No Rio de Janeiro, professoras abrem a roda para o passinho na escola
Publicado dia 12/07/2024
Publicado dia 12/07/2024
Resumo: Em casa, na rua e nos bailes, a dança passinho já faz parte da vivência de muitas crianças, adolescentes e juventudes. Conheça a experiência de quem abriu espaço para o passinho entrar também na escola.
Confira também a orientação de especialistas sobre como dialogar com famílias e professores, e lidar com as letras do funk, para abordar o tema na escola.
Durante as aulas de dança, a professora Daniele de Paula, que leciona para os anos finais do Ensino Fundamental da FAETEC Quintino, no Rio de Janeiro (RJ), percebeu que não importava qual fosse a dança – forró, frevo ou baião – seus estudantes sempre davam um jeito de improvisar um passinho no meio.
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No lugar de tentar fazê-los seguir os passos exatos de cada dança, a educadora decidiu incentivar os interesses e a criatividade da turma. “Por que não trazer o passinho para as aulas? Eles já têm uma identificação com isso”, observa Daniele.
O que é o passinho? É um estilo de dança nascido nos anos 2000 nas favelas do Rio de Janeiro. Misturando elementos do break, frevo, samba e capoeira, a expressão artística periférica foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do estado do Rio de Janeiro em 2024.
Dali em diante, o estilo de dança protagonizado pelos pés começou a tomar conta dos pátios e corredores da escola. As turmas passaram a estudar a teoria e a prática, a criar coreografias e apresentá-las, bem como a reconhecer a influência de outras danças no passinho e a realizar rodas de batalha.
Além da alegria que essa mudança trouxe para a escola, a professora nota outras: estudantes que passaram a ser reconhecidos por seu talento e criatividade na dança, o que contribuiu para melhorar a autoestima, a socialização e a aprendizagem.
“Eles começaram a ter um melhor aproveitamento em outras aulas, porque os professores mudaram seu olhar sobre esses alunos, antes eram vistos como quem não quer nada. A autoestima vai melhorando e eles vão se mostrando mais. Hoje tenho ex-alunos que se tornaram grandes artistas, que estão na Globo, fazendo séries, compondo RAP e são inspirações para outros jovens”, comemora a professora Daniele.
Enquanto esteve na escola, Hugo Silva de Oliveira, artista da dança, educador e doutorando em Comunicação Social, conta que foi um desses estudantes que não foi visto em sua integralidade.
“A dança é um fator de inteligência. Existe a inteligência lógica, que é do campo da razão, mas existem outras, como a do movimento e da espacialidade, que misturam razão, emoção e corpo, algo muito presente nas filosofias africanas. Esse tipo de inteligência era muito incentivada em mim pelo território, mas não pela escola”, relata Hugo, que também é autor da obra Vem ni mim que eu sou passinho: : A dança passinho foda na confluência entre redes sociais, arte e cidade (2022).
Quando se tornou professor, dedicou-se a abrir espaço para que cada um de seus estudantes pudesse se expressar, e ser, de forma integral nas escolas. Em 2012, criou o Desafio do Passinho, um concurso de dança protagonizado por jovens residentes em áreas marginalizadas e regiões periféricas.
“Além da disputa, fizemos visitas de campo, uma cartografia social do território e conversamos sobre a história do funk e do passinho e seus personagens”, conta o professor, cuja prática está relatada no artigo O Desafio do Passinho: ferramenta para uma aprendizagem significativa, publicado no livro 1, 2, 3 e já! A criança pinta, borda e dança (Instituto Festival de Dança de Joinville/2018).
À época, Fernando Martins foi um dos estudantes que participou do Desafio. Mas ao invés de dançar, se interessou pela música. “Fui aprender a ser DJ ali, a mexer no som, nos cabos e fazer os beats. Nunca me via DJ e comecei a aprender mais, tive a oportunidade de chegar em alguns lugares e tocar”, relembra Fernando, hoje com 21 anos.
“Me surpreendeu ter o funk e o passinho na escola, porque não era uma coisa normal. A gente sempre dançou, mas nunca dentro de uma escola. Foi um projeto que envolveu muitas crianças e mudou a mentalidade de alguns, trouxe um pouco mais da cultura. Foi marcante aquele momento”, diz Fernando.
“Danço, logo, existo!”, diz Hugo na conclusão do trabalho, como forma de sintetizar a vivência que compartilhou com os estudantes da EM Benjamin Constant, na cidade do Rio de Janeiro, durante o processo. “Foi uma forma de reconhecimento da história africana na escola, com personagens e sujeitos em posição de dignidade, em que o estudante se vê representado”, afirma o professor.
Além disso, Hugo conta que o engajamento dos estudantes nas atividades contribuiu para reduzir a evasão escolar. “E aumentou a permanência interessada em sala de aula, o que levou a resultados significativos na progressão idade/série. Também reduziu a violência entre os alunos, porque eles botavam as diferenças na roda, na dança, e uma maior confiança dos alunos nos educadores”, relata.
Na cidade vizinha, em Duque de Caxias (RJ), outra professora vem trabalhando o passinho com suas turmas, dessa vez com os mais novos, da Educação Infantil aos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, por meio do livro De Passinho em Passinho: Um livro para dançar e sonhar, de Otávio Junior (Companhia das Letrinhas, 2021).
“Conversamos sobre o livro e as músicas, sobre o passinho na vida deles, vimos vídeos do autor e estudamos o funk enquanto patrimônio cultural. Eles se identificaram muito com o trabalho e o autor, que não é branco e nem rico, e publicou um livro. É uma forma de incentivar que eles também sonhem”, diz Ana Raquel Durão, da sala de leitura da Escola Municipal José Camilo dos Santos.
Sua turma agora ensaia uma apresentação para a mostra de talentos que tem como tema o funk. “Também estamos trabalhando as letras das músicas e ensinando os nomes e os tipos de passinhos”, conta a professora.
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Para o professor Hugo, trabalhar a cultura local na escola traz representatividade para os estudantes, que se interessam e se identificam com o tema e o trabalho pedagógico mais facilmente, além de ser fundamental para a implementação da Lei 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afrobrasileira em toda a Educação Básica.
“A dança vai aparecer no espaço escolar porque ela está no corpo desse jovem. Ele traz isso do território, de África. A dança é uma linguagem, uma ferramenta de comunicação, que os jovens logo colocam em relação com as tecnologias digitais. Assim, eles passam a ser também produtores desses conhecimentos e a sala de aula se torna um espaço mais compartilhado e menos hierarquizado”, conclui.