publicado dia 04/10/2013
Comunidades de aprendizagem chegam ao Brasil
Reportagem: Julia Dietrich
publicado dia 04/10/2013
Reportagem: Julia Dietrich
“Eu sou vulnerável ao canto das sereias”, observou taxativamente a aluna de 14 anos, produzindo um silêncio incômodo entre os presentes. Era sua interpretação da Odisseia, de Homero, durante uma tertúlia literária em escola da Pavuna, uma das comunidades mais vulneráveis da cidade do Rio de Janeiro.
Os alunos haviam trabalhado um fragmento da peça, em que Ulisses, o protagonista da história, era advertido pela deusa Circe sobre os perigos de escutar as vozes das ninfas, que o aconselhava a tapar os ouvidos com cera e se ata-se ao mastro do navio.
Depois de ler o trecho, a professora pediu aos estudantes que marcassem o parágrafo que mais os havia impressionado e justificassem a escolha.
A Eloisa Mesquita, gerente do projeto Ginásio Experimental Carioca, que no dia participava da atividade, a resposta das crianças a deixou boquiaberta: “Eu gosto do canto das sereias. Sou uma pessoa vulnerável ao canto das sereis porque minha vida é muito dura, difícil. Se não tivesse o canto das sereias, eu não teria nada”, manifestou a jovem.
Uma colega de mesma idade rebateu: “Então você terá que perceber o que o canto das sereias será melhor para você quando os escutar porque se são os cantos que lhe levam às drogas ou coisas que lhe façam mal, você sofrerá muito”.
Um dia depois da atividade, a gerente do GEC, uma rede de inovação pedagógica que integra 28 escolas do Rio de Janeiro, recorda a anedota para exemplificar o alcance das tertúlias literárias nas chamadas Comunidades de Aprendizagem (CdA), que acabam de abraçar.
As tertúlias são uma das ações educativas de êxito das CdAs, que pretendem fazer da comunidade – professores, famílias, alunos, vizinhos e organizações -, partícipe da escola. Juntos, esses atores compõem grupos literários, bibliotecas tuteladas, reuniões familiares, modelos de diálogo para resolução de conflitos, participação educativa da comunidade e formação pedagógica-dialógica.
O projeto, originário do Centro Especial em Teorias e Práticas Superadoras de Desigualdades (Crea) da Universidade de Barcelona, está sendo implementado em escolas piloto em São Paulo e Rio de Janeiro, com o apoio do Instituto Natura.
No dia da visita da reportagem era a vez do GEC Epitácio Pessoa de celebrar uma das principais etapas do projeto, quando pais, professores e e alunos se dispunham a “sonhar” coletivamente o que gostariam que a escola fosse no futuro.
Este foi um dos três ginásios cariocas selecionados para receber a iniciativa e converter-se em um comunidade de aprendizagem.
São oito da manhã de um caloroso sábado de julho no Rio de Janeiro, mas pelo burburinho de veículos e vizinhos, o bairro parece estar acordado faz tempo. A escola está aos pés de uma favela pacificada, junto às casinhas de ladrilho que se amontoam morro acima.
Alguns familiares embarcaram madrugada adentro para participar da atividade. Marly Cardoso, há 21 anos diretora
da escola, toma o microfone e agradece a presença das famílias que estavam na solenidade. “Ela é muito respeitada na comunidade”,
explica Carolina Briso, do Instituto Natura, que participa do ato.
A diretora Cardoso chegou a escola há duas décadas “quando seu espaço físico estava totalmente desestruturado”. Neste tempo, viveu três momentos determinantes: quando reformaram o edifício, quando se converteram em Ginásio Experimental e, agora, quando deram um salto como comunidade de aprendizagem. Hoje ela sonha acordada: “Timidamente, esta escola começou a sonhar no momento em que nos transformamos em Ginásio Experimental. Meu grande sonho agora é fazer a gestão da escola com companheiros do meu lado, porque hoje o peso de todos cai sobre o gestor e graças às comunidades de aprendizagem, esse peso se diluirá”.
“Vocês me delegaram o poder de educar seus filhos porque acreditam que eu posso cumprir esse papel e, portanto, não fazem falta nisso. Meu sonho está em trazê-los para cá para que façam parte desse processo”, complementa a diretora.
Segundo Eloisa Mesquita, a conversão do Epitácio Pessoa em comunidade de aprendizagem se deu pela “própria filosofia desse centro”. Por se tratar de um ginásio experimental, a escola está aberta a contínua “busca por inovações”. Assim, por meio do Instituto Natura, descobriram o projeto Comunidades de Aprendizagem, que desde 1995, se desenvolve na educação obrigatória de 120 centros da Espanha. E, em dezembro de 2012, um grupo de profissionais brasileiros, envolvidos com a educação, viajou a Barcelona para conhecer a iniciativa: “Visitamos quatro centros educacionais na Catalunha, tanto para crianças como de jovens e adultos e fomos a uma escola no Albacete, onde há grande número de imigrantes e populações ciganas”, explica Mesquita, que recorda que ali assistiu a “uma tertúlia literária de adultos, com mães marroquinas que aprendiam castelhano e catalão e uma assembleia em que pais, alunos e docentes discutiam melhorias para a escola”.
O segundo passo foi conhecer no Brasil o que estava sendo feito na Espanha: “Apresentei à secretária de Educação do Rio, Claudía Costín, tudo o que havia visto e lhe disse que valia a pena o desafio; a ela lhe pareceu uma boa ideia e o Instituto Natura chegou a um acordo de colaboração com a prefeitura da cidade”.
Depois, por meio da secretaria, foram mapeadas as escolas em que o processo seria mais fácil. Dos 28 ginásios experimentais, selecionaram três para participar. Um deles foi o Epitácio Pessoa por “sua relação tão próxima com os alunos, pais e comunidade”, ainda que esta não fosse uma condição sine qua non.
Outro dos ginásios escolhidos, foi o Bolívar, que recebe alunos de várias comunidades que não têm necessariamente proximidade geográfica. “Isto demonstra que quando um conjunto de ações são exitosas pode-se implantá-las em qualquer contexto”, explica.
Mas, por que o Brasil? “Porque existe atualmente uma vontade real de melhorar a educação e claras evidências de não terem obtido resultados com projetos que custaram muito, tanto economicamente, quanto em dedicação e esforço do professorado. Agora, querem seguir algo testado”, responde por e-mail o fundador do CREA, Ramón Flecha. Para o pesquisador, há grande semelhança entre os sistemas educativos espanhol e brasileiro, que sofreram nas mãos de alguns que entendiam o fracasso escolar como um negócio, sem respaldo das ações validadas pela comunidade científica internacional”.
Por outro lado, a principal diferença que observa “é a transparência das avaliações externas de resultados, que permitem identificar as atuações que estão tendo melhores resultados e proporcioná-las a outras escolas”.
A complexa heterogeneidade do Brasil faz as comunidades de aprendizagem ainda mais necessárias. “Os pais podem trazer aqui a realidade dos estudantes lá fora”, explica a diretora. Para ela, “no Brasil, existe a dificuldade do professor entender a realidade dos seus alunos,
porque uns outros pertencem a realidades e classes sociais muito diferentes”.
“Assim, as vezes, eles solicitam coisas aos estudantes que não podem
dar, não porque não queiram, mas porque não têm condições estruturais de vida ou vivência para dar-las”.
Aí entra o importante papel das famílias: “Com um pai aqui dentro, próximo ao professor, este poderá visualizar muito mais a realidade desse aluno”, enfatiza a diretora.
“A ideia era trazer o conhecimento de algo que todavia ainda não se conhece no Brasil”, explica Carolina Briso. O objetivo do Instituto Natura é que isso agora se converta em política pública: “Implantar o sistema em duas escolas não nos vale e por isso é que desde o começo fizemos uma colaboração com a secretaria. Nosso plano é entrarmos com muita força para que saiamos do processo dentro de cinco ou seis anos, quando conhecimento for disseminado.”
A diretora Cardoso se mostra otimista: “Quando a vida nos traz limões, temos que fazer uma limonada.”
Texto original de Lola García-Ajofrín, publicado na revista espanhola Escuela