publicado dia 28/03/2025

Adolescência: O que pode a Educação diante das masculinidades? 

Reportagem: | Edição: Tory Helena

🗒 Resumo: Série Adolescência, da Netflix, retrata o impacto de discursos misóginos para crianças e adolescentes. Em entrevista, o especialista em masculinidades Ismael dos Anjos reflete sobre os temas levantados pela série e aponta caminhos para dialogar com as famílias e as comunidades escolares. 

A série Adolescência (Netflix, 2025) não foi baseada em um único caso real, mas se inspirou no noticiário cotidiano que relata a crescente adesão por meninos e adolescentes a discursos de ódio contra as mulheres. 

A produção, que mostra o desenrolar de um caso de feminicídio de uma estudante, escancarou a conversa sobre masculinidades e a potencialização da misoginia por meio das redes sociais para um público mais amplo. A repercussão levou Adolescência ao topo do streaming: a série ficou entre as mais vistas em 71 países na semana de estreia. 

Para além das telas, os temas levantados pela obra também podem inspirar reflexões entre educadores e familiares sobre o papel da escola e da Educação na proteção das infâncias e adolescências. 

O que são os incel  

Impulsionadas pelas redes sociais e lideradas por homens autodenominados incels (ou celibatários involuntários, em inglês), o efeito do discurso incel (ou redpill) nos meninos é um dos temas levantados pela série. 

O termo designa, principalmente na internet, um grupo específico de homens que atribuem suas dificuldades de relacionamento afetivo e sexual às mulheres ou à sociedade. 

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Muitos fóruns de discussão incel cultivam discursos misóginos, ressentidos e violentos, vendo as relações como uma competição de status físico e social. 

O termo é fortemente associado a discursos de ódio e ideologias extremistas, que em alguns casos levam a violências psicológicas e físicas contra mulheres.

Série Adolescência 

Produzida pela Netflix, a série de quatro episódios mostra em plano-sequência a história de Jamie Miller, um garoto de 13 anos acusado de matar uma colega de sua escola, Katie Leonard. 

A narrativa discute temas como a radicalização de adolescentes por meio destes fóruns, bullying, misoginia e as dificuldades de diálogo entre adultos e jovens, sejam famílias ou professores.

A série pode ser um convite para fortalecer a parceria entre famílias, escolas e os adolescentes, com base na construção de vínculos por meio do diálogo, e uma oportunidade para pensar as masculinidades.

Para especialista, é preciso “colocar meninos para conversar” 

A urgência de levar o tema para debate nas escolas, contudo, não deve ser confundida com uma estigmatização de meninos e adolescentes e alguns de seus comportamentos, a medicalização ou um pânico moral. 

O educador Ismael dos Anjos, que coordenou o projeto Silêncio dos Homens, do Instituto PDH, explica a constituição de parte das masculinidades hoje e os caminhos para dialogar sobre elas. 

O especialista no tema, que assistiu à série do Netflix, acredita que o trabalho da escola com o tema precisa ser contínuo, e não depender de ações pontuais. 

“Com as crianças e adolescentes, é trazer referências positivas ou possíveis do que são masculinidades. É colocar meninos para conversar em roda, porque não aprendemos a dialogar. Essa tecnologia social permite que não se use violência como linguagem”, sugere.

Nesta outra reportagem, Ismael também orienta como conversar sobre masculinidades com crianças e adolescentes.

Confira os principais trechos da conversa: 

Centro de Referências em Educação Integral: O que está acontecendo com as masculinidades que têm levado a essa adesão por parte dos adolescentes a discursos e atitudes misóginos?

Ismael dos Anjos: O que estamos vendo é o resultado de muitas décadas de decisões, comportamentos, escolhas e que nos levaram a isso, e de um papel dos homens que foi muito pouco revisado. 

Continuamos criando meninos e homens mais ou menos do mesmo jeito para serem mais ou menos as mesmas coisas: provedores, responsáveis por segurança, capazes de serem agressivos e competitivos, e isso casa com o momento social atual que gera essa panela de pressão.

No contexto social de polaridade há ainda mais terreno fértil para que algumas narrativas e ideologias floresçam. Se hoje temos um grande segmento da população que entende que os homens precisam voltar a ser homens agressivos, como representados por figuras no poder como Trump e Bolsonaro, os meninos também têm essa sensação de que foi isso que nos trouxe até aqui e o politicamente correto, o feminismo, tenta nos afastar disso. 

E isso encontra mais eco nas redes sociais, com algoritmos que favorecem o viés de confirmação, de ter esses ecos de pensamento com quem pensa parecido, e com algum pé na realidade de verem líderes que têm repercussão, alcance, propagando comportamentos ou mensagens que coadunam com isso. 

Mas falar que a questão está só na internet, é culpar o meio pelo conteúdo que nós produzimos enquanto humanidade. E dizer que é só a extrema direita, é ignorar o sucateamento das escolas e a propagação dessa concepção de Educação pensada para o aspecto funcional, trabalhistas, que prepara as pessoas para executar, não para pensar. Com tudo isso junto, temos as condições perfeitas para que esse tipo de coisa floresça.

CR: Este é um problema de toda a sociedade, sobretudo dos adultos. Mas por que as adolescências parecem sofrer especialmente com isso? 

Ismael: Esse é um período da vida de criação e fortalecimento de autonomia e de identificação com determinados grupos. É a hora em que se distanciam dos pais e vão se reafirmar por meio das outras conexões que fazem. 

E é um momento em que esse tipo de narrativa com pretensa fundamentação encontra bastante eco, porque os adolescentes buscam respostas para esse período de ebulição, hormônios e mudanças acontecendo. Sem conversas claras dentro de casa, na escola, e com os amigos, eles vão se agarrar nas explicações que acharem. 

Para uma geração que se vê frustrada, perdida, com um monte de ruído, precisaríamos fazer uma curadoria melhor das informações que chegam a esses adolescentes para que tenham mais qualidade de pensamento, debate e opções para eles. 

É também uma questão de repertório. Na adolescência tendemos a tomar como verdade algumas coisas a partir do tanto de repertório que temos nessa época, seja uma verdade, seja algo passageiro, mas que nessa época não parece exatamente assim.

CR: O que achou da caracterização da escola do protagonista da série Adolescência e em que medida ela também reflete o que acontece nas escolas brasileiras? 

Ismael: Não tentaram construir aquele espaço como monolítico, que funciona de um jeito só. Mostra que as escolas são muitas, plurais, e várias coisas acontecem naquele ambiente. E mostra que a escola não é um farol de esperança em que tudo tem que ser depositado para ser solucionado, é um peso que seria injusto de colocar para elas e é um objetivo incapaz de ser alcançado dessa forma.

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A escola em que o protagonista da série estuda ocupa um dos pontos centrais da trama.

Crédito: Netflix/Reprodução

Em relação à realidade brasileira, vivemos processos de revisão do currículo, da Educação e ataques ao processo educacional e algumas outras coisas que aconteceram nos últimos anos evidenciam a necessidade de retomar um processo escolar que valorize não só o livre pensar, mas também formações sociológicas e filosóficas mais profundas, espaços para que crianças e adolescentes tenham autonomia para errar e discutir ali dentro. 

CR: Quais são algumas condições que as escolas precisam receber para poder discutir as masculinidades e qual pode ser o papel da escola nessa rede necessária para enfrentar o cenário? 

Ismael: As masculinidades precisam entrar no currículo de maneira transversal, para que eles entendam que isso está impregnado não só em quem os alunos são e o mundo que os cerca, mas também nas lentes que eles vão usar para aprender determinados conteúdos. 

Precisamos fazer força no sentido contrário, e fazer com que isso permeie os debates, os encontros, reflexões. Tenho sido convidado para fazer rodas de conversas, principalmente em escolas particulares e de Ensino Médio, mas acho que precisa acontecer desde a Educação Infantil e não como algo anexo, porque ações pontuais não resolvem.

Quando só colocam mulheres em posição de cuidado, isso já informa os meninos e meninas e pessoas não-binárias que o homem não cuida. A maioria dos homens são professores de Educação Física, corpo e movimento, o que ensina que ali é o lugar da competitividade e agressividade, não necessariamente do cuidado. 

Os professores, formais e informais – porque as equipes também educam – também ensinam pelo exemplo, porque os meninos veem e aprendem com eles também o que é ser homem.

Com as crianças e adolescentes, é trazer referências positivas ou possíveis do que são masculinidades. Não as idealizadas ou desconectadas, mas pessoas que eles reconheçam ou se identifiquem e se espelhem como exemplos de masculinidades possíveis, para que se revejam e tentam olhar para si e seu mundo interno.

É colocar meninos para conversar em roda, porque não aprendemos a dialogar. Essa tecnologia social permite que não se use violência como linguagem e eles têm que resolver por meio do diálogo.

Já o fio condutor disso tudo são as boas perguntas, aquelas que não são automatizadas e ajudam a criar um ambiente mais acolhedor e inclusivo, em que talvez a gente ouça mais desses meninos do que de costume, para entender o ambiente que o cerca. 

E principalmente saber como eles realmente estão. A pesquisa “Meninos: sonhando os homens do futuro”, do Instituto PDH, por exemplo, mostrou que 5 em cada 10 meninos não têm certeza se são amados por seus pais. 

*Foto: Netflix/Reprodução

Saiba mais

O silêncio dos homens, documentário do Instituto PDH

Pesquisa “Meninos: sonhando os homens do futuro”, por Instituto PDH + Zooma Inc., apoiada pelo Pacto Global da ONU no Brasil (2023)

A pesquisa inédita ouviu 2500 meninos com idades entre 13 e 17 anos e, dentre outros achados, descobriu que 5 em cada 10 meninos não têm certeza se são amados por seus pais e 6 em cada 10 meninos afirmam ter poucas referências positivas de masculinidade com quem convivem no cotidiano.

Como falar sobre masculinidades com crianças

A cada quatro meninos e adolescentes de até 17 anos, um afirma se sentir solitário sempre. Dentre 10, apenas três possuem o hábito de conversar sobre os seus maiores medos e dúvidas com amigos. E a cada 10, seis afirmam lidar com distúrbios emocionais. Nesta reportagem, Ismael dos Anjos traz orientações para conversar sobre o tema com crianças e adolescentes.

6 obras para debater masculinidades com crianças e adolescentes

O Centro de Referências em Educação Integral selecionou seis obras para famílias e professores discutirem temas como a raiva, a sensibilidade, o amor e as masculinidades com crianças e adolescentes.

Como construir uma escola para as adolescências?

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