publicado dia 05/12/2022
EJA perde 97% de recursos e vive crise de políticas públicas
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 05/12/2022
Reportagem: Ingrid Matuoka
Há um desmonte da Educação de Jovens e Adultos (EJA) em curso no Brasil. Entre 2012 e 2022, a modalidade perdeu 97% dos recursos investidos, mostra o dossiê “Em busca de saídas para a crise das políticas públicas de EJA”, uma iniciativa do Movimento Pela Base e realização da Ação Educativa, Cenpec e Instituto Paulo Freire. Além de representar um grave retrocesso na garantia do direito à educação de indivíduos que já foram expulsos do sistema educacional anteriormente, esse desmonte também prejudica o combate ao racismo, à LGBTQIA+fobia e às desigualdades sociais no Brasil.
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“O público da EJA é composto majoritariamente por pessoas negras e mulheres, o que reflete a desigualdade histórica no Brasil de garantir a escolaridade dessa população. Negar investimentos é ampliar sua marginalização”, diz Roberto Catelli, coordenador da unidade de Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa.
Eda Luiz, que foi professora e gestora da EJA, acompanhou por 41 anos centenas de vidas que tiveram a oportunidade de se transformarem a partir do acesso à educação. Em uma sociedade letrada e cada vez mais digitalizada, escrever, ler o mundo e as palavras se faz imprescindível para sobreviver.
“São pessoas que assinam o nome pela primeira vez e dizem que a partir dali ‘são gente’. Embora já fossem antes, é como se sentem diante da nossa sociedade. São pessoas que voltam a estudar para incentivar filhos e netos a permanecer na escola e acessar o Ensino Superior, mães que são chefes de família e vêm estudar para poder conseguir um emprego melhor para sustentar a todos. E no governo de Fernando Haddad (na prefeitura de São Paulo) tivemos o programa Transcidadania, que trouxe de volta para a escola pessoas trans, que são muito excluídas da escola pelas violências que sofrem. São histórias de pessoas que têm sonhos a serem realizados e a EJA tem que vir para ajudar nisso”, defende Eda.
Embora em toda a América Latina a modalidade seja historicamente secundarizada, explica Roberto, no Brasil a EJA enfrenta tempos especialmente áridos.
Além da redução de investimentos, há o fechamento de turmas e escolas de EJA (em 2010 eram 40,4 mil escolas e em 2021, 29,2 mil, de acordo com o dossiê) e, logo no início do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019, o Decreto nº 9.4655 extinguiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), em que desde 2004 estava alocada a Diretoria de Políticas de EJA.
“Houve um desmonte de uma série de equipes, políticas e programas básicos da EJA, como o Programa Nacional do Livro Didático da Educação de Jovens e Adultos, e é a primeira vez desde os anos 70 que não há um programa de alfabetização funcionando no país de maneira mais orgânica”, explica Roberto.
A Constituição Federal de 1988 reconheceu a EJA como um direito público subjetivo e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) trouxe importantes avanços ao reconhecer as especificidades próprias das pessoas jovens, adultas e idosas, no que se refere ao desenvolvimento e à aprendizagem, bem como a necessidade de pensar e construir estratégias próprias para o trabalho com esse público.
“A EJA precisa de toda uma pedagogia diferente da que atende aos estudantes em ensino regular por sua característica de pluralidade”, diz Maria Amabile Mansutti
Entre 2020 e 2021, contudo, o Ministério da Educação (MEC) lançou uma série de documentos que demandam da EJA, entre outros pontos, a adequação às orientações e diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), à Reforma do Ensino Médio e à Política Nacional de Alfabetização (PNA).
“A EJA precisa de toda uma pedagogia diferente da que atende aos estudantes em ensino regular por sua característica de pluralidade. Além disso, a adequação da EJA à PNA é outro problema porque essa política não está alinhada à própria BNCC”, explica Maria Amabile Mansutti, consultora do Cenpec.
Em meio à redução de matrículas, de oferta de vagas e de investimentos na EJA, a partir de 2018 houve um aumento dos recursos destinados ao Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA). No mesmo ano, foram repassados R$ 117,6 milhões para o ENCCEJA e menos de um quarto desse valor (R$ 24,6 milhões) para a EJA escolar.
“Ao minar a EJA escolar e investir na certificação, acirram-se as desigualdades, porque diminui o acesso dos mais pobres e pretos à EJA e, em paralelo, investe-se nesse exame, para o qual muitas instituições particulares oferecem cursos pagos para os estudantes se prepararem. Quem tem condições de pagá-los?”, questiona Maria.
“Antes de avançar, é preciso parar de retroceder”, afirma Maria, para quem isso só será possível a partir do diálogo em rede para analisar os desafios e propor soluções territorializadas.
“Temos que resgatar a EJA como direito humano e responsabilidade pública, tal qual está na nossa legislação. Além disso, vale lembrar que boa parte das consequências do fechamento das escolas por causa da pandemia, é a EJA que vai precisar dar conta”, reforça a consultora do Cenpec.
Para Roberto, também é crucial rever a legislação recente com orientações curriculares e operacionais para a EJA e retomar os investimentos na área. “Temos que trazer a sociedade civil de volta para próximo do governo para garantir as especificidades e o diálogo, porque EJA não se faz em massa. São muitos grupos sociais diferentes e é preciso uma certa criatividade para fazer acontecer”, diz.
“Uma pessoa que adquire mais conhecimentos e vive mais momentos de reflexão, melhora toda a comunidade em seu entorno”, afirma Eda Luiz.
Retomar o Plano Nacional de Educação (PNE) é outro caminho possível e necessário, uma vez que nele há a pactuação da sociedade em torno do que é preciso para construir uma EJA de qualidade. “Principalmente as metas 8, 9 e 10 e as estratégias, que oferecem direcionamento para elaborar as políticas públicas que precisam ser construídas”, pontua Maria, que também convoca universidades e instituições a realizarem pesquisas educacionais voltadas para a EJA a fim de mostrar a realidade atual da modalidade.
Também é necessário que sejam feitas adaptações nas regras das escolas para atendimento a este público, que geralmente trabalha e possui família, o que demanda atendimento noturno, horários flexíveis, merenda adequada e matrícula sem vinculação à moradia, já que pode ser necessário estudar perto do trabalho.
“A EJA precisa ser um lugar de diálogo, da vivência em grupo, de valorização dos conhecimentos que essas pessoas já trazem e do que mais podem e desejam construir agora, e não olhar para elas a partir do que deixaram de ter. É uma luta o tempo todo, até dentro das Secretarias de Educação, mas um importante direito para essas pessoas e para nossa nação, porque uma pessoa que adquire mais conhecimentos e vive mais momentos de reflexão, melhora toda a comunidade em seu entorno”, diz Eda.