publicado dia 04/02/2022
Vacinação infantil, essencial para o retorno presencial, encontra obstáculos no Brasil
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 04/02/2022
Reportagem: Ingrid Matuoka
Logo no início do ano letivo das escolas brasileiras, três estados (Mato Grosso do Sul, Maranhão e Rio Grande do Norte) estão com suas UTIs pediátricas para tratamento de Covid-19 em ocupação máxima. Em outros quatro estados (Bahia, Ceará, Goiás e Pernambuco), a ocupação passa de 80%, o que é considerado crítico. Nas UTIs gerais o mesmo cenário se repete: oito estados e o Distrito Federal estão com a ocupação acima de 80%, segundo a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
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Último grupo a ser vacinado no Brasil, as crianças (5 a 11 anos) estão mais vulneráveis à ômicron, variante responsável pela maioria das internações por Covid-19 atualmente. O país, que teria capacidade para imunizar 75% desse público em duas semanas, alcançou apenas 10%, tanto pela desinformação quanto pela falta de doses.
“As crianças também podem ter Covid e desenvolver formas graves, além de transmitirem. A população toda tem que estar vacinada para a pandemia acabar”, destaca Gulnar Azevedo, professora de Epidemiologia do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e associada da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Além de garantir a vida das próprias crianças e das pessoas que as cercam, a imunização é um dos pilares para garantir o retorno presencial seguro e permanente às escolas, que também depende dos protocolos de biossegurança e da testagem da comunidade escolar.
O Núcleo Ciência Pela Infância reuniu pesquisas e evidências científicas que reafirmam a segurança das vacinas e a relevância delas para a saúde e desenvolvimento das crianças, bem como caminhos para escolas minimizarem incertezas sobre a vacina junto às famílias. Confira o documento.
“Ficar tanto tempo fora da escola está gerando consequências significativas para as crianças e as famílias. Já foi tempo demais. É preciso criar condições para voltar de forma segura e o elemento principal é a vacina”, analisa a especialista. A cobertura vacinal infantil no país, contudo, tem encontrado entraves.
Em 16 de dezembro, a Anvisa divulgou uma nota atestando que a vacina é segura e eficaz para crianças. Ou seja, a partir dessa data, a vacinação poderia ser iniciada. Mas com a total desarticulação e falta de planejamento do governo federal nas questões relacionadas ao enfrentamento da Covid, o início da aplicação aconteceu quase um mês depois: 14 de janeiro.
Além do desestímulo à vacinação, houve alteração da logística sobre o transporte das vacinas na chegada aos municípios e a realização de uma audiência pública a respeito da necessidade e eficácia da vacina para crianças. Foram 28 dias desperdiçados. Não fosse esse atraso, milhares de casos e dezenas de mortes poderiam ter sido evitadas, como aponta estudo do Instituto Butantã.
“Nunca se discutiu se as pessoas concordavam, nunca se colocou em audiência pública, nem se precisavam de autorização, porque é uma questão científica, de saúde pública e coletiva. Não pode ser uma decisão individual se impacta todo mundo”, diz Gulnar Azevedo.
E apesar de o Comitê Consultivo Global sobre Segurança de Vacinas da Organização Mundial da Saúde (OMS) ter concluído que as vacinas de mRNA, como as da Pfizer, trazem mais benefícios do que riscos para todas as faixas etárias, a imunização de crianças vem sendo rodeada por desinformação, atingindo as famílias com temores: “A vacina vai mudar o DNA do meu filho”. “Criança não precisa de vacina porque quase não pega Covid-19”. “O efeito colateral não vem agora, vem a longo prazo”. “Por que vacinar crianças, se o número de casos graves e de mortes entre elas é pequeno?!”. “Não vou fazer do meu filho uma cobaia”, são algumas das crenças completamente equivocadas que vêm sendo repetidas.
Mas nem sempre foi assim. Historicamente o Brasil sempre atingiu altos índices de vacinação por meio do Programa Nacional de Imunizações, do Sistema Único de Saúde (SUS) que, há 49 anos, alcança quase a totalidade da população em todos os territórios do país, oferecendo vacinas gratuitamente e na idade correta.
“A vacina evita doenças e o desenvolvimento de quadros mais graves. Essa era a percepção geral da população, mas movimentos antivacina estão levando inseguranças infundadas para as pessoas, bem como a crença de que essas doenças que não costumamos ver mais estão erradicadas, então não seria preciso mais tomar a vacina. Mas é justamente porque todos tomam a vacina que elas estão controladas”, elucida o médico Ricardo Queiroz Gurgel, membro do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Em decorrência do negacionismo científico, diz o especialista, as taxas de cobertura geral da população brasileira estão abaixo dos 80% na maioria das vacinas, um nível que não é mais seguro e possibilita a reintrodução de microrganismos selvagens entre a população, como aconteceu com o sarampo nos últimos três anos, doença que há uma década não aparecia no país.
“Nos últimos dois anos tivemos mais mortes de crianças por Covid do que a soma de todas as doenças que possuem vacina, justamente porque elas protegem. Esse pico atual de Covid, se fosse no ano passado, quando uma parcela mínima da população estava vacinada, teríamos uma mortalidade trágica. O efeito disso está sendo menor devido ao grande número de pessoas imunizadas. Mas quem está sofrendo muito agora são as crianças, justamente a faixa etária que ainda está sendo vacinada. Por isso é preciso avançar nessa imunização e estendê-la também para as menores de cinco anos”, defende o pediatra.
No início do ano letivo é provável que as famílias expressem suas dúvidas e inseguranças sobre o tema e é papel da escola acolhê-las e apoiá-las na busca por informações confiáveis. “As famílias precisam ser incentivadas a se vacinarem e orientadas sobre suas dúvidas”, diz Gulnar.
Podem haver, contudo, famílias que defendam que são elas quem decidem se vão vacinar seus filhos ou não. As crianças e adolescentes, contudo, possuem seus próprios direitos independentemente da opinião familiar.
“Não vacinar os filhos é colocar a vida deles em risco e privá-los de seus direitos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que casos de negligência precisam ser enfrentados, recorrendo aos serviços de proteção à criança e ao adolescente. Também é importante que o país estabeleça a obrigatoriedade da vacina para frequentar espaços coletivos, afinal, diz respeito a proteger a todos”, esclarece Gurgel.
O Ministério da Saúde, no entanto, parece ir na direção contrária. Nesta semana, a pasta criou um mecanismo que dificulta a vacinação de crianças: um atestado que dá liberdade para os pais alegarem que os filhos têm “contraindicações relativas” e, portanto, a vacina não seria recomendada para eles. Pela lei, só a Anvisa pode estabelecer tais contraindicações. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) já acionou o STF (Supremo Tribunal Federal) contra a medida.
“Nunca se discutiu se as pessoas concordavam, nunca se colocou em audiência pública, nem se precisavam de autorização, porque é uma questão científica, de saúde pública e coletiva. Não pode ser uma decisão individual se impacta todo mundo”, reforça Gulnar.