Projeto Kalinka busca visibilizar a condição cigana e assegurar os direitos dessa população
Publicado dia 19/12/2014
Publicado dia 19/12/2014
“Nosso grande objetivo é visibilizar uma história perdida e esquecida”. A fala de Lucimara Cavalcante, coordenadora do Projeto Kalinka – Ciganos na Minha Escola: uma história invisível, resume o enfrentamento feito pela iniciativa, em atuação desde 2009. A demanda para sua execução nasceu na Associação Internacional Mailê Sara Kalí (AMSK/Brasil) que tem como missão propagar a história, tradições e costumes dos povos romani (ciganos) do Brasil.
“As crianças e jovens de etnia cigana estão acessando mais as escolas, a maioria a partir do Bolsa Família que traz essa obrigatoriedade. No entanto, os profissionais da educação não tiveram instruções sobre essa cultura no país”, observa Lucimara. Como consequência dessa desinformação, a AMSK recebe recorrentes denúncias de bullying e racismo institucional sofrido pelas famílias ciganas.
No Brasil, de acordo com dados do IBGE, os ciganos chegaram por volta de 1574, vindos de Portugal com imigrantes e pessoas banidas. Essa narrativa, no entanto, foi descartada dos livros de história e é aí que se centra a atuação do Kalinka: levar informações aos gestores escolares e públicos a fim de promover o reconhecimento dessas identidades e cultura e assegurarem os direitos desse segmento populacional.
A primeira atividade do projeto aconteceu, em 2009, no Centro de Ensino Fundamental (CEF) 104 Norte, na Asa Norte, em Brasília. De início, foram ministradas aulas de danças ciganas como atividades extracurriculares na unidade, percurso que teve duração de um ano. Nesse período, no entanto, conforme relata a coordenadora, foram crescentes as reclamações de maus tratos à parcela de alunos ciganos da instituição, “muito por conta do preconceito arraigado de que ciganos são ladrões”.
Por perceber que esses estudantes teriam que negar a própria identidade para de fato serem incluídos no processo educativo, a equipe da AMSK, que ganhou apoio da diretoria pedagógica da escola, pensou em desenvolver um mecanismo para contribuir com o conhecimento e cultura dos povos ciganos do Brasil e demais países.
Inicialmente, foi realizado um workshop com todos os professores para que eles tivessem contato com a realidade cigana, com base em dados de pesquisas nacionais e internacionais; feito isso, os docentes foram convidados a construir coletivamente uma metodologia de trabalho para inserir a temática no currículo. “A dinâmica envolveu times de futebol, em que os alunos eram convidados a se apresentar e dizer para que time torciam. As torcidas com até um ou dois integrantes deveriam juntar-se com os alunos que não gostassem de futebol; e os demais, deveriam se agrupar em suas torcidas. O grupo menor constituía uma família cigana e representava a minoria; os demais, passaram a ser os países por onde os ciganos deveriam passar com suas caravanas”, explica Lucimara.
Cada torcida tinha o poder de estabelecer barreiras ou o total impedimento para que a caravana dos ciganos adentrasse o país representado, enquanto ao grupo cigano cabia encontrar um argumento que justificasse a sua entrada naquele território. Para a coordenadora, a vivência foi fundamental para que os alunos refletissem sobre as condições encontradas por essa população, como as leis de fronteiras entre países, os fatores ambientais, climáticos e culturais, o preconceito e a discriminação.
A atividade também convidou os professores a refletirem sobre como a temática poderia dialogar com as diferentes disciplinas ofertadas. Para além da sensibilização, o trabalho teve continuidade em sala de aula.
A atuação no âmbito escolar trouxe reconhecimento por parte do Governo Federal o que possibilitou o início de um trabalho junto aos gestores públicos, em 2013, com o objetivo de evidenciar o arcabouço legislativo e marcos legais favoráveis a essa população, caso do decreto 6040 de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, e o decreto de 25 de maio de 2006 que instituiu o Dia Nacional do Cigano.
No Distrito Federal foram realizadas sensibilizações junto aos dirigentes municipais e estaduais que envolveram aproximação com núcleos ciganos, abrindo possibilidades de diálogo dessas representações com diversas instâncias governamentais como o Ministério Público. Outra frente aconteceu no Paraná, a partir de parceria com o Departamento de Educação, Diversidade e Direitos humanos da Secretaria da Educação. Foram realizados três dias de formação continuada à equipe técnica. “A atuação deu tão certo que foi criada na Secretaria de Educação uma divisão escolar cigana”, comemora Lucimara.
A coordenadora pontua que, no caso da gestão pública, a principal atuação do Projeto Kalinka se faz com a abertura de possibilidades ao diálogo. “Quando as parcerias acontecem ficamos numa retaguarda de nível técnico, disponibilizando relatórios, informações, mas entendemos que é necessário que as representações e núcleos familiares criem seus espaços com o estado”, afirma.
A atuação do projeto vem contribuindo para o entendimento da diversidade da expressão cultural cigana, com suas danças, músicas, artesanato e culinária próprias. Lucimara reforça que o projeto não tem a pretensão de representar o povo cigano, diverso e composto por inúmeros núcleos familiares. “O nosso trabalho é de levar informação ao gestor público do país, seja a nível federal, estadual ou municipal e estabelecer o diálogo, buscando a noção de cidadania”, atesta.
Ela entende que, com a sensibilização, os gestores escolares passaram a identificar essas crianças e jovens nas escolas e a promoverem a valorização dessas identidades. No CEF 104 Asa Norte, por exemplo, foram orientados 20 professores que cuidaram em replicar o conhecimento para toda a comunidade escolar.
A coordenadora também reconhece o fortalecimento das políticas públicas em relação às questões do povo cigano, com foco nas ações afirmativas pela defesa de seus direitos. Em abril deste ano, a AMSK/Brasil foi requerida como consultora de um grupo de trabalho criado pelo Ministério da Educação (MEC) pela implementação da resolução nº 3, de 16 de maio de 2012, que define diretrizes para o atendimento de educação escolar para populações em situação de itinerância. “Elencamos uma série de necessidades principalmente relativas à escolaridade e procuramos sensibilizar a gestão”, explica. Outro ganho, como coloca, foi a aprovação do artigo 141 na Conferência Nacional de Educação (Conae) 2014, que trata da disseminação de materiais pedagógicos que contemplem a realidade do povo cigano.
A conjuntura alcançada rendeu à iniciativa o Prêmio Nacional Educação em Direitos Humanos na categoria Sociedade. “O prêmio é a prova de que todas as nossas ações são necessárias para promover o conhecimento que ampara a população cigana”, finaliza a gestora.
Escola