publicado dia 21/11/2016
“É preciso considerar as opressões estruturais, como o racismo, para discutir currículo”
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 21/11/2016
Reportagem: Ana Luiza Basílio
Repensar a estrutura curricular do ensino médio é fundamental para Djamila Ribeiro, secretária-adjunta de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo. No entanto, ela entende que a discussão deve vir associada a uma reforma estrutural que leve em conta outros aspectos para além das disciplinas e conteúdos.
Currículo na educação integral
Na educação integral, o currículo busca contemplar o desenvolvimento de todas as potencialidades do sujeito.
“Claro que discutir as disciplinas é importante sobretudo quando se tem um currículo eurocêntrico que implica na não valorização de outras culturas e olhares”, observa. “Mas é preciso considerar que a etapa escolar ainda não atinge todos os estudantes, que há escolas de periferia com pouco recurso e condições estruturais muito ruins, além dos desafios que temos para garantir o acesso e a permanência desses jovens na escola, sobretudo os negros e pobres”, complementa Djamila que já atuou como professora da etapa.
Ela defende que o debate considere as opressões estruturais, como o racismo, por exemplo. Confira a entrevista cedida por Djamila Ribeiro durante o Seminário Internacional Desafios Curriculares do Ensino Médio, onde participou como mediadora da mesa “Do ensino médio que temos ao ensino médio que queremos” protagonizada por estudantes secundaristas.
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Centro de Referências em Educação Integral: Por que discutir o racismo é fundamental quando se pensa currículo?
Djamila Ribeiro: Porque no Brasil existe uma resistência de pensar o racismo de fato como ele é. A sua discussão se dá muito no campo individual e não como um sistema de opressão. É muito comum que as pessoas se surpreendam quando uma pessoa pública negra sofre algum ataque racista, mas o fato é que isso acontece sempre. Esse país foi fundado na opressão do povo negro. Vejo que falta a contextualização histórica da escravidão, da pós abolição, do quanto o racismo impede a mobilidade social da população negra, e do quanto indica classe, e não dá pra falar de classe sem falar de raça.
Como o racismo estrutura todas as relações sociais, quando eu vou discutir currículo, eu tenho que refletir sobre por que só se tem a presença de alguns autores e outros não, por que não se tem histórias africanas, por que na filosofia não há filósofas negras ou por que não se estuda filosofia africana.
O racismo perpassa todos os espaços, então não dá pra promover discussões sem pautá-lo, sobretudo em um país como o nosso, que foi o último do mundo a abolir a escravidão e que tem a maior população negra fora da África. No entanto, esse debate muitas vezes fica no campo do específico, se discute políticas especiais, quando a discussão deveria perpassar todas as políticas de maneira transversal.
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CR: Você foi professora e atuou na rede pública de ensino. Como vê o caminho para que as escolas consigam valorizar e dialogar com a diversidade que as constitui pelo currículo?
DR: Como professora, sofri resistência por parte da gestão escolar quando tentei pautar essas agendas, é difícil. A escola é um espaço importantíssimo de transformação de mentalidade, mas acaba por ser também um local de reprodução de violência muito grande, a começar pelos próprios professores que não receberam uma formação para lidar com essa diversidade, e isso começa já nos currículos da Pedagogia, Letras. Não se debate esses temas, não há nenhuma discussão aprofundada. Então, o professor chega sem essa base e ensinar fica mais difícil uma vez que ele, na construção de sua subjetividade, já absorveu os modos de reprodução dessa violência.
É importante pautar essas questões, formar os docentes, ter materiais pedagógicos de qualidade e abrir canais de diálogo com quem faz a gestão da escola, supervisores, coordenadores, diretores já que eles que podem apoiar essa condução no interior das escolas.
Se a gente não mexer de maneira profunda na estrutura, não conseguiremos avançar e as escolas continuarão sendo espaços violentos para quem não está dentro da norma: para quem não é branco, para quem não é heterossexual, para quem não é magro. Se continuarmos a achar que a escola é um lugar para ensinar Português e Matemática, a partir de um viés tecnicista simplesmente e não compreender o ser humano dentro dessa visão holística, não conseguiremos mudar de verdade.
CR: Como você vê essas discussões diante o cenário controverso que pauta, por exemplo, o Escola sem Partido que acusa docentes de doutrinar os alunos?
DR: Esses retrocessos aparecem na educação justamente pelo reconhecimento de que as escolas são espaços importantíssimos de transformação. As pessoas que estão no poder se aproveitam disso para tentar manter a lógica conservadora e as coisas como estão. É bem complicado, porque eles falam na criação de uma ideologia de gênero que, na verdade, já existe e que se materializa a cada vez que se decide não falar sobre ela nas escolas, ou a cada vez que mulheres são tratadas de forma violenta. Ou seja, já se tem uma ideologia posta.
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O que estamos colocando é que não concordamos com ela e que precisamos abrir para o debate. Ninguém aqui fala de discurso neutro, até porque não acreditamos em neutralidade. Queremos outras ideologias baseadas no respeito à mulher como ser humano, e não uma naturalização do que vemos na realidade, na qual a cada 11 minutos uma mulher é estuprada ou a cada 5 minutos uma é agredida fisicamente.
O que estamos dizendo é que do jeito que está não queremos porque nos violenta, nega nossa existência enquanto sujeitos, as nossas subjetividades. Vamos precisar de muita luta diante de tantos retrocessos e não podemos comprar esse discurso da ideologia. A gente tem um lado sim, toda discussão tem, e o nosso é o da igualdade, do respeito. Precisamos fazer com que as pessoas deixem de tolerar o outro e passem a respeitá-lo de fato.
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