Sustentabilidade, identidade e educação integral: conheça a EE Alceu Amoroso Lima (RN)

Publicado dia 15/08/2022

A EE Alceu Amoroso Lima, que fica na periferia de Natal (RN) e atende 415 estudantes do Ensino Fundamental, vem lutando para manter o legado do Mais Educação vivo, apesar da descontinuidade do programa de Educação Integral, e para fazer valer os ensinamentos de educadores e educadoras como Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Isabel Alarcão, Moacir Gadotti e John Dewey em todas as ações da escola. 

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Um dos projetos permanentes que representa esse objetivo é uma horta construída pelos estudantes em 2019. Em torno dela se articulam várias atividades e áreas do conhecimento. A iniciativa começou com a construção de um pluviômetro feito de garrafa PET e régua pelo professor de Geografia Alexandre Jurema junto a sua turma de ano para acompanhar as chuvas da região. 

Enquanto instalavam a ferramenta nos fundos da escola, os estudantes começaram a sentir vontade de transformar aquele espaço e decidiram construir uma horta, algo que já faz parte do cotidiano de boa parte deles, já que muitas de suas famílias trabalham na área. 

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O pluviômetro feito pela turma e o local onde ele foi instalado que, depois, se tornou a horta

Crédito: Alexandre Jurema

A professora de Matemática, Rosane Silva, se juntou à atividade para ajudar os adolescentes a delimitar a área e o volume do espaço de plantio. Depois, estudaram os tipos de solo, como preparar os canteiros e fazer a adubação, os perigos dos agrotóxicos e alternativas orgânicos, os tempos de plantio e colheita e o processo de germinação. A turma colocou a mão na massa e plantou coentro, cebolinha, alface, rúcula e outras hortaliças que passaram a ser colhidas e utilizadas para enriquecer a merenda escolar. É assim que nasce a Horta Amorosa. 

Até quando acontecia um imprevisto e as plantas eram devoradas por lagartas, davam um jeito de tirar proveito da situação como aprendizado. “Estudamos o ciclo de vida das lagartas e sua importância para a natureza”, relata o professor Alexandre, destacando que as turmas gostaram especialmente de passar mais tempo fora da sala de aula e aprendendo ao ar livre.

“Quando a família e o estudante se vêem dentro da escola, eles se identificam, valorizam e passam a participar mais do trabalho, que também flui melhor e de forma mais significativa para todos”, afirma Erick Priscila.

Com o tempo, as turmas foram dominando novos plantios e expandindo a variedade de plantas. A professora de Matemática sugeriu, então, um projeto de educação financeira: os estudantes aprenderam a precificar os alimentos, venderam em uma feira aberta à comunidade e agora vão gerir os recursos e decidir o que querem comprar para a escola. “Já ouvi pelos corredores que eles querem bolas novas para jogar”, relata Alexandre. 

A escola, que há cinco anos não utiliza nenhum material descartável por sugestão de um estudante, agora também planeja expandir a horta para beneficiar as famílias mais socialmente vulneráveis. 

A professora de Língua Portuguesa Erick Priscila Honorato também se envolveu no projeto trabalhando a valorização da identidade e da cultura popular local. Ela sugeriu aos estudantes que pesquisassem as simpatias e as plantas medicinais mais conhecidas e utilizadas pelas famílias. Os adolescentes voltaram com várias receitas, dicas de uso e até mudas das ervas, que foram plantadas na horta.

A pesquisa e plantio das ervas medicinais também fez parte de outro projeto maior: o Museu do Eu. Há anos a escola colhe informações sobre seus estudantes e famílias e as mantém registradas para desenhar o perfil do corpo discente e para que os estudantes atuais conheçam quem já passou por ali. 

A partir dessa iniciativa, a professora Erick Priscila decidiu ampliar o trabalho. Ela investigou junto com os estudantes os brinquedos e brincadeiras típicas da região, as fotos que mostram a transformação do bairro ao longo das décadas e as lendas e folclores. “Inclusive fomos conhecer o local onde nasceu a lenda do papa-figo aqui na cidade”, relembra.

Para montar a exposição, os estudantes trouxeram fotos e objetos da família: bonecos, redes, ferro de carvão, lamparinas e até a manta que embalou a bisavó de um estudante quando bebê. “Quando as famílias vieram, foi muito interessante, porque aconteceu de muitas pessoas se reencontrarem vendo as fotos umas das outras, como um homem que foi técnico do jogo de várzea para alguns pais e avós dos estudantes”, relata a professora.

Para ela, valorizar a identidade e a cultura dos educandos é parte essencial do desenvolvimento integral dos sujeitos, que podem compreender quem são em um determinado contexto, e contribui para o pertencimento de todos e todas à escola.

“Quando a família e o estudante se vêem dentro da escola, eles se identificam, valorizam e passam a participar mais do trabalho, que também flui melhor e de forma mais significativa para todos”, afirma Erick Priscila. 

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Os estudantes cuidando da Horta Amorosa

Crédito: Alexandre Jurema

Uma das evidências de que isso realmente funciona é o fato de que 20 estudantes que já se formaram na escola continuam envolvidos em projetos de forma voluntária. É um grupo de ex-estudantes que hoje conduz a fanfarra da escola, por exemplo. Outros estão envolvidos na Rádio Alceu, que toca músicas e anúncios durante os intervalos das aulas, e na gestão das mídias sociais da escola – é Matheus Rian, 17, quem coordena esse trabalho, enquanto cursa o ano do Ensino Médio em outra unidade pública da cidade e é estagiário de nível médio. 

“Quero ser jornalista, então ter essa oportunidade já me prepara para a minha futura profissão, além de me sentir motivado a fazer essas atividades porque nessa escola sou tratado de forma respeitosa e carinhosa e gosto de trocar com os estudantes atuais de lá. Nós vamos fazendo tudo juntos, sem precisar de uma autoridade mandando”, afirma Matheus.

O Projeto Político Pedagógico da EE Alceu Amoroso Lima

Entre 2012 e 2019, a escola fez parte do Mais Educação e do programa sucessor, o Novo Mais Educação. Quando ambos foram encerrados, a gestão se esforçou para manter a educação integral, enquanto concepção, viva na escola. Reinan Alessandro de França, diretor da escola, e Andrey Oliveira, vice-diretor, foram ambos professores da escola antes de assumir a gestão em 2017 e, assim que a dupla chegou ao cargo, tomaram como primeira ação escrever o PPP da escola, que até então não existia, garantindo a participação de toda a comunidade escolar. Até hoje, o documento é escrito por todos e revisado constantemente. 

Leia o PPP da EE Alceu Amoroso Lima na íntegra. Alguns trechos estão em revisão, como parte constante do trabalho de atualizá-lo. 

“Educamos para e pela cidadania, ampliamos os espaços de aprendizagem para além da sala de aula e da escola. Valorizamos o nosso patrimônio cultural material e imaterial do centro e da periferia da cidade. Nosso intuito, como diz John Dewey, é preparar a criança e o adolescente para o agora, não para o futuro; escola não é estágio para a vida, sabendo que educar é preocupar-se com o destino da humanidade, como ensinou Darcy Ribeiro”, sintetiza Andrey. Abaixo estão seis pontos centrais do PPP que estruturam o trabalho realizado pela escola.

  1. Conhecimento da realidade do aluno como ponto de partida. Todos os anos, reúnem dados dos estudantes e suas famílias. “Queremos saber quem ele é, de onde vem, onde os pais trabalham, quantas pessoas habitam a casa. Precisamos conhecer nossos estudantes e suas realidades, porque ensinar depende de interessar-se pela verdade do outro e porque assim podemos incluir a todos na escola de acordo com suas especificidades”, explica Andrey. Todos os anos, a escola promove a Semana de Educação Inclusiva junto a três escolas parceiras, com a participação de palestrantes, atletas paraolímpicos, psicólogos e equipe médica – esse projeto permitiu, por exemplo, a compra de 20 óculos para famílias que não tinham condições de comprá-los.
  2. Formulação dos princípios de ensino e aprendizagem. Conhecendo os sujeitos, é possível formular os objetivos de ensino e aprendizagem, ressaltando o motivo de ensinar determinado conteúdo. “Isso torna o conhecimento mais viável e estimula o professor a ser coautor do material didático”, diz o vice-diretor. 
  3. Problematização. Este ponto diz respeito a ensinar por meio de questões reais e do contexto dos estudantes, respeitando a curiosidade das crianças e adolescentes e o papel do professor enquanto mediador das aprendizagens, a fim de construir conhecimentos pertinentes. “Disso surgiu um movimento de pensar novas organizações curriculares, os agrupamentos das turmas e de articulação com o território”, conta Andrey.
  4. Experimento como estratégia para as descobertas. “[Celestin] Freinet fala da interação do aluno com o meio – que muda o aluno e muda o meio. E Anísio Teixeira traz a pesquisa científica, o colocar a mão na massa, para desenvolver o ensino. Então buscamos promover isso sempre em todas as áreas do conhecimento”, diz. 
  5. Visualizar a comunidade como um laboratório. Um dos projetos da escola envolveu conhecer um canto com mangueiras plantadas há mais de 50 anos, junto com a formação do bairro, e a luta dos estudantes para preservar o espaço junto ao poder público. Em outra ocasião, as turmas entrevistaram uma poetisa centenária que criou um hino para o bairro. “Darcy Ribeiro já dizia que todo o percurso da casa até a escola já é educativo. Então para nós é muito importante encarar a comunidade como um laboratório, tirar estudante e professor da sala de aula e colocar o saber popular como tão importante quanto o erudito”, afirma Andrey.
  6. Cooperação como prática de trabalho. Na escola, estudantes de diferentes anos são agrupados com periodicidade para estudarem juntos, professores trabalham de forma interdisciplinar, cada turma tem seu representante e conselho escolar e de classe são ativos e participativos. “Promover encontros em um mesmo espaço pedagógico é um dos nossos maiores objetivos”, destaca o vice-diretor. 

Os desafios enfrentados pela escola

No final de 2016, a Alceu Amoroso Lima estava prestes a ser fechada por falta de estudantes, de professores e baixo desenvolvimento educacional. Um ano depois, receberam uma condecoração da Secretaria Municipal de Educação de Natal (RN). “Hoje não se fala mais em fechar a escola, ao contrário, nos tornamos referência”, diz Reinan. 

“Na primeira jornada pedagógica, todo mundo participou – professor, porteiro, merendeira – porque todos têm que saber e participar do que acontece na escola. O trabalho foi de muito planejamento, de motivação e de fazer com que todos voltassem a acreditar na escola e em seu próprio potencial “, diz o diretor da escola.

“Na primeira jornada pedagógica, todo mundo participou – professor, porteiro, merendeira – porque todos têm que saber e participar do que acontece na escola”, diz Reinan Alessandro de França

Os índices de reprovação e evasão escolar, que estavam em torno dos 70%, hoje não chegam a 5%. Onde havia dificuldade para formar turmas, há fila de espera. Para Reinan, o Mais Educação foi a ferramenta que mostrou o caminho para reverter o cenário da escola, junto a uma equipe qualificada e empenhada. 

Apesar dos avanços, a escola ainda sofre com a infraestrutura. Está prevista para o final deste ano a primeira reforma na escola fundada em 1983 que, por muito tempo, contou com apenas um único banheiro. E embora a escola tenha um dos melhores times de Taekwondo do estado, falta uma quadra para praticar outros esportes. “A escola doou quase 70% de seu terreno para a construção do maior ginásio municipal, mas não temos direito nem a um horário para nossas crianças e adolescentes usarem o espaço”, lamenta o diretor. 

Refletindo sobre a trajetória da escola, a professora Erick Priscila destaca que o diferencial da Alceu Amoroso Lima é a vontade de fazer, mesmo que nem sempre saibam como fazer. “Olha o que conseguimos fazer apesar das dificuldades. Imagina o que faríamos se tivéssemos a estrutura devida? Na verdade, se todas as escolas tivessem isso. Porque não falta a nós e nem às outras escolas vontade de fazer. Falta estrutura, faltam condições. Ninguém sabe os sacrifícios que tivemos que fazer, mas foi uma possibilidade nossa, que muitos outros gestores e professores não fazem porque não tem como – jamais porque não querem”, ressalta a educadora. 

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