publicado dia 12/06/2015

“A cultura é matéria-prima da educação e do desenvolvimento”, avalia Tião Rocha

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FOTO-TIÃO-ROCHATião Rocha é educador popular há mais de 30 anos. Ainda assim, se diz aprendiz. “No sentido de aprender o Outro, de fazer uma leitura densa de como as pessoas se veem, como elas veem o mundo e como participam disso”, esclarece. Para ele, esse entendimento foi determinante para repensar suas práticas e promovê-las a favor do diálogo com a cultura própria de cada indivíduo, reconhecendo-a como ponto de partida para um processo de conhecimento.

Ele entende a cultura como matéria-prima da educação e desenvolvimento. Nessa lógica, defende que os processos educativos partam dos “saberes, quereres e fazeres” das pessoas e que estabelecem com elas uma relação plural e dialógica, capaz de promovê-las como protagonistas de suas histórias, em uma perspectiva de desenvolvimento integral.

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, o educador reforça a importância da cultura se fazer presente no contexto escolar e não aparecer de maneira segmentada, datada, sem estabelecer uma relação significativa com todos os atores envolvidos.

Centro de Referências em Educação Integral: Qual é a definição de cultura?

Tião Rocha: A definição é bem ampla. Eu conheço pelo menos umas 100 definições diferentes. Há desde o conceito amplo de que cultura é tudo aquilo que o homem acrescentou à natureza, ou seja, tudo aquilo que é obra humana é cultura; como também o reducionista quando, por exemplo, se faz em uma escola uma feira de cultura e se convoca especialistas de artes, música, teatro. Eu assumo que cultura são os ‘saberes, fazeres e quereres’ de um determinado grupo social. Pra mim, o que interessa é olhar para um grupo social, para a coletividade, e aprender com eles o que eles sabem, o que eles fazem como resposta às suas necessidades e o que eles querem para suas vidas, para o mundo e para as pessoas.

CR: Em que medida as dimensões do saber, fazer e querer são importantes para o desenvolvimento integral dos indivíduos?

Tião Rocha: Eu aprendi, e tento praticar isso há pelo menos uns 30 anos, que a cultura é matéria-prima de educação e desenvolvimento. Se você quiser produzir educação, aprendizagem, em um determinado grupo, você tem que partir do que as pessoas fazem, sabem e querem, ou seja, da sua cultura; e o desenvolvimento vem com a geração de oportunidades a partir dessas mesmas dimensões. É um ponto de partida e uma base fundamental para construir projetos de transformação, desenvolvimento e educação.

CR: E como você avalia o diálogo da escola com a cultura dos indivíduos?

Tião Rocha: Em geral não há um diálogo, há um monólogo. A escola prescinde disso, em geral. Ela estabelece o conceito de cultura que quer, geralmente pronto, engessado, e leva isso como um referencial do que os outros precisam fazer, saber e querer. Então, ela não treina sua capacidade de ouvir e aprender o Outro. Aí está um grande problema. A escola não produz educação uma vez que esta pressupõe pluralidade e aprendizagem; a escola produz ensinagem. Ela leva uma cultura do modelo dominante e a insere “goela abaixo” dos meninos e meninas, da pré-escola até o nível superior.

CR: Qual seria o caminho para essa integração, levando em conta a formação de professores e a questão curricular?

Tião Rocha: O grande problema é que quem cuida da formação dos professores são as universidades. E elas também não querem ouvir. Elas querem ensinar, repassar um modelo de crenças que acreditam. Então, na realidade, a escola e os professores não são treinados para ouvir o Outro. E educação é uma coisa que só acontece no plural, não no singular. Para que haja educação são necessárias duas pessoas, no mínimo. A educação é plural, a escola é singular no que diz respeito ao sentido na vida de cada um. O que as pessoas têm que estabelecer entre si é troca, do que se tem para o que não se tem. Esse exercício é que traz aprendizagem. Agora, se os professores não se permitem à escuta com os alunos, criam apenas um repasse de uma visão de mundo, de uma visão do lugar que eles ocupam, e que representa o modelo aprendido na universidade. Agora, como os outros receberão isso, se conseguirão estabelecer uma relação de sentido, importa pouco. É um discurso de mão única.

O normal seria que os alunos pudessem falar de si, de onde vem, o que já trazem, o que sabem e para onde querem ir. Mas como isso não é pautado, a escola prescinde dessa relação; a escola existe por si, e nem precisa de aluno para existir. Por isso que quando essa instituição perde um aluno, não lhe faz a menor diferença.

CR: Estamos no mês de junho, momento em que as escolas fazem festas juninas e folclóricas. Estão, assim, dialogando com a cultura?

Tião Rocha: Dessa maneira, a  cultura é datada, pré estabelecida e faz parte do mesmo pacote em que se tem a data do índio, da árvore e tantas outras. Isso faz com que a cultura entre aos pedaços de acordo com o interesse da escola em cumprir um determinado calendário. Se cumpre um ritual, sem que se faça uma avaliação do papel, do significado. Veja que, nessa lógica, a festa junina pode ser julina, agostina, não importa a data se não se tem sua retomada cultural, a sua contextualização. E a escola faz isso tranquilamente e se justifica.

CR: Você conhece experiências educativas que vão na contra mão dessa lógica?

Tião Rocha: Conheço muitas, mas que não são escolas, e sim processos de educação popular, comunitária. As escolas que seguem um padrão, uma grade curricular acabam não tendo esse espaço. Com a distribuição de carga horária e o acúmulo de informações que elas têm, como imaginar que se tenha espaço para a música popular brasileira ou cultura, por exemplo? Isso aparece como alegoria ou adereços vez em quando. Na contramão dessa lógica conheço o Projeto Saúde e Alegria, em Santarém (PA), o próprio Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), o Instituto Kairós, entre outros. Agora, claro que existem escolas que estão rompendo com essa lógica cartesiana e construindo a relação com a cultura do seu jeito, caso do Colégio Estadual Monsenhor Miguel de Santa Maria Mochón (RJ). É possível conhecer outras dessas experiências no documentário Educação.DOC, dos cineastas Luiz Bolognesi e Laís Bodanzky.

CR: O que a educação popular traz de aprendizado a você e às pessoas envolvidas?

Tião Rocha: Na minha perspectiva, isso significou um repensar da minha prática, para que fizesse sentido enquanto educador que eu gostaria de ser. E ficou claro que eu teria que me tornar um aprendiz, no sentido de aprender o Outro, fazer uma leitura densa do Outro, ler a maneira como as pessoas se veem, veem o mundo à sua volta, o que desejam e como participam disso. Em Moçambique, lugar onde trabalhei por muitos anos, aprendi que para educar uma criança é preciso uma aldeia. Isso pra mim virou quase um princípio de fé, eu preciso convocar a aldeia para educar as crianças. Não é possível assumir esse papel nem só pra mim, nem só para a escola. Essa ‘aldeia’ garantiria para as crianças exatamente suas tradições, seus valores, seus princípios. Isso marcou minha prática e me determinou como profissional. Do ponto de vista do Outro, crianças, jovens e adultos com os quais eu convivo é que quanto mais você é capaz de aprendê-los, de olhá-los não pelo lado vazio, mas pelo lado cheio do copo, a capacidade que eles têm de acolhimento, convivência, aprendizagem e oportunidades, mais essas pessoas se envolvem, crescem como seres humanos, não só da perspectiva holística, mas integral. A formação integral acontece quando as pessoas assumem o papel  de protagonista de sua própria história. E isso só é possível em diálogo com a cultura, com a origem de cada pessoa, que diz muito sobre de onde ela veio, como veio e para onde deseja ir.

Cultura local deve entrar na escola e ajudar a transformá-la

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