publicado dia 04/12/2018

Pedagogia das Encruzilhadas: uma perspectiva afro-brasileira para a educação

Reportagem:

Por Cecília Garcia, do Portal Aprendiz

Em uma sala cheia de crianças batendo palma, rodeadas por tambores e berimbaus, o pedagogo Luiz Rufino está de cabeça para baixo, sustentando com os braços uma bananeira. A capoeira, expressão cultural genuinamente brasileira, é a ferramenta pedagógica do dia, colocando corpo e mente para aprender sob outras perspectivas que não as geralmente usadas em espaços educativos.

Para o doutor em Educação formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro  (UERJ), a vida enquanto educador nunca esteve separada da de estudioso da cultura afro-brasileira e todas as suas matrizes: “A educação é um fenômeno imbricado entre vida, arte e conhecimento, não exclusivo do projeto escolar. Então meu percurso foi sempre o de fazer diálogos entre diferentes áreas, como a capoeira, o jongo, a umbanda e o candomblé”, conta.

Foi na inconformidade com a racionalidade cartesiana e eurocêntrica como único projeto de mundo possível dentro da educação brasileira que Luiz escreveu a tese de doutorado “Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas”.

Nela, o pedagogo propõe uma pedagogia alternativa aos saberes postos como universais e a educação como caminho de reconstrução dos seres a partir de conceitos extraídos de sabedorias e viveres afro-brasileiros. Nesta perspectiva, a figura iorubana de Exu é apresentada como o princípio de explicação do mundo e de outra ética possível. Confira a entrevista:

luiz rufino ensinando capoeira

O educador Luiz Rufino ensina alguns movimentos de capoeira / Crédito: Facebook

Portal Aprendiz: Na sua tese, você diz que a educação brasileira e o Brasil ainda estão sujeitos a um assombro colonial. No que isso consiste?

Luiz Rufino: Nós ainda vivemos sob a condição, o assombro, a fantasmagoria de um carrego colonial, ou seja, das energias do colonialismo. O fato do Brasil ter se constituído como estado nacional não deu conta de reparar a tragédia do colonialismo. Ela ainda opera sobre nossas existências.

O fato do Brasil ter se constituído como estado nacional  não deu conta de reparar a tragédia do colonialismo. Ela ainda opera sobre nossas existências

Pegue, por exemplo, o genocídio como Abdias do Nascimento trabalhou em sua pesquisa. O Estado brasileiro é um estado genocida. Aqui no Rio de Janeiro se vive sob uma política de estado que é colonial. Esse assombro acontece primeiro no ataque ao corpo, no ataque à existência física das pessoas. Frantz Fanon, em seu livro “Os Condenados da Terra’, trata o Estado colonial como radicalizado na violência extrema: nele se mata, se estupra, se encarcera, se mutila e se traumatiza.

Existe também o epistemicídio, que a filósofa Sueli Carneiro traz como o aniquilamento, esquecimento das sabedorias. E temos, por fim, o glotocídio, que é o aniquilamento da linguagem. Então, a principal ação da tragédia do colonialismo é a destruição existencial dos seres.

Existe um sistema de terror que opera em diferentes nuances, que destrói os seres desmantelando-os cognitivamente, blindando sua capacidade de existir. No entanto, a educação pode ser caminho e possibilidade, porque um de seus fundamentos é a ética, o reconhecimento do outro enquanto possibilidade, como caminho para transformar esses seres e para formar novos.

Portal Aprendiz: Você elege Exu, um dos símbolos mais conhecidos da cosmogonia afro-brasileira, enquanto princípio central da sua Pedagogia das Encruzilhadas. Quem é Exu?

LR: Exu entra na jogada não como signo restrito ao repertório cultural do que se entende enquanto religiões afro-brasileiras, mas sim como princípio explicativo de mundo. As pessoas praticam Exu enquanto sabedoria. Exu é princípio cosmológico, condição existencial para o pensamento.

Exu serve também para se pensar a vida e o mundo como projeto inacabado, que pode se constituir enquanto outra possibilidade. Ele traz uma ideia que acho fundamental para nós brasileiros, enquanto paridos dessa tragédia do colonialismo: é preciso se reconstituir dos cacos e do desmantelamento.

Exu serve também para se pensar a vida e o mundo como projeto inacabado, que pode se constituir enquanto outra possibilidade

Por isso, Exu é importante para a educação. A minha ideia de pedagogo sobre uma educação emancipatória, que opere em uma perspectiva de confrontar os parâmetros do colonialismo, não é a de se ter uma educação que somente forme para o trabalho. Educação é aquilo que nos forma para dar condição de produzir respostas responsáveis. Nem sempre se consegue fazer isso, mas deve se estar atento para tanto.

Quando se está atento, é possível romper uma ideia muito cara para o ser ocidental que é a do indivíduo. Exu reivindica e reconhece a condição de existência individualizada – porque afinal todo mundo tem seu corpo, suas questões e suas potências – mas isso só acontece enquanto possibilidade de inscrição no mundo, quando você tem relação com o outro.

baianas em celebração religiosa afro-brasileira

Na Pedagogia das Encruzilhadas, para além de sua relação com as religiões de matriz africana, Exu é um princípio explicativo de mundo / Crédito: Facebook

Portal Aprendiz: E como a Pedagogia das Encruzilhadas enxerga o mundo e sua possibilidade de vir a ser?

LR: A Pedagogia das Encruzilhadas é um balaio* conceitual. Estes conceitos operam no campo do conhecimento, educação, ética e cultura, comunicando outras possibilidades de entendimento e problematização dos acontecimentos e do mundo.

*Balaio: Forma de arte tipicamente indígena, o balaio é uma cesta feita a partir de um elaborado trançado. Pode ser costurada com vários materiais naturais.

*Ebó: ritos de encante e tecnologias construídas a partir do cruzamento de inúmeras sabedorias negro-africanas.

*Padê: Cerimônia do candomblé e de religiões de origem ou influência afro-brasileira, na qual se oferece a Exu, antes do início das cerimônias públicas ou privadas, alimentos e bebidas.

A encruzilhada é justamente um destes conceitos, que diz o seguinte: não há só um caminho. O projeto da modernidade ocidental construiu a dimensão do entendimento de forma polarizada. Existe o certo e o errado, o bem e o mal, deus e o diabo, o civilizado e não-civilizado, o eu e o outro, o familiar e o exótico. A encruzilhada desmantela isso tudo, rompe com os binarismos e aponta uma perspectiva de responsabilidade para nossas escolhas.

E aqui entendo Pedagogia das Encruzilhadas não restrita a um método, mas como projeto político, epistemológico e de conhecimento, como projeto ético que reivindica uma outra orientação. Com ela, trabalho conceitos como ginga, cruzo, ebó epistemológico, entre outros.

Sempre ressalto o colonialismo enquanto presença, mas é fundamental salientar: ele não é uma presença vencedora, por mais que o projeto colonial ocupe um lugar de correlação de forças completamente desigual com outras existências que estão resistindo e lutando. Se você anda numa rua e passa em uma encruzilhada, encontrando um ebó*; se enxerga um padê* para Exu no terreiro; ou quando presencia alguém tomando um gole de cachaça, cuspindo e saudando Exu, isso implica uma outra forma de entender e praticar o mundo.

É sinal de que existem cabeças que estão funcionando em outra lógica e que estão acontecendo ações nas frestas e vazios deixados pela dominação colonial.

Portal Aprendiz: Dentre os muitos conceitos que você trabalha dentro da Pedagogia das Encruzilhadas, há o “rolê epistemológico” e o “ebó”. Você poderia detalhá-los?

LR: O rolê é um movimento que existe na capoeira que proporciona alternativas de ataque ou defesa. O que isso quer dizer? É um movimento que caça espaços vazios. Quando o uso, estou propondo conhecimentos e práticas que respondam aos vazios deixados pela racionalidade dominante.

A ideia de uma universalidade no conhecimento causa mais não-ditos do que ditos. É necessária a confrontação com a racionalidade dominante, caçando suas fragilidades. O que eu aprendo em um terreiro de candomblé ou com o Mestre Pastinha (mestre capoeirista), que o Nietzsche não conseguiu responder? O que eu aprendo com os guarani-kaiowá que a tradição da expansão judaica-cristã não consegue responder acerca do bem-estar ou outras pautas que se colocam comuns para todos os sujeitos?

educador luiz rufino no meio da roda de capoeira

A capoeira é uma expressão cultural que enxerga o mundo por meio de frestas e gingas / Crédito: Maria Buzanovsky

Já o ebó está presente na América afro-latina como uma ação ou intervenção que opera no ausente, colocando ali força ou energia vital. Isso pode produzir processos de encantamento. Tem muita gente que vê a ideia do encantamento como romântica e idílica, mas ela é na verdade uma ideia pragmática. Ir a um terreiro de umbanda e tomar um passe é um procedimento tecnológico que traz outras possibilidades de bem-estar.

Então, por que não pensar um procedimento tecnológico de intervenção de encantamento no campo epistêmico? Uma vez que o conhecimento pautado na universalidade é uma lógica de desencanto, o ebó produz de fato a positivação, não no sentido de ser positivista, e sim no sentido de aumento da força vital.

Por exemplo, hoje eu trabalho com as disciplinas de Filosofia e Educação a partir de outros referenciais. Mestre Pastinha é um deles. Quando eu trabalho com Rousseau para explicar o contrato social, recorro também ao compositor Wilson Batista para fazer a discussão sobre a condição de contratualidade do novo mundo pautado no elemento racial.

Portal Aprendiz: Posto que Exu como explicação de mundo é esse cruzamento entre diferentes saberes, é possível dizer que a Pedagogia das Encruzilhadas é uma possibilidade para se trabalhar uma escola mais conectada com o corpo e o território?

LR: No cotidiano escolar, comumente se trabalha o ensino-aprendizagem cristalizado, incapaz de enxergar as aprendizagens vividas para além do nosso controle. Eu enxergo o jogo, o trabalhar com o que está posto de um jeito brincalhão e sedutor, como uma possibilidade de se pensar essa escola e esse território.

Acessar o território é testar a dimensão da possibilidade. Trabalhar com a dimensão da imprevisibilidade, da ideia de uma curva fora do eixo, de uma transgressão, uma resiliência, ou até mesmo operar no vazio deixado

Acessar o território é testar a dimensão da possibilidade. Trabalhar com a dimensão da imprevisibilidade, da ideia de uma curva fora do eixo, de uma transgressão, uma resiliência, ou até mesmo operar no vazio deixado. O jogo traz a ideia de pensar o espaço praticado.

Exu na sua concepção no Brasil traz muito a ideia do povo de rua. O que é o povo de rua? São aquelas marcas identitárias subalternas produzidas em um contexto do estado colonial que ocupam a condição do estar na rua, do ser na rua como uma saída muitas vezes precária, imprevisível, fugaz. Mas é também possível enxergar aí uma potência.

Ainda na questão do jogo, a capoeira é uma ideia interessante. A capoeira é um jogo que a princípio não tem vencedor, você não tem como trabalhar com a eliminação do outro, só pode viver a experiência do jogo na medida em que reconhece o outro enquanto uma possibilidade para si. Porém, na capoeira tem rasteira, cabeçada, tem deboche, tem gargalhada. Você se torna potente na medida em que vai destrinchando esses espaços de operação de desbunde, de destronamento.

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