que disponibiliza técnicos em agroecologia para formar professores, estudantes, merendeiras e auxiliar nos projetos.
A horta da escola funciona como um laboratório a céu aberto. Eles aprendem a medir área e perímetro, medem temperatura da composteira e aprendem sobre calor, umidade e ciclo da água. Construíram uma cisterna para coletar água da chuva e irrigar as plantas, o que é realizado pelos estudantes a partir de uma escala combinada entre eles.
Também estudam os microrganismos presentes na terra e no processo de decomposição, o problema dos agrotóxicos e suas alternativas, a questão da segurança alimentar e ainda colhem as verduras que enriquecem a merenda escolar.
Em 2019, criaram o Projeto Ecoponto Baréa, um ponto de coleta de resíduos recicláveis da escola e da comunidade geral. Os materiais são recolhidos pela cooperativa municipal, exceto as garrafas PET, vendidas pelas turmas do 9° ano, que são responsáveis pelo projeto, para financiar parte de sua formatura.
Em 2021, foi a vez de criar o Projeto Compostagem na Escola Baréa, para reaproveitar os resíduos orgânicos da merenda como adubo da horta e da estufa escolar. “Quando o composto está pronto, os estudantes levam para as plantas, fazem a manutenção, adubo e limpeza dos cultivos”, relata a professora de Ciências Eliane Pereira Behenck, que leciona na escola há 7 anos.
Recentemente, também estudaram a crise climática no Brasil e no mundo sob diferentes perspectivas, fizeram oficinas sobre desperdício de alimentos e degustações de receitas feitas por eles com Plantas Alimentícias Não-Convencionais (PANCs).
“Eles aprendem na prática vários conceitos. Os que tinham medo e nojo da terra e dos bichos, agora vem correndo mostrar para a gente. Já vi várias vezes eles corrigindo os colegas sobre deixar a torneira aberta, separar o lixo e apresentar uma fruta ou verdura diferente uns aos outros. São coisas que percebemos na convivência entre eles e que com certeza se estende para fora da escola”, celebra a professora Eliane.
No cotidiano, na convivência com as pessoas e na capacidade de resolver problemas individuais e coletivos, a mãe de dois estudantes da escola, Josiqueli Ferreira Gomes, atribui à escola o desenvolvimento de seus filhos nestas habilidades.
“A escola tem uma política que faz eles pensarem e resolverem juntos os problemas e vejo o reflexo disso na nossa família. Eles passaram a ter mais maturidade em relação às diferenças”, afirma Josiqueli.
Mãe de estudantes de 7 e 13 anos, que estão na escola desde o começo do Ensino Fundamental, Josiqueli também destaca a aprendizagem das crianças. “Tem muita coisa que a escola repensa e faz diferente, então não tem muita escrita e decoreba. Eles fazem pesquisas, com autonomia, pensando em outras dimensões para além dos conteúdos, e incentivam muito a leitura. Meus filhos adoram ler por causa da escola”, afirma.
Para além de encontrar brechas para fazer valer seu projeto de Educação em meio à padronização da rede, a escola enfrenta outros desafios, como um corpo docente adoecido e com alta rotatividade, falta de recursos para levar os estudantes para atividades fora da escola e na unidade não há Atendimento Educacional Especializado (AEE).
“Não temos formação ou suporte do Estado para atender os estudantes com deficiência. Temos uma monitora itinerante que fica aqui por quatro horas semanais, o que é muito pouco”, critica Julci.
No primeiro semestre de 2024, quando o Rio Grande do Sul foi afetado pelas enormes enchentes, a escola passou a receber estudantes e famílias que perderam suas casas na tragédia.
“Aparece nas rodas de conversa o quanto as crianças se sentem desamparadas e os adultos em situação terrível de lutar contra a precariedade da vida material. Fazemos muito acolhimento dessas crianças e estudamos juntos o que está acontecendo nessa crise climática, porque também é nosso papel enfrentá-la”, diz Julci.
Ficha técnica | Especial Escolas de Educação Integral
Coordenação técnica: Fernando Mendes, Natacha Costa e Raiana Ribeiro
Edição: Tory Helena
Reportagem: Ingrid Matuoka
Conteúdo digital: Larissa Alves
Design: Vinicius Corrêa
Centro de Referências em Educação Integral
O Centro de Referências em Educação Integral promove, desde 2013, a pesquisa, o desenvolvimento metodológico, o aprimoramento e a difusão gratuita de referências, estratégias e instrumentais que contribuam para o fortalecimento da agenda de Educação Integral no Brasil.