publicado dia 09/09/2025

Natacha Costa: “Educação Integral desafia tradição escolar burocrática e padronizadora” 

Reportagem: | Edição: Tory Helena

🗒 Resumo: Em entrevista, Natacha Costa detalha pesquisa de mestrado na USP sobre o descompasso entre projetos de Educação Integral praticados por escolas públicas e as demandas da Secretaria de Educação. 

Para que as escolas tenham condições de adequar todo o trabalho pedagógico ao seu contexto e às particularidades de seus estudantes de forma coletiva, a fim de produzir um trabalho com sentido e que promova direitos, elas precisam de autonomia e apoio das Secretarias de Educação.

Mas a gestão democrática praticada pelas escolas nem sempre encontra abertura nos processos da rede. Esse descompasso foi o objeto de estudo da pesquisa de mestrado “Políticas educacionais e a vida na escola: Embates em torno do projeto pedagógico da Educação Integral”, realizada por Natacha Costa no programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Confira uma entrevista com a autora.

Políticas propostas de forma verticalizada, como a gestão para resultados fixados externamente à comunidade local, e a imposição de metas, projetos, materiais didáticos e avaliação padronizados, criam mais obstáculos do que condições favoráveis ao trabalho das escolas.

Isso é especialmente verdadeiro para as escolas orientadas pela concepção de Educação Integral, ou seja, com um Projeto Político-Pedagógico construído coletivamente e contextualizado ao território, com um currículo significativo para seus estudantes e que garantem seus múltiplos direitos, inclusive o de aprender.

Leia mais

Esse é o cerne da dissertação de mestrado “Políticas educacionais e a vida na escola: Embates em torno do projeto pedagógico da Educação Integral”, defendida por Natacha Costa em abril deste ano na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

foto

“Precisamos inverter profundamente a rota das políticas”, diz Natacha Costa.

Crédito: Acervo pessoal

A diretora geral da Escola Vera Cruz e do Instituto Vera Cruz, que foi diretora geral da Cidade Escola Aprendiz, examinou a relação entre a Secretaria Municipal de Educação de Manaus (AM) e a EMEF Professor Waldir Garcia e encontrou um cenário que não é exclusivo deste par, mas historicamente se repete pelo país. 

A partir de levantamento e análise de informações obtidas por observação direta, entrevistas e registros de conversas com diferentes agentes da Secretaria Municipal e da escola, a pesquisadora observou que a escola dedica tempo e recursos excessivos ao atendimento das exigências burocráticas da Secretaria, o que reduz as possibilidades de realizar ações alinhadas à sua realidade e aos objetivos educacionais construídos em diálogo com a comunidade escolar.

“Precisamos inverter profundamente a rota das políticas. A escola precisa ter protagonismo na produção da política e definir a organização de conteúdos, tempos, espaços e métodos a partir da gestão democrática”, diz a especialista em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral. Confira os principais trechos da conversa: 

Centro de Referências em Educação Integral: A hipótese central de sua pesquisa diz respeito à quantidade de tempo e de recursos que a escola investe em lidar com a Secretaria de Educação, que impacta as demandas da própria escola. O que acontece nessa relação e como ela influencia o trabalho da escola? 

Natacha Costa: A constituição do sistema escolar no Brasil favorece a padronização, o controle do trabalho docente e a centralização das decisões nos órgão centrais. Isso ganha contornos mais dramáticos nas últimas décadas com o gerencialismo, que vai centralizar decisões sobre currículo, formação e avaliação. 

A Secretaria de Educação é um órgão que reforça isso e procura impor à escola materiais didáticos padronizados, currículo pré-definido e monitorado pela Secretaria, com categorias de avaliação idênticas para todas as escolas da rede.

O caso específico que estudei para olhar essa questão mais de perto foi a da Waldir Garcia, uma escola onipresente nos mapas de inovação do Brasil e do exterior.

Na Waldir Garcia, trabalho pedagógico é motor de inclusão e aprendizagem. Leia reportagem que detalha em profundidade o trabalho da escola.

A escola é toda pautada pela Educação Integral, contextualizada, implementou um Projeto Político-Pedagógico democrático, com alto nível de participação das famílias e de seus profissionais, tem cultura de estudo e formação permanente, de comprometimento com a aprendizagem e desenvolvimento de todos os estudantes, se debruça coletivamente sobre seus desafios, em diálogo com o território e a comunidade.

É uma escola em que todos os alunos são alfabetizados, atingem os níveis esperados de aprendizagem e atende um percentual altíssimo de estudantes com deficiência e crianças migrantes de países como Angola, Haiti, Cuba e Venezuela.

Então é uma escola que realiza a Educação como todos os nossos marcos legais indicam que deve ser. Apesar disso, empenha uma energia excessiva frente às demandas da Secretaria e em detrimento à atenção para sua realidade, e tem que desenvolver estratégias que não condizem com esse projeto. 

Quando a tradição escolar ocidental no Brasil se encontra com a burocracia autoritária, padronizadora e de tendência gerencialista, cria uma distorção nas escolas que realizam o direito à Educação. Então a escola é constrangida por realizar seu trabalho, que observa os padrões esperados por essa lógica.

CR: Isso se repete em outras escolas de Manaus e de outras cidades e Estados brasileiros? Que tipo de concepção de Educação essa forma de trabalho favorece? 

Há mais de 20 anos vejo isso acontecer por todo o Brasil. O caso mais recente e emblemático é o do afastamento dos 25 diretores de escolas municipais de São Paulo (SP).

Natacha: Há mais de 20 anos vejo isso acontecer por todo o Brasil. O caso mais recente e emblemático é o do afastamento dos 25 diretores de escolas municipais de São Paulo (SP). É um grupo de escolas reconhecido por fazer um trabalho democrático, territorializado e contextualizado, vítimas do mesmo tipo de sabotagem e violência institucional que a Waldir Garcia é submetida por resistirem à perspectiva padronizadoras que trata de forma igual pessoas que são diferentes e tem necessidades diferentes. 

Isso gera uma política educacional em que as escolas são meras implementadoras, e não autoras da política e de seu PPP. No Brasil, a escola é considerada um problema, um agente de produção das desigualdades, a despeito de qualquer condição que tenha sido ou não criada para ela atuar. 

CR: Como a Waldir Garcia faz para lidar com essas tensões com a Secretaria e, ao mesmo tempo, permanecer ela própria uma escola democrática e que atende às demandas do território e da escola? 

Natacha: Vai usando da força da democracia, negociando e resistindo, com apoio da comunidade. Justamente por ser uma escola que tem um PPP construído de maneira coletiva, ela tem muita força e apoio da comunidade, que se mobiliza, vai às ruas, além de fazer parte de uma rede poderosa de educadores, especialistas e jornalistas do campo da Educação.

“A padronização é fator de exclusão, porque os materiais não contemplam as necessidades de aprendizagem de cada estudante”, afirma Natacha.

Também se ampara nos dispositivos legais que têm, como o PPP aprovado pelo Conselho Municipal e a Política Municipal de Educação Integral de Manaus. E atende obrigações burocráticas ajustando elas para seu contexto. 

Ouvi uma mesma explicação, de vários agentes da escola, de que a padronização é fator de exclusão, porque os materiais não contemplam as necessidades de aprendizagem de cada estudante. Por isso, para superar esse desafio a escola usa os materiais, mas faz ajustes para os seus roteiros de aprendizagem.

CR: Como precisaria funcionar a relação da Secretaria com as escolas para que a relação seja de apoio à garantia de direitos, entre eles o desenvolvimento integral dos estudantes e a aprendizagem?

Natacha: Precisamos inverter profundamente a rota das políticas. A escola precisa ter protagonismo na produção da política e definir a organização de conteúdos, tempos, espaços e métodos a partir da gestão democrática.

A Secretaria precisa oferecer recursos e criar condições para que a autonomia se realize. Os processos de formação dos profissionais têm que ser participativos e não palestras para grupos enormes sem que os professores possam ser autores. Eles também precisam ser olhados como intelectuais da sua prática e autores de suas estratégias, com base na sua realidade e nos marcos legais.

foto

“O que a Educação Integral tenta […] é fazer frente a essa lógica responsável pelo insucesso e fracasso do sistema escolar brasileiro”, diz Natacha Costa.

Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil

Os processos de avaliação precisam ir muito além das avaliações externas, e constituir processos participativos, em que os estudantes sejam ouvidos, para além do currículo acadêmico, e que avalie o desenvolvimento integral dos estudantes.

São condições para que a autonomia escolar possa de fato acontecer, entendendo ela como condição para qualidade na Educação, porque nenhum projeto educativo vai funcionar se não se direcionar para os sujeitos reais da escola.

CR: Como a Educação Integral pode contribuir para mudar a relação entre escolas e Secretarias de Educação? 

Natacha: Desde Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, e todo o histórico que vem sendo produzido de lá para cá, a Educação Integral vai desafiar a tradição escolar ocidental, burocrática e padronizadora. Também vai mostrar que o gerencialismo visa maximizar resultados com o menor investimento possível, mas que isso não se sustenta no campo da Educação.

“O gerencialismo visa maximizar resultados com o menor investimento possível, mas que isso não se sustenta no campo da Educação”, explica.

O que a Educação Integral tenta fazer não é apenas promover mais tempo na escola, que é importante para ampliar as oportunidades de desenvolvimento integral, mas é fazer frente a essa lógica responsável pelo insucesso e fracasso do sistema escolar brasileiro.

Precisamos olhar para sujeitos e territórios em sua singularidade, conceber que os profissionais da Educação são intelectuais e pesquisadores de sua prática e não implementadores de plano de aula e livro didático, e que a escola é uma instituição que precisa ter autonomia pedagógica para ter sentido e efetivar direitos.

*Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Diretores escolares de São Paulo são afastados novamente: qual é o papel da gestão diante das avaliações externas?

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.