publicado dia 05/05/2014

Em debate: Escolarização da educação infantil – avanço ou retrocesso?

Reportagem:

Estudos recentes divulgados pelas Universidades de Virgínia, Chicago e Vanderbilt colocaram a educação infantil no centro das discussões de especialistas na área. Os resultados das pesquisas norte-americanas apontaram para uma possível escolarização da educação infantil, sustentada na percepção de que as crianças são pouco estimuladas, o que justificaria a antecipação de alguns conteúdos de alfabetização e matemática, por exemplo, para o período escolar.

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Tomando como base as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ministério da Educação (MEC) que considera o lúdico, as brincadeiras e culturas infantis entre a condução do ensino aprendizagem de crianças, o Centro de Referências convidou a professora Maria Thereza Marcilio – que tem larga experiência em implantação e coordenação de projetos pioneiros em educação infantil e alfabetização, para debater o assunto. A educadora, que é mestre em educação pela Harvard, também atua em programas de formação continuada de professores das redes pública e particular e é consultora da ONG Avante – Educação e Mobilização Social.

Centro de Referências em Educação Integral: A recomendação dada pelo Ministério da Educação (MEC) é que não se antecipe os conteúdos do ensino fundamental para a educação infantil. Contudo, estudos norte-americanos e alguns professores e escolas no Brasil defendem o contrário, indicando que o trabalho lúdico é “fácil” e não colabora para a formação dos estudantes. Qual sua opinião sobre isso?

Maria Thereza Marcilio: É um absurdo – a nossa luta é fazer com que a escola funcione melhor com menos cara de escolarização. Até porque o que garante a qualidade de uma escola não são os conteúdos e sim a forma como ela se organiza e se apresenta ao aluno. No caso da educação infantil, tem-se o lúdico que, longe de ser fácil, é simplesmente a forma como as crianças aprendem, como elas vêem o mundo. A brincadeira definitivamente não é perda de tempo, ou algo que fazemos quando se está desocupado. Se as diretrizes priorizam o lúdico, é no sentido de reafirmar que sem ele as crianças não aprendem.

O processo de escolarização, de fato, pode se dar com qualquer pessoa; posso sentar na frente de uma criança e falar sobre um conteúdo, mas sem garantia de aprendizado. A própria psicologia diz que não aprendemos apenas recebendo a informação. A questão é como se elabora, transforma e constrói uma compreensão. Há diversos exemplos brasileiros e inclusive norte-americanos (caso de Harvard) que se contrapõem a essa ideia da escolarização da educação infantil. Trata-se de um equívoco.

CR: Quais são os elementos essenciais para a formação da criança? Qual o papel da pré-escola nesse processo?

MT: Toda criança precisa de ambientes que provoquem, estimulem, despertem e alimentem sua curiosidade. Espaços que possam explorar, interagir e se desenvolver tanto do ponto de vista cognitivo, como emocional. Até pela própria dinâmica familiar, com um número maior de mulheres trabalhando fora, é necessária a disponibilidade de locais que garantam essas condições de desenvolvimento; o que não descarta, claro, a presença de adultos responsáveis e carinhosos durante o desenvolvimento de uma criança. A educação infantil, ainda que não obrigatória em alguns países, é quase mandatória, mas sem que se olhe por essa perspectiva conteudista, frágil e defasada do ponto de vista didático e da própria psicologia do desenvolvimento.

O que é conteúdo para uma criança? É o mundo, mas ela percebe isso experimentando. Ainda assim, a educação infantil não deveria ser a única política para garantir a educação integral das crianças. Se as cidades fossem educadoras e complementassem o papel das escolas e famílias, teríamos outra realidade. Mas, na ausência dessa condição, a educação infantil torna-se fundamental.

No entanto, não se trata de qualquer escola. É preciso garantir qualidade e fazer os investimentos necessários para tanto. Mas creches e pré-escolas de qualidade ainda não são regra no Brasil.

CR: Adiantar conteúdos na infância, em detrimento de elementos mais lúdicos, pode prejudicar os futuros processos de aprendizagem da criança?

MT: Acho que a principal consequência é ter pessoas menos criativas, curiosas. Há um artigo da professora Lilian Katz [Universidade de Illionois] que diz que essa abordagem mata a curiosidade das crianças, pois elas não querem informação. A escola surgiu em um tempo em que esse modelo era adequado, mas, passados 200 anos, o mundo mudou completamente e a escola continua mais ou menos da mesma forma: separando crianças por idade, colocando um adulto para lidar com um grupo grande de alunos, dispondo-os sentados. Então vejo que trazer conteúdo para a educação infantil é dar continuidade à massificação que já se tem. Dessa maneira, a criatividade das crianças, a autoria, a criação acabam por ser tolhidas.

Há uma insatisfação mundial com esse modelo escolar. E a educação infantil não tem essa proposta. Pensar em trazê-lo para a infância é um retrocesso.

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