publicado dia 29/05/2018
A leitura da História do Brasil pela literatura indígena
Reportagem: Da Redação
publicado dia 29/05/2018
Reportagem: Da Redação
Por Profa. Dra. Janice Cristine Thiél
A História do Brasil tem sido contada por inúmeras vozes e cada voz traz a sua perspectiva. Os livros didáticos, bem como obras literárias, trazem versões da história das Américas e de seus habitantes – pré e pós contato com povos de outros continentes.
Janice Cristine Thiél é especialista em literaturas indígenas brasileiras, doutora pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professora titular de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e autora do “Pele Silenciosa, Pele Sonora: A literatura indígena em destaque”, publicado pela Autêntica.
Algumas versões enfatizam o “descobrimento” da América, enquanto outras destacam o “encontro” ou o “choque” entre culturas. De um modo ou de outro, é importante observar que o passado dos povos das Américas foi narrado, pois como indica Gabriel Perissé “o passado é aquilo que não passou. É aquilo que permanece em forma de influência, de lembrança, de conselho, de saudade, de lição, de arrependimento e de inspiração”.
Logo, é importante refletir sobre como a literatura indígena contemporânea olha para esta questão, a fim de ampliar a discussão sobre a História do Brasil e dos povos das Américas, no passado e no presente, e promover, a partir da literatura, reflexões críticas também em outras disciplinas do currículo escolar e áreas do conhecimento.
Muitas versões da História do Brasil colocam os povos indígenas apenas no passado, por meio de imagens, pinturas ou textos que destacam a colonização. Contudo, a História é de todos e não de alguns e merece ser contada na sua multiplicidade de versões.
Os escritores indígenas, ao contarem a presença do índio na História brasileira, destacam a presença da cultura indígena e sua influência no passado e no presente e redimensionam quem é lembrado ou esquecido, como cada história se integra à História da nação e contribui para o futuro.
Quando o Novo Mundo “nasceu para o Mundo”, versões desse encontro tornaram-se conhecidas ao serem narradas por cronistas, religiosos ou viajantes europeus e foram consideradas por séculos como “verdades” históricas. Desde o período colonial até quase o final do século XX, o nativo brasileiro foi construído pela lógica do déficit.
Pêro de Magalhães de Gândavo, por exemplo, no Tratado da Província do Brasil, redigido entre o final da década de 1560 e o início de 1570, utilizou-se de uma observação sobre uma língua indígena, que carecia das letras F, L, R, para reforçar as carências do brasileiro nativo, afirmando que não tinha fé, nem lei, nem rei.
Hoje, pelas obras literárias indígenas nasce outra História, que documenta e discute a ação e interação dos povos ameríndios no continente. Nas suas narrativas, as comunidades indígenas deixam seu papel estereotipado, de coadjuvante na História do continente, e preenchem vazios que constroem novas e distintas versões sobre seus povos.
Proponho a seguir duas leituras que podem ser realizadas a fim de discutir tais questões:
A obra A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio (1998), de Kaka Werá Jecupé, inclui, por exemplo, Pequena síntese cronológica da história indígena brasileira, que apresenta para leitores não índios, que acreditam que a história do Brasil se inicia em 1500, e também para parentes indígenas, que desconhecem a própria história, uma revisão da História do Brasil.
É uma cronologia da História brasileira a partir de 1500 (data que marca o início oficial da colonização portuguesa) e vai até 1998 (data da publicação da obra), embora a história indígena seja milenar, muito anterior ao descobrimento, e ainda esteja sendo escrita. Sob sua perspectiva, há a inclusão de informações e estatísticas muitas vezes ignoradas ou apagadas, tais como dados sobre migrações forçadas de índios, massacres e epidemias, e ainda resistência às tentativas de expulsão da terra, referência a leis e projetos de interesse dos índios e nomes de índios das mais variadas etnias que se destacaram entre seus pares, principalmente nas últimas décadas.
A obra O banquete dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira (2000), de Daniel Munduruku, discute questões pertinentes à origem dos povos das Américas, problematiza o descobrimento do continente por Colombo e discute as relações entre índios e não índios. Com relação à reconstrução da história nacional, Munduruku afirma: “Essa terra tinha dono. Mas não um dono no sentido capitalista. Talvez fosse melhor dizer que essa terra tinha Guardiães. Ela não pertencia a ninguém, mas servia a todos com igual valor. Vimos que a pré-história brasileira imperialista é, na verdade, a história de mais de mil povos diferentes que já caminham sobre ela há muitos milênios”.
Sugiro algumas maneiras de abordar as obras indicadas, que podem ser adaptadas ao nível dos alunos:
1. Como preparação para as leituras, pode ser discutido como os alunos veem a presença do índio na História das Américas e os papéis por ele exercidos: vítima, vilão, amigo, inimigo, etc. Essa discussão visa promover uma reflexão sobre os estereótipos construídos sobre o índio e quais permanecem no imaginário.
2. Os alunos podem realizar uma pesquisa sobre quantos e quais eram os povos indígenas no período da colonização e quantos e quais existem hoje. Essa pesquisa pode ser utilizada para que se perceba a diversidade cultural e linguística dos povos ameríndios, bem como sua presença na época atual, desconstruindo a ideia de que os índios pertencem ao passado do Brasil.
3. Com base nas leituras realizadas, pode-se propor a discussão e produção de textos ilustrados, ou ainda performances, sobre o que um índio poderia narrar sobre a História do Brasil. Essa atividade pode levar à percepção de que a construção da História envolve a seleção de acontecimentos e perspectivas pelas quais são narrados.
4. Pode-se também discutir se a leitura do texto indígena provocou algum tipo de transformação na maneira como a História do Brasil é contada. Os alunos podem refletir sobre outras Histórias que não são lembradas ou incluídas na História brasileira geralmente conhecida. Projetos podem ser desenvolvidos, vinculados às outras Histórias excluídas da grande narrativa da História brasileira, dos afrodescendentes, emigrantes e migrantes, tais como pesquisas e apresentações por meio de ilustrações, posters, músicas, dramatizações ou construções de linhas cronológicas.
Essas reflexões e sugestões de atividades de leitura, mesmo breves, redirecionam o olhar para uma História que todos compartilham e não devem ignorar ou silenciar. A literatura, descrita como “exercício de pensamento” por Compagnon, é a arte da palavra e da imaginação e pode também educar. A leitura do texto literário promove o pensamento crítico, a percepção do outro, do discurso do outro e das diferentes possibilidades de ver, interpretar e escrever a história.
THIEL, Janice. Pele Silenciosa, Pele Sonora: A literatura indígena em destaque: Autêntica, 2012.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
GÂNDAVO, Pêro de Magalhães de. Tratado da Província do Brasil. Reprodução fac-similar do ms. n. 2.026 da Bibl. Sloaniana do Museu Britânico. Coleção Textos e Vocabulários 5. Instituto Nacional do Livro, 1965.
JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio. São Paulo: Peirópolis, 1998 (Série Educação para a paz).
MUNDURUKU, Daniel. O banquete dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira. São Paulo: Editora Angra, 2000.
PERISSÉ, Gabriel. Ler, pensar e escrever. São Paulo: Saraiva, 2011.