publicado dia 16/04/2021
Exclusão escolar e trabalho infantil na pandemia: como enfrentá-los?
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 16/04/2021
Reportagem: Ingrid Matuoka
Exclusão escolar e trabalho infantil andam lado a lado, e no Brasil são problemas históricos. Longe de serem superados, ambos foram, na verdade, agravados devido à pandemia e à insuficiência de políticas públicas e de uma coordenação nacional de enfrentamento a esse contexto. É diante desse cenário que a atuação do poder público, das redes educacionais, escolas, professores e toda a comunidade se faz necessária para mitigar as crescentes vulnerabilidades e violências a que estão submetidas crianças e adolescentes.
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Só no ano de 2019, de acordo com o estudo Enfrentamento da cultura do fracasso escolar organizado pelo UNICEF (Fundo das Nações Unidas pela Infância), mais de 620 mil estudantes deixaram a escola e outros 6 milhões estavam em situação de distorção idade-série, um dos fatores que pode levar ao abandono escolar. Já em 2020, 5,5 milhões de crianças e adolescentes não tiveram acesso a qualquer oferta de educação.
A Busca Ativa Escolar é uma estratégia composta por uma metodologia social e uma ferramenta tecnológica disponibilizadas gratuitamente para estados e municípios, para apoiar na identificação, registro, controle e acompanhamento de crianças e adolescentes que estão fora da escola ou em risco de evasão.
“Na ferramenta de busca ativa do UNICEF identificamos que a exclusão escolar atualmente se deve, em parte, porque muitos estudantes não possuem os recursos tecnológicos necessários para a manutenção do vínculo remoto com a escola, e quando há a possibilidade de entrega de materiais impressos, muitos têm dificuldade de realizar as atividades por falta de apoio pedagógico. Apareceu também o desinteresse por uma educação que não faz sentido para a realidade do estudante, que não promove seu projeto de vida”, elucida Ana Carolina Fonseca, Oficial de Proteção à Criança do UNICEF no Brasil.
De acordo com um levantamento feito pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), que ouviu ⅔ das redes escolares brasileiras, 78,6% delas declararam ter um grau de dificuldade de médio a alto em relação à internet e infraestrutura durante o ensino remoto realizado em 2020.
A esses desafios, somou-se a crise econômica que o país atravessa: no trimestre de novembro a janeiro, a taxa média de desemprego no Brasil foi de 14,2%, a mais alta desde 2012, quando começa o registro da série histórica.
Outro recorde foi o agravamento da fome, que já vinha aumentando antes da pandemia, em um contexto de desmobilização de políticas públicas de segurança alimentar. No final do ano passado, 59,4% da população enfrentava algum grau de insegurança alimentar, de acordo com estudo feito por pesquisadores do grupo “Alimento para Justiça” da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB).
O Auxílio Emergencial, que vai de R$150 a R$375 e teria a função de amenizar as vulnerabilidades econômicas, foi considerado por 82% dos brasileiros como “muito baixo” diante das demandas, segundo uma pesquisa do PoderData, divulgada em 1º de abril.
“No momento em que se agravam situações de desemprego, fome e violência na família, a rua se torna um espaço de sobrevivência para muitas crianças e adolescentes. Algumas delas passam a efetivamente morar nesses espaços, outras saem de suas casas, desenvolvem atividades na rua, e depois retornam para seus lares, mas em ambos os casos estão em situação de rua. Então temos agora um aumento tanto do trabalho infantil quanto de crianças e adolescentes em situação de rua”, explica Fábio Santos de Andrade, professor no departamento de Ciências da Educação na Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e autor do livro “Crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil: Táticas de sobrevivência e ocupação do espaço público urbano” (Editora Paco e Littera, 2020).
Você sabe o que é trabalho infantil? É considerado trabalho infantil toda atividade lícita ou ilícita que tenha por objetivo a sobrevivência individual ou coletiva. Inclui atividades como mendicância, trabalho doméstico, na agricultura, a exploração sexual, e outras ocupações mais socialmente aceitas, como comerciante ambulante, guia turístico e guardador de carros. Até os 13 anos, a proibição de trabalho é total. Dos 14 aos 16, é permitido na condição de aprendiz. E dos 16 aos 17, há permissão parcial desde que não sejam atividades noturnas, insalubres, perigosas e penosas.
Em 2019, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) sobre Trabalho de Crianças e Adolescentes, 1,8 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhavam. Ainda não há dados nacionais de 2020, o que dificulta avaliar o cenário e propor políticas públicas, mas só na cidade de São Paulo, onde foi feito um levantamento pelo UNICEF, o trabalho infantil cresceu 26% durante a pandemia.
“Nesse contexto de agravamento da crise econômica, da fome, do desemprego, da crise humanitária, e com o fechamento das escolas, há um recorte racial e social: os mais impactados são as populações negras e as mais economicamente vulneráveis. E isso aponta para um aprofundamento das já enormes desigualdades no país”, alerta Bruna Ribeiro, editora do projeto Criança Livre de Trabalho Infantil, que visa articular atores estratégicos, engajar a sociedade em torno da questão e influenciar políticas públicas que contribuam para o fim do trabalho infantil.
Para efetivar os direitos das crianças e adolescentes, é preciso uma atuação conjunta de diversos setores da sociedade. “O primeiro passo é manter a mobilização pelo direito à educação, e esse papel cabe a toda a sociedade, não só à educação”, reforça Ana Carolina. Confira, abaixo, os principais atores e ações que podem ser mobilizados:
No Brasil, muitos dos problemas que aparecem na realidade cotidiana de diversas famílias tem a raiz em questões estruturais, como a desigualdade econômica e social. “Quando chegamos em uma família que a criança está em situação de trabalho infantil, percebemos que ela tem muitas demandas, e que o Estado não responde à altura”, observa Bruna.
Daí a importância de garantir as condições de vida dignas para as famílias, sobretudo por meio de políticas de geração de emprego, de transferência de renda e, agora, no contexto da pandemia, um Auxílio Emergencial que supra as necessidades das famílias.
“Toda criança precisa ter uma família que tenha condições de trabalhar e sustentar uma renda”, afirma Fábio Santos de Andrade
“O Estado tem que ter esse papel de suporte, e essas são políticas que têm impacto significativo. O Bolsa Família, por exemplo, tem ainda a condicionalidade de que os filhos estejam na escola”, lembra Ana Carolina.
Já em relação ao trabalho infantil e às crianças e adolescentes em situação de rua, o professor Fábio destaca que as políticas públicas eficazes dependem da escuta dos envolvidos, como as próprias pessoas que estão em situação de rua, bem como Organizações da Sociedade Civil, líderes comunitários, projetos sociais, pesquisadores, e outros.
“As políticas e projetos de governo que temos visto têm o objetivo de fazer algo que para nós é um termo muito violentador, que é limpeza dos espaços públicos urbanos. É colocar pedras debaixo dos viadutos, é proibir a distribuição de alimentos, é jogar água em pessoas que estão dormindo. Quando na verdade precisamos de políticas públicas de moradia, de geração de renda, de melhoria da qualidade da educação, de atividades e espaços de lazer, cultura e esporte, principalmente em bairros periféricos. Toda criança precisa ter uma família que tenha condições de trabalhar e sustentar uma renda”, afirma Fábio.
Uma das frentes para o combate ao trabalho infantil é reconhecê-lo como uma atividade que priva as crianças e adolescentes de seus direitos de estudar, brincar, ter convívio comunitário e familiar e de desenvolver-se adequadamente. “Ainda temos uma cultura que normaliza e glorifica o trabalho infantil, um paradigma que precisa ser quebrado, porque ele acaba por perpetuar o ciclo de exclusão”, diz Ana Carolina.
Para tanto, o caminho não passa por julgar e condenar as famílias, mas pressionar o poder público pela garantia de condições para que essas crianças não precisem trabalhar. “E além disso mostrar que adolescentes podem trabalhar de forma protegida dentro da lei do aprendiz, que tem um formato que concilia estudo e trabalho. Essa lei institui que empresas médias e grandes devem contratar e formar um percentual de aprendizes, mas hoje a taxa de aproveitamento dessa contratação pelas empresas, de acordo com um dado de 2016, é de apenas 40%, então tem espaço para isso”, indica Bruna.
Entre abril e dezembro de 2020, foram feitas quase 36 mil matrículas por meio da plataforma de busca ativa escolar do UNICEF: são 36 mil crianças e adolescentes que voltaram a ter seu direito à educação garantido. “Mais do que nunca precisamos de políticas e articulação de serviços para fazer a busca ativa e criar as condições para que os estudantes possam continuar vinculados à escola, acionando a rede de proteção, por exemplo, quando necessário”, orienta Ana Carolina.
Para Fábio, isso envolve inclusive uma mudança de posicionamento das secretarias de Educação e das escolas, para que compreendam as crianças e adolescentes em sua integralidade. “As secretarias e escolas precisam olhar para dentro e enxergar os estudantes como seres humanos e, a partir disso, rever a dinâmica escolar para oferecer permanência. Depois, é olhar para fora, compreender seu bairro, quem são as crianças que estão em situação de rua, fora da escola, e como se articular com a comunidade para desenvolver ações para minimizar violências e o trabalho infantil”, diz o professor.
A possibilidade de retorno presencial para todos os estudantes integralmente ainda parece distante. Enquanto isso, é preciso garantir o acesso e a qualidade da educação ofertada de maneira remota ou híbrida, bem como a formação dos professores para tanto.
Nesse sentido, foi proposto o Projeto de Lei 3477/2020, que visa mobilizar recursos para garantir a conectividade de estudantes que vivem em famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), bem como daqueles matriculados nas escolas das comunidades indígenas e quilombolas, e professores da rede pública. Contudo, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou o projeto integralmente. Nesta segunda-feira, 19, o Congresso Nacional deve retomar a discussão sobre esse veto.
Os educadores e educadoras precisam de formação, jornadas e remuneração adequadas, e apoio de seus pares e gestores para realizar qualquer trabalho de enfrentamento à exclusão escolar e ao trabalho infantil. Isso porque eles desempenham um papel central nesse desafio. Muitas vezes, são os únicos adultos para além da família com quem crianças e adolescentes possuem um vínculo.
“Quando a criança sofre algum tipo de violência, muitas vezes é o professor quem identifica isso. Percebe que eles estão dormindo em sala de aula, se estão mais cansados, se estão machucados, se faltam muito ou se o rendimento cai. No momento, com o trabalho remoto, isso fica mais difícil, mas ainda é possível”, explica Bruna.
O programa Criança Livre de Trabalho Infantil possui uma cartilha com orientações para professores sobre como combater o trabalho infantil e outras violências. O documento apresenta conceitos, explica as causas e consequências, como identificar sinais em sala de aula ou remotamente, como trabalhar o tema com os estudantes, bem como os caminhos para acionar a rede de proteção. Ele foi elaborado a partir da estrutura de São Paulo, mas que é similar à de outros municípios.
*Foto: Tiago Queiroz
O que é a #Reviravolta da Escola?
Realizado pelo Centro de Referências em Educação Integral, em parceria com diversas instituições, a campanha #Reviravolta da Escola articula ações que buscam discutir as aprendizagens vividas em 2020, assim como os caminhos possíveis para se recriar a escola necessária para o mundo pós-pandemia.
Leia os demais conteúdos no site especial da #Reviravolta da Escola.