publicado dia 08/05/2023

Os limites e as possibilidades de um psicólogo escolar em casos de violência extrema

Reportagem:

Um dos caminhos propostos para enfrentar questões de violência na escola e contra ela, sobretudo após os episódios mais recentes de ataques às escolas, é demandar um psicólogo escolar na unidade educacional. Contudo, o trabalho desse profissional pode ser mais potente se ele fizer parte da rede de Educação e atuar de forma intersetorial. 

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Em 2020 foi aprovada a Lei no. 13.935, que “dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica”. “São equipes multiprofissionais que dão assistência a um determinado número de escolas de uma rede, com visitas frequentes e discussões com a comunidade escolar para encontrar soluções coletivas”, explica Roseli Caldas, professora na Universidade Mackenzie, em São Paulo (SP), doutora em psicologia escolar e ex-presidente da Associação Brasileira de Psicologia Escolar Educacional (ABRAPEE).

“A violência na escola não é da escola, é da sociedade, e ela é reproduzida na escola”, explica Roseli Caldas

A proposta, portanto, distancia-se de um atendimento individualizado como aconteceria em uma clínica. Na prática, também seria difícil concretizá-la em termos de política pública nacional sem aumentar as desigualdades entre escolas e entre redes. “Temos unidades sem saneamento básico, sem professores”, lembra Roseli.

Para além destes fatores, a questão da violência é mais complexa do que um único profissional poderia dar conta. “A violência na escola não é da escola, é da sociedade, e ela é reproduzida na escola”, observa a psicóloga.

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Nesse sentido, é necessário um cuidado especial para não tratar uma questão coletiva da sociedade como se fosse individual, estigmatizando estudantes mais reservados, por exemplo.

“A timidez e as vestimentas de um estudante não podem definir quem é essa pessoa ou indicar que ele fará isso ou aquilo”, reafirma Carla Alessandra Sartorelli Guimarães, psicóloga escolar na rede municipal de São Paulo (SP) e mestranda na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). 

Documentos como o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental“, da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, não buscam esse tipo de caracterização. No lugar, pedem atenção para estudantes que demonstram interesse excessivo por histórias de massacres e que verbalizam entre os pares ou nas redes sociais um culto à violência.

Ainda assim, diante de sujeitos em formação que possam expressar esse tipo de discurso e agredir verbal ou fisicamente os colegas, as especialistas pedem um trabalho sério de responsabilização – não punição – e empatia com essa criança ou adolescente. Justamente por estar em desenvolvimento, há a oportunidade de interromper um ciclo de violências.

“A criança que apanha é a que mais bate nos amigos, porque é a maneira como aprendeu a se relacionar”, diz Roseli. “Tem coisas que acontecem no ambiente escolar, no território e na família que contribuem para o estudante permanecer nesse estado. Ele não pode ser nomeado como único responsável, o ‘desajustado'”, complementa Carla. 

“Quando estamos atentos ao que o estudante e a comunidade escolar está dizendo, conseguimos favorecer uma reflexão por meio da escuta e do diálogo, um papel que também é da escola”, afirma Carla Guimarães

Ela relembra diversos casos que acompanhou de estudantes que usam a violência como forma de linguagem nas suas relações. Quando parava para escutá-los, encontrava histórias de desamparo, abandono, violências sistemáticas e múltiplas violações de direitos. Em algum lugar essas crianças e adolescentes aprenderam a ser violentos para agora reproduzir tais ações e ideias.

“O que esse estudante entende sobre massacres? De onde vem isso nele? O que é essa rede social? Tem idade para estar nela? Se não tem, onde está o acompanhamento da família? Quando estamos atentos ao que o estudante e a comunidade escolar está dizendo, conseguimos favorecer uma reflexão por meio da escuta e do diálogo, um papel que também é da escola”, afirma Carla. 

A importância do trabalho intersetorial

Nesta missão, a escola não pode ficar sozinha e um psicólogo escolar pode contribuir. A partir da Secretaria de Educação ou de Diretorias Regionais de Educação, esse profissional pode ter uma perspectiva mais ampliada do que se passa em uma unidade ou território. 

“O psicólogo escolar é importante para compreender o contexto social e cultural desse sujeito que se apresenta violento dentro da escola e observar a dinâmica, o jeito de ser da escola. Olhar de fora da unidade é um diferencial porque a visão é mais ampla e porque ele não está submetido a uma hierarquia. Assim, pode apontar possibilidades de transformação para a gestão escolar com mais facilidade e ter um acesso maior aos estudantes, já que não representa essa escola”, explica Carla. 

“Um psicólogo não vai dar conta de tudo”, destaca Roseli

Além do psicólogo escolar, a rede de proteção intersetorial também deve estar próxima. Em São Paulo (SP), a Secretaria de Educação criou o Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (NAAPA). Entre suas atividades, há reuniões periódicas entre agentes de diferentes setores da política pública para discutir, encaminhar e acompanhar casos de estudantes em situação de violações de direitos. 

“Um psicólogo não vai dar conta de tudo, de todas as questões sociais e de violências que vão parar dentro da escola. Existe uma rede de serviços do território que pode e deve ser acionada”, diz Roseli. 

Cultura de paz: das escolas à sociedade 

Em uma das escolas em que Carla atua, a volta presencial após o período mais crítico da pandemia de Covid-19 foi especialmente difícil. No trabalho com os adolescentes, percebeu que eles haviam enfrentado problemas sérios durante o isolamento social, além das precárias condições para aprendizagem.

“Os estudantes de uma turma com queixa de indisciplina, relataram que tudo isso sobre a pandemia foi deconsiderado por muitos profissionais. Não houve diálogo sobre a situação vivenciada como as perdas de familiares, de emprego, entre outros, após o retorno presencial. Sentiram-se muito ‘cobrados’ e aqueles com dificuldades de compreensão, por muitas vezes foram ‘ignorados’ na sala de aula e não se sentiam a vontade para dialogar e perguntar sobre suas dúvidas com os professores”, relata Carla.

Com a promoção de espaços de diálogo, a situação vem melhorando. “É preciso atenção para as microviolências que acontecem na escola, tanto entre os estudantes como quando há situações de conflitos como aquelas promovidas pela própria escola, quando chama a atenção dos estudantes de maneira inadequada, ao alterar a voz ou com caráter punitivo, e exclui os estudantes sem oferecer escuta e diálogo”, reforça.

Também é necessário observar as atitudes mais sutis que podem revelar racismo e preconceitos. No trabalho com essa mesma escola, os estudantes puderam revelar a Carla o estigma que sentiam ali.

“A partir da intervenção da Psicologia Escolar mediada pela arte, através da intervenção com a apresentação da música AmarElo, do Emicida, eles foram se colocando enquanto sujeitos daquele lugar, daquele território, das dificuldades que eles têm, e revelaram que são estigmatizados por muitas pessoas da sociedade como ‘bandido e noia’, como disse um estudante, ao relatar o que escuta de muitas pessoas que não pertencem ao seu território, e das violências sociais que vivencia no cotidiano“, conta Carla.

Nesse sentido, a escola pode atuar como um pólo gerador de cultura de paz, começando por ela própria e alcançando as famílias e os territórios. “Tive um estudante que fazia ameaças. Quando fui escutá-lo, entendi que fazia parte de algo que ele acreditava, porque o pai tinha um arsenal de armas em casa. Então para aquele contexto e família, era algo natural, e fui trabalhando com ele que na escola essas armas não podem entrar e que é preciso aprender a dialogar para resolver problemas”, relata Carla.

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O relatório da Campanha também considera a dimensão coletiva do problema das violências contra escolas. Entre as medidas necessárias para enfrentá-la, citam “leis que proíbam a criação e fechem as centenas de academias e institutos mirins militares – que ofertam cursos militares para crianças e adolescentes e colocam crianças, a partir de 5 anos de idade, para manusear, quando não armas de verdades, réplicas destas – e que proíbam o armamento da população e os discursos que o sustentam”.

“O ponto central da cultura de paz nesses casos é trabalhar como as relações se estabelecem, porque isso é aprendido: ser frio ou ser empático diante da dor do outro, ter opiniões divergentes e ofender ou saber respeitar”, explica Roseli.

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