publicado dia 24/07/2014
Desvendando o PNE: os desafios da meta 1
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 24/07/2014
Reportagem: Ana Luiza Basílio
A série Desvendando o PNE se debruça sobre a meta 1 do Plano Nacional de Educação e, com o apoio de especialistas, procura dar luz aos desafios que estão por trás da redação estabelecida no texto final: “universalizar, até 2016, a educação infantil na pré-escola para crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE.”
Segundo dados do Observatório do PNE, de 2012, o Brasil possui 23,5% de crianças de 0 a 3 anos na escola, o que equivale a 2,6 milhões; já a fotografia dos 4 e 5 anos de idade mostra que 82,2% das crianças dessa faixa etária estão matriculadas, o que equivale a 4,5 milhões de indivíduos. Em suma, isso significa que as creches ainda precisam atender cerca de 3 milhões de crianças, e na pré-escola, cerca de 1 milhão.
Embora os números evidenciem os desafios educacionais para com as crianças, incluí-las do ponto de vista a garantir apenas o acesso, não adianta. Os direitos das crianças incluem a qualificação desse ambiente educacional, seja do ponto de vista do próprio espaço, da oferta de professores qualificados, alimentação, saúde, lazer, transporte e outras dimensões, sempre em diálogo com o desenvolvimento integral desses indivíduos. Essas questões vão para além da meta 1 do PNE e perpassam toda discussão sobre o plano e sobre a proposta de educação almejada pelo país.
Para Rita Coelho, coordenadora geral de educação infantil do Ministério da Educação (MEC), as creches e pré-escolas têm como centralidade o pleno atendimento à criança. Por essa razão, esses constituintes são fundamentais para garantir “seu desenvolvimento integral, a formação da identidade e a ampliação de suas experiências”, avalia.
Por essa razão, ela defende que a discussão sobre a educação infantil não se paute pelo acesso. Segundo Rita, nesse contexto, algumas pressões beiram o retrocesso, como aponta o caso das judicializações – quando, por exemplo, o Ministério Público autua a cidade na imposição da oferta de vagas. “Quando recai para um município a criação de 150 mil vagas de educação infantil, por exemplo, estamos falando de uma dívida de 500 anos. Nenhum governo, com todo dinheiro do mundo e, se quiser, consegue fazer isso em quatro anos”, declara apontando a falta de terrenos, de capacidade de produção e mesmo de empreiteiras que deem conta da demanda. “Ação judicial tem de ser cumprida sim, mas não adianta reduzir o direito dessa criança à vaga, porque isso é se descomprometer com a ideia de educação infantil”, defende.
A qualificação da oferta também é um dos grandes desafios na opinião de Maria Thereza Marcilio, gestora institucional da Avante Educação e Mobilização Social. “Não dá para aceitarmos salas improvisadas e, no caso da proposta pedagógica, não se pode encostar a pré-escola no ensino fundamental, ou seja, fazer uma escola para crianças pequenas, o que seria um desastre. As diretrizes de ensino têm que ser preservadas em ambos os segmentos”, explica.
A coordenadora do MEC aponta que essa condução enfrenta, sobretudo na educação infantil, um grande complicador. “Nós [da educação infantil] somos a única etapa definida por uma faixa etária. Qualquer pessoa adulta pode retomar os estudos por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), por exemplo. Aqui não. Ou se teve uma educação infantil ou não se teve”, problematiza.
As demandas de um professor de educação infantil são bastante específicas na visão de Maria Thereza. “Quando você está diante de um adolescente, por exemplo, está lidando com alguém que já tem uma forma de pensar e que em muito se assemelha do adulto. Com a criança, é diferente. Ela é curiosa, tem o olhar de um ser em formação, uma leitura de mundo bastante característica”. Para a gestora, o professor tem que saber conduzir esses processos, valorizar as descobertas características da fase e conduzir uma proposta de trabalho integrada, posto que a criança não vê o mundo partido e direciona a ele variadas linguagens, abordagens e maneiras de compreensão.
Isso é preocupante à medida em que as academias ainda não reconheceram esse processo formativo como parte de suas responsabilidades. Segundo dados do Censo Escolar de 2011, 43% dos docentes de creches e pré-escolas não têm diploma universitário.
Para além do compromisso com o desenvolvimento e aprendizagem, são considerados entre a educação infantil o diálogo com a saúde, proteção e lazer das crianças. E é aí que consiste um dos grandes gargalos da formação de educadores, como explica Rita Coelho. “O currículo da pedagogia, determinante nesse processo, não só direciona apenas 5% de seu total à educação infantil, como o faz de maneira generalista, abordando estrutura, funcionamento, legislação e nada sobre a relação com a criança”, indica, complementando que, dessa forma, o país tem professores habilitados, mas não efetivamente formados para conduzir esse processo.
Entre as estratégias para compor a meta 1, o PNE fala do regime de colaboração entre União, estados, Distrito Federal e municípios em ações que visem o aumento e a melhoria da rede, como a articulação para o financiamento das atividades necessária. E, embora avalie a condução como um caminho sem volta, Rita visualiza um problema de natureza gravíssima, como explica. “Os municípios que não se organizaram como sistema de ensino têm autonomia para permanecerem vinculados ao sistema estadual. Nesse caso, seria de competência do Estado a autorização, supervisão e regulamentação da educação infantil”, explica. Mas o que acontece é justamente o contrário. “Aí o MEC ouve dos estados que eles não têm nada a ver com isso e a educação infantil acaba ficando no limbo”, avalia.
Para Maria Thereza essa relação está menos ancorada no âmbito do ‘querer fazer’ e mais na constituição das normas da organização administrativa do país. “A meu ver, esse regime de colaboração pede, sobretudo, uma reforma prevendo que, no Brasil, sempre tivemos um poder federal centralizado, o estado intermediário e o município como instância mais pobre”, declara. A gestora acredita que os problemas girarão em torno de como operacionalizar os recursos, mais do que direcioná-los entre os entes federativos.
Desafio parecido enfrentam os demais setores que deveriam dialogar com a política da educação infantil. Não há experiências dialógicas nesse sentido e, para além de um discurso, é preciso estabelecer a intersetorialidade como prioridade e parte integrante da gestão, das decisões políticas. “Nós não temos essa cultura e estamos diante de um processo difícil que se depara com sistemas diferentes, cadastros diferentes, bases de dados que não conversam”, avalia Rita.
A avaliação da educação infantil também está contida na redação do PNE e no debate entre os especialistas. O texto aponta para a necessidade de se avaliar a cada dois anos, com base em parâmetros nacionais de qualidade, a aferição da infraestrutura física, as condições de gestão, os recursos pedagógicos e de acessibilidade, entre outros indicadores.
Esse caráter avaliativo institucional é bem visto pelos envolvidos com a educação infantil que reforçam o mote processual e o afastam da condução individualizada. “O que deve estar em jogo é o processo e não a criança, senão estaremos problematizando a sua figura; o certo é justamente questionar se nós estamos ofertando o que essa criança precisa para seu desenvolvimento, e aí eu falo de um trabalho coletivo, da escola em parceria com os conselhos e familiares”, aponta Rita Coelho. Avaliando o sistema da avaliação básica, é sabida a presença de desempenho e índices, “mas isso não resolve a avaliação da criança”, defende.
Essa discussão é pauta do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), instância responsável por formular a política nacional de avaliação de educação básica. Há dois grupos estabelecidos, um de especialistas e outro de entidades, que trabalharão na formulação de uma proposta e validação da mesma. Atualmente, as escolas acabam fazendo uso dos Indicadores Nacionais de Educação Infantil, uma estratégia de auto-avaliação das escolas de baixo para cima, para os quais o Ministério da Educação prevê uma revisão ainda esse ano.
Em sua constituição, a educação infantil enfrenta desafios para driblar uma possível falta de identidade da etapa. Para Rita Coelho, “a educação infantil tem critérios, é profissionalizada, implica em planejamento pedagógico e tem o compromisso com o desenvolvimento da criança”. Mas, embora essas condições estejam dadas, recaem sobre a etapa anseios que vão para além de sua concepção. “Ela atende e cruza direitos e necessidades das crianças, mas também das famílias e dos trabalhadores”, aponta a gestora, fazendo menção a demandas do tipo “creches em período noturno” que, para além de uma condução pedagógica, dizem da necessidade de uma política de apoio ao trabalhador. “E como há fragilidades desse tipo na sociedade, a porta de entrada é a creche e isso fragiliza a concepção da educação infantil”, afirma.
Outra questão são os outros modelos de educação que preconizam atendimentos não formais, alternativos, domiciliares ou itinerantes. O ponto de atenção, no caso, é para desresponsabilização do Estado com a oferta de educação e com a condução não equivalente tendo em vista um percurso formativo e qualitativo. “A educação é profissionalizada e, nesse sentido, não podemos abrir mão dos professores. Ainda no caso da educação que quase sempre recai sobre a figura materna, estamos em um momento que nós, mulheres, queremos outras colocações em meio à sociedade, que vão para além dessa tarefa educadora”, observa Rita.
Para Maria Thereza, da Avante, a educação infantil deve ser preservada em sua essência, sem vistas à comparação com as ofertas feitas pelo ensino fundamental, por se tratarem de conduções diferenciadas. Uma das discussões, que tramitam no Supremo Tribunal Federal, trata do acesso de crianças de cinco anos ao ensino fundamental, possibilidade combatida pelos gestores da educação infantil. “Por que eu tenho que antecipar as piores características do sistema educacional, como dimensão dos índices, promoção e retenção? Para além de uma questão de faixa etária, tem-se aqui uma concepção de atendimento, de educação e de criança e isso precisa estar no radar de nossa sociedade”, alerta Rita Coelho.
A concepção de que essas crianças necessitam de um atendimento educacional diz de um olhar para elas como sujeitos de direitos, cidadãs, que devem ter asseguradas as condições para um pleno desenvolvimento, em sua integralidade. Essa mentalidade, no entanto, não foi sempre assim e foi reforçada com a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Desde então, estão mais presentes as discussões sobre a importância da infância e suas necessidades, conceito ainda bastante controverso no quesito faixa etária.
No âmbito legislativo, o Brasil não possui uma política nacional de primeira infância. Dispõe de políticas setoriais, de saúde, cultura, educação, esportes, assistência social e cada uma delas direciona ações ou programas para as crianças. A educação infantil, no caso, é a política de estado para a infância, no âmbito de seu dever para a educação, responsabilização um tanto recente no cenário educacional. Somente com a instituição das Leis de Diretrizes e Bases, de 1996, é que o estado passou a assumir a educação de crianças de até 7 anos de idade; anteriormente, isso estava no campo do privado, junto às famílias, ou sob demanda da assistência social. Outro ajuste visando o desenvolvimento das crianças foi o estabelecimento do Fundeb em 2007, que passou a repassar verba para o financiamento da educação infantil.
Para Rita Coelho, coordenadora geral de educação infantil do Ministério da Educação (MEC), esse é um caminho sem volta. “Vemos que o que está em jogo é muito mais do que a educação da criança pequena, é a construção de uma outra sociedade, de um outro lugar de Estado e da infância”, comemora.
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