publicado dia 19/04/2023

3 perguntas para Lola Aronovich sobre ataques às escolas e masculinidades

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Quase a totalidade dos ataques às escolas no Brasil e no mundo são realizados por meninos e homens. As vítimas, via de regra, são meninas e mulheres. Esse tipo de violência escancara a urgência de refletir e debater as masculinidades.

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Em um levantamento feito pelo FBI, que analisou tiroteios em massa entre 2000 e 2018, apenas 9 dos 250 atiradores eram mulheres. Em outros tipos de violência extrema, o padrão se repete. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, cerca de 92,5% dos casos de homicídios dolosos (intencionais), ocorridos em 2019 no Brasil, foram cometidos por homens. 

Ainda que existam outros fatores que levem a essa triste estatística, as escolas, enquanto espaços de formação humana integral, podem desempenhar um papel importante em mostrar e permitir aos meninos outros jeitos de ser e estar no mundo, de lidarem com suas emoções e com os outros. 

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“A misoginia é a porta de entrada para drogas mais pesadas na internet. Que os meninos possam se abrir, receber atenção, refletir sobre como eles agem, o que sentem, e entender que eles não precisam defender essa masculinidade tóxica e frágil, que tem outros jeitos de ser homem”, explica Lola Aronovich, professora na Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em feminismo, cinema, literatura, política e mídia.

A docente também contribuiu com a elaboração do relatório O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental e integra o Grupo de Trabalho criado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania para combater o ódio, o extremismo e as fake news no Brasil.

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a especialista explica que o começo da cooptação de meninos por fóruns da extrema direita depende de eles não reagirem ou contestarem falas violentas contra mulheres, negros e LGBTQIAP+, reforçando a importância de uma educação em direitos humanos e para a diversidade. 

Ela também elucida como acontece a escalada da violência e as diferentes frentes que podem ser mobilizadas para enfrentar o problema. Leia a entrevista na íntegra: 

Centro de Referências em Educação Integral: Tudo indica que os ataques recentes às escolas brasileiras foram feitos por um menino e um homem que faziam parte de fóruns online de incitação ao ódio. Você poderia explicar melhor o que são esses fóruns, o que defendem, e sua conexão com a extrema direita? 

Lola Aronovich: Existe um termo guarda-chuva, red pill, para grupos masculinistas variados. Fazem parte dele os incels, que são os celibatários involuntários; MRA, ativistas pelos direitos dos homens; Pick up artists, que ganham dinheiro com os incels prometendo ensinar a arte da sedução, entre outros. Tudo o que temos no Brasil veio copiado dos Estados Unidos, tanto que os nomes são em inglês. 

“O denominador comum entre todos eles é a misoginia, mas também há muito racismo e homofobia”, diz Lola Aronovich.

O denominador comum entre todos eles é a misoginia, mas também há muito racismo e homofobia. Em geral, eles são muito frustrados com a vida em geral, não só com mulheres. Não trabalham, não estudam, não se relacionam. 

Uma parte disso tem a ver com o capitalismo que falhou, então qualquer promessa de trabalhar muito e se dar bem, de reproduzir o padrão dos pais, acabou. 

Outra parte disso tem a ver com serem homens, brancos e heterossexuais. Eles possuem um sentimento de merecimento, se sentem roubados e injustiçados. Por exemplo, dizem que mulheres e negros estão roubando suas vagas de emprego – quem disse que a vaga era deles? Não conseguem reconhecer que apesar de todos os privilégios, nada vem fácil e automaticamente. 

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Eles são muito vitimistas, se dizem as verdadeiras vítimas da sociedade moderna. Nisso, se revoltam contra mulheres, gays e negros. É um jeito de direcionar o ódio que sentem pelo fracasso de suas próprias vidas contra alguém. 

Eles deturpam e exageram a realidade. Mentem. É a mesma coisa na extrema-direita com as fake news, de criar um universo paralelo. Na esquerda existem homens machistas, homofóbicos e racistas, a diferença é que eles não fazem parte de grupos organizados que apoiam e incitam essas violências. Na extrema-direita, isso é requisito.

CR: Como acontece a cooptação de meninos por esses grupos masculinistas e como se dá a escalada da violência? 

LA: Quase todos os massacres no Brasil e no mundo são cometidos por meninos e homens e houve uma mudança de idade nos últimos tempos. Até 2000, a maior parte dos massacres era cometido por homens de 25 a 40 anos e isso não era só em escolas e universidades, mas também lanchonetes, escritórios e ambientes sociais que eles conheciam e frequentavam. Depois, se tornou mais frequente massacres cometidos por jovens de 18 a 25 anos e, agora, estamos vendo isso acontecer com meninos de 11, 14 anos.

Isso tem a ver com a popularização da internet após os anos 2000, que trouxe muitos benefícios, mas também ampliou o alcance de coisas como o negacionismo do Holocausto, o neonazismo e grupos de masculinistas, que já existiam antes, mas eram pequenos. 

Em 2016, também vimos uma mudança, com o crescimento da extrema direita em todo o mundo. Teve a eleição de Trump e Bolsonaro, e até o próprio Brexit, que veio antes, está ligado a isso. 

Esses grupos masculinistas, que até então usavam máscaras e distorciam a voz para aparecer em vídeos, ou participavam de fóruns anonimamente, começaram a se sentir mais autorizados, validados. 

“Eles pegam os meninos mais vulneráveis, acolhem eles – uma coisa que não encontram em outros lugares da sociedade – estabelecem uma relação e passam a radicalizá-los”, explica a especialista.

Viram que seus ídolos, como Trump e Bolsonaro, que já tinham ficha longa de falas misóginas, racista e homofóbicas, não só não foram punidos, como foram recompensados. Assim começaram a dar as caras e hoje é muito raro eles se esconderem. 

Nas redes sociais, esse grupos afloram, porque esse cara frustrado, chateado, entra em um grupo que não tem nada a ver com isso, de jogos, séries, algo assim, onde existem recrutadores treinados ou que já estão lá faz tempo. 

Eles pegam os meninos mais vulneráveis, acolhem eles – uma coisa que não encontram em outros lugares da sociedade – estabelecem uma relação e passam a radicalizá-los. 

Eles começam testando o nível de misoginia, racismo e homofobia de cada um e fazem isso de várias formas. Por exemplo, dizem que todas as mulheres são interesseiras, começam a insultá-las e se referir a elas de forma violenta. Se o menino não reage, não critica, eles continuam. A mesma coisa com negros e gays. 

Quando notam que está pronto, convidam esse menino para um grupo mais fechado e radical. Através disso, conseguem encaminhar esse menino para fazer o que querem, como massacres e criar o terror. 

Entre fóruns diferentes, há muita competição, apesar de terem a mesma ideologia. Assim tentam conseguir mais gente, porque aumentam as chances de alguém cometer um massacre. 

Nessa competição, tentam ver quem consegue mais espaço na mídia, quem consegue fechar uma escola por causa de ameaças, até quem mata mais pessoas. Quem consegue, vira ídolo, e aí eles têm esse reconhecimento que tanto buscam e que não encontram em outro lugar em suas vidas. 

CR: Na maior parte dos casos, os ataques às escolas são perpetrados por meninos e homens. As vítimas, meninas e mulheres. O que significa discutir masculinidades e como isso pode ajudar a evitar este e outros tipos de violência? Além desta, que outras frentes precisam ser mobilizadas? 

LA: Faço parte do Grupo de Trabalho criado pelo ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida, que visa elaborar um relatório sobre o combate ao extremismo da direita, as fake news e os discursos de ódio. Uma parte desse enfrentamento envolve as escolas, que precisam falar sobre isso.

Tem que ter algum tipo de disciplina de direitos humanos, em que os estudantes possam conversar sobre coisas do dia a dia, o que eles veem na internet, sobre tolerância e tudo que os aflige, e sobre fake news e educação midiática. 

“É importante também discutir as masculinidades, porque a misoginia é a porta de entrada para drogas mais pesadas na internet”, diz.

Esses espaços também servem para a turma compartilhar a preocupação com os colegas, porque a turma sabe quem são os meninos problemáticos. Alguns sofrem bullying, mas não é regra, muitos deles praticam o bullying. Eles manifestam algum tipo de ódio bem antes de cometer um massacre. Às vezes é uma surpresa, mas na maior parte das vezes compartilham imagens de massacre e fazem propagandas.

É importante também discutir as masculinidades, porque a misoginia é a porta de entrada para drogas mais pesadas na internet. Que os meninos possam se abrir, receber atenção, refletir sobre como eles agem, o que sentem, e entender que eles não precisam defender essa masculinidade tóxica e frágil, que tem outros jeitos de ser homem. Ter que provar que “é homem” o tempo todo deve ser muito exaustivo para eles. E os jeitos que eles encontram de provar isso é o pior possível, porque está atrelado à violência, ao culto às armas. 

Os meninos são ensinados que não podem chorar, mas também que eles não podem rir, porque o dito macho alfa tem que ter uma cara séria, sisuda, tanto que os heróis deles são do cinema solitário, que não conversam com ninguém, não tem amigos. 

Também é fundamental que as meninas possam falar sobre como se sentem, sobre os tipos de masculinidades que elas gostariam. Essas comunidades disseminam muito que mulheres não gostam dos bonzinhos, que só gostam dos machões. 

Nesse processo, vale elogiar as mudanças, pequenas transformações de opinião, de comportamento. A radicalização não acontece de um dia para o outro, é bem aos poucos. Dependendo de como a situação estiver, será necessário retirar o acesso à internet e monitorar.

Mas a escola não pode ser totalmente responsabilizada. As famílias têm que saber o que seus filhos estão fazendo na internet e tem que conversar. Lembro de um caso de um menino que gostava de assistir a vídeos de História no YouTube e, em uma semana, ele estava sendo direcionado para vídeos neonazistas. A mãe estava acompanhando e pôde lidar com a questão. 

Além disso, essas plataformas ganham dinheiro com engajamento e é muito mais fácil engajar os seres humanos com o ódio do que com os direitos humanos. Então essas plataformas também têm que ser responsabilizadas. 

Saiba Mais | Livros, filmes e referências para discutir masculinidades

Documentário | The Mask You Live In (2015)

Dirigido pela americana Jennifer Siebel Newsom, o filme é um bom ponto de partida para a discussão sobre masculinidade tóxica e como os efeitos dela são sentidos também pelos meninos. 

Livro | Homens Justos: do patriarcado até as novas masculinidades, de Ivan Jablonka. Editora Todavia (2021)

O sociólogo francês reflete sobre o poder masculino historicamente construído e sobre o alto custo dele também para os meninos e homens. 

Livro | Diálogos Contemporâneos sobre Homens Negros e Masculinidades. Organização Henrique Restier e Rolf Malungo. Editora Ciclo Contínuo, 2019. 

A proposta do livro é adensar a discussão sobre masculinidades no Brasil, levando em consideração o recorte racial. A publicação reúne diferentes autores que refletem sobre as masculinidades do ponto de vista dos homens negros.

Live | Hora do Intervalo sobre educação e masculinidades, com Ismael dos Anjos

“Precisamos de programas nacionais de convivência escolar”, diz Miriam Abramovay sobre ataque em escola

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