Gestão democrática: como escutar as crianças na escola?
Publicado dia 18/05/2018
Publicado dia 18/05/2018
A gestão democrática da escola pressupõe escutar as crianças, sobretudo as mais novas. Compreendê-las como sujeitos de direito, capazes de influenciar a vida coletiva significativamente, é o primeiro passo para criar um contexto participativo.
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“A criança não é um vir a ser. Ela já é”, diz Franciele Busico Lima, professora de pedagogia no Instituto Singularidades e da rede municipal de São Paulo, sobre a mudança de perspectiva em relação à infância que ocorreu nas últimas décadas, passando a compreendê-la como uma fase em si, e não um passo para tornar-se algo.
Manuel Jacinto Sarmento, professor no Instituto de Estudos da Criança, da Universidade do Minho, em Portugal, e uma das maiores autoridades no assunto, lembra que esse entendimento da infância surgiu no século XX e foi consagrado por em meio da Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança, de 1989.
Uma gestão democrática pressupõe a participação efetiva dos vários segmentos da comunidade escolar – familiares, professores, estudantes e funcionários – em todos os aspectos da organização da escola
“Este documento marcou os direitos específicos das crianças, para além dos Direitos Humanos, uma vez que a infância tem uma vulnerabilidade estrutural, dado que carecem dos adultos para se alimentar, poderem se desenvolver e se integrarem socialmente”, afirma Manuel, ressaltando que a Convenção reforçou a noção de que as crianças são cidadãs e têm direito à autonomia, identidade e poder de participação.
Se esses processos participativos forem instituídos desde cedo, diz o professor, cria-se uma cultura fundamental para uma sociedade mais democrática.
“Ninguém consegue tocar piano sem dedilhar suas teclas. A mesma coisa é verdade em relação à participação. Nunca teremos uma sociedade democrática sem a inclusão das crianças”, explica Manuel.
Para Franciele, a escola e os adultos também ganham. “O mundo adulto é muito embrutecido. Temos muito a aprender com as crianças, sobre como elas veem o mundo e outros caminhos para resolver os problemas da escola”, diz.
Praticar a escuta ativa das crianças requer alguns princípios. O primeiro é aceitar que talvez as crianças tomem a decisão “errada” e que não cabe ao adulto vetá-la, mas discuti-la. “A vida é assim para os adultos também, temos que lidar com erros e frustrações. Essa é uma oportunidade de discutir, debater e entender a questão”, diz Franciele.
Além disso, o medo dos adultos de que as crianças tomem uma decisão equivocada não pode impedir o processo de deixar que as crianças tomem decisões reais, que vão muito além de escolher, por exemplo, qual suco querem tomar no recreio.
No processo de escuta para uma gestão democrática, os adultos também precisam entender o seu lugar físico e simbólico. É comum na relação com as crianças, por exemplo, que se pergunte da seguinte forma: “o que você quer beber? É água?”, ao invés de permitir que elas nomeiem e decidam o que querem.
É aconselhado que as crianças se expressem diretamente, isto é, sem que um adulto fale por elas. Durante as conversas faz-se necessário, ainda, deslocar-se para a altura delas, agachando ou sentando ao lado, com a finalidade de criar um diálogo mais horizontal.
Por fim, é preciso compreender que uma gestão democrática não se sustenta realizando processos de escuta das crianças de maneira pontual e isolada, e sem que ela reverbere de fato nas decisões da escola.
“Participar é ter o poder de influenciar a vida em comum, um poder que não é total e exclusivo, mas partilhado. Trata-se de um processo contínuo e permanente”, explica Manuel.
No ano passado, as crianças da Escola Municipal de Educação Infantil Dona Leopoldina, em São Paulo, decidiram que queriam uma casa na árvore. Fizeram diversos desenhos e planejamentos, e construíram a tão sonhada obra. Isso foi possível graças ao Conselho de Criança.
Uma vez por mês, crianças de 4 e 5 anos, gestão, professores e funcionários se reúnem para debater desejos, atividades e problemas na escola. Em uma das assembleias, realizadas no refeitório da escola, foi levantado o problema de que vizinhos passeavam com os cachorros nos jardins da escola e não recolhiam as fezes do animal. Juntos debateram o assunto: por que isso acontece? Todo mundo acha ruim? O que pode ser feito? Quem é responsável?
Nas duas semanas seguintes, discutiram o tema em sala de aula, com os colegas e professores. As crianças apresentaram suas ideias para solucionar o problema e os professores tentaram avaliar junto com elas a viabilidade de sua concretização.
Esse debate ocorre preferencialmente em um segundo momento, e não durante a assembleia, porque é mais fácil realizá-lo com grupos menores, cada um com um professor. Assim, todos têm a chance de serem ouvidos.
Após os debates, os alunos registram suas reivindicações e conclusões sobre o tema em qualquer formato que desejem: música, desenho, escrita, colagem. Depois, elegem dois representantes de cada sala, sempre uma menina e um menino, que se voluntariam e se revezam todos os meses com os demais colegas, para apresentar à gestão as ideias e reivindicações das turmas, em uma segunda reunião.
Nesta última, ficou decidido que seriam enviadas cartinhas aos vizinhos, pedindo que recolhessem o cocô dos cachorros, também colocaram placas indicando que era proibido não recolher as fezes, e deixaram sacolas disponíveis para quem esquecesse a sua própria.
Outra maneira de estimular a participação das crianças, sobretudo das que estão no final do Fundamental I ou já no Fundamental II, é realizar grupos de trabalho acerca da questão. O intuito é investigar e pesquisar o assunto, formular hipóteses e comparar teses, debatendo com os colegas e professores, para se ter uma noção mais ampla do problema.
Por exemplo, se as crianças quiserem novos brinquedos para o parquinho da escola e eles custam caro e a escola não tem dinheiro, pode-se pesquisar com os alunos a forma de financiamento das escolas, a distribuição do dinheiro para cada área, alternativas à compra do brinquedo, e até realizar um planejamento financeiro para viabilizar a compra em determinado período de tempo.
Os desenhos podem ser um recurso alternativo à fala para que as crianças expressem seus desejos, sonhos e desconfortos. Em sala de aula, com crianças a partir de 4 anos, principalmente, desenhar pode ser uma ferramenta para entender o que elas querem.
O professor pede, por exemplo, que elas desenhem como gostariam que fosse a brinquedoteca da escola. Ou pede para ilustrarem o que menos gostam na escola. E enquanto elas desenham, os professores podem perguntar o que significa cada elemento, o que estão querendo expressar, como se sentem sobre aquilo.
Enquanto isso, o professor vai fazendo um registro por escrito das impressões, que podem ser levadas à gestão posteriormente, ou pelos professores ou pelas próprias crianças.
Para além de momentos estabelecidos para discutir questões acerca da escola, é interessante que as crianças possam acessar a gestão a qualquer momento. O simples gesto de deixar a porta da diretoria aberta pode ser um convite a entrar.
Como nem sempre um diretor ou coordenador poderá atender as crianças, uma alternativa é criar um canal nas redes sociais que elas possam acessar e mandar mensagens. Para os mais novos, pode-se deixar uma caixa de sugestões em algum lugar de fácil acesso da escola, onde as crianças possam depositar seus pedidos e incômodos.
Mas para que as crianças saibam que esse mecanismo funciona, e são verdadeiramente escutadas, os especialistas recomendam que haja sempre um retorno da gestão, e que preferencialmente não se demore mais do que um mês para realizá-lo.
Para Franciele, que acompanhou crianças pequenas, de 4 anos, durante uma visita à Bienal de Artes, uma ferramenta interessante para entender o ponto de vista das crianças é a câmera fotográfica.
Ela pediu para os pequenos fotografarem o que estavam vendo, o que mais gostaram na exposição de arte, entre outros pontos. Depois, projetaram as imagens para toda a turma e foram conversando sobre as impressões que tiveram, e o que acharam de cada foto e de cada obra.
“As fotos que as crianças tiraram na Bienal não tinham nada a ver com as fotos que os adultos fizeram. É outro ponto de visão, outra realidade, vivem em outros espaços, outros objetos, e veem coisas que a gente jamais veria”, contou.
Manuel traz de Portugal outra experiência bastante difundida pela Educação Infantil do país. Lá, ao final do dia, as crianças sentam em roda e o professor puxa o assunto, pedindo que contem como foi o dia deles, o que aconteceu. Naturalmente, vão surgindo sugestões, problemas e opiniões sobre a escola e as atividades que realizaram.
“O processo de participação não está restrito a uma faixa etária, deve ser feito também para crianças menores por meio de suas formas próprias de comunicação, pois elas, como todas as outras, têm capacidade de emitir sua opinião e elas devem ser levadas em conta”, assegura Manuel.