publicado dia 22/06/2015
Para especialista, valorização docente é uma responsabilidade de toda a sociedade
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 22/06/2015
Reportagem: Ana Luiza Basílio
Neste ano, diversos estados brasileiros assistiram à greve de professores. O estado paulista registrou a sua paralisação mais longa, segundo o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp): 92 dias. Entre a pauta principal, a questão salarial e o pedido de cumprimento do piso salarial da categoria, conforme regulamentado pelo artigo 5º da Lei nº 11.738, de 16 de julho de 2008.
Segundo a Apeoesp, este ano, entraram em greve os estados de São Paulo, Sergipe, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Piauí, Paraíba, Rondônia, Roraima, Pernambuco, Goiás e Distrito Federal. Nesse momento, encontram-se em greve os estados do Acre e Tocantis.
As paralisações evidenciam que ser docente, no Brasil, significa lutar pela sua valorização profissional. Entretanto, ainda que sumamente importante, o salário é apenas um dos componentes que devem ser avaliados quando o assunto é valorização docente. A professora do departamento de educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Marcia Jacomini, entende que é preciso se ter mais clareza do que, de fato, isso significa. “Por mais que esse reconhecimento apareça entre os discursos sociais, não necessariamente se traduz em medidas concretas de valorização desse profissional”, avalia.
Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a especialista destaca outros aspectos ligados à temática e convoca a sociedade a intervir nos casos de paralisação. “A educação não é uma questão de professores e estudantes, apenas, é social. A sociedade não pode aceitar que o Estado não negocie com os professores, permitindo assim greves extremamente longas. É preciso que se mobilize para o cumprimento do direito à educação a toda a população e que exija das autoridades competentes condições salariais e de trabalho adequadas aos profissionais da educação”, atesta, reforçando os prejuízos desses episódios, que vão para além de uma única categoria.
Centro de Referências em Educação Integral: O que é valorizar um professor?
Marcia Jacomini: Essa é uma pergunta interessante e extremamente importante. Se fala muito sobre valorizar o professor e de fato é preciso entender o que significa isso. Para tanto, é preciso envolver várias questões. Uma delas está ligada ao reconhecimento da importância desta profissão na sociedade contemporânea. No entanto, por mais que esse reconhecimento apareça entre os discursos sociais, ele não necessariamente se traduz em medidas concretas de valorização desse profissional. E aí eu vou pegar mais três aspectos interligados a essa temática.
O primeiro deles é as condições de trabalho. É necessário contar com escolas que tenham infraestrutura adequada para a realização das atividades, o que envolve a disponibilização de recursos de acordo com o momento que estamos vivendo. Se há 40, 50 anos atrás não tínhamos computadores nas escolas, hoje ter acesso à tecnologia, internet é importante, não dá para se pensar em escolas só com lousa e giz.
Dentro das condições de trabalho, temos ainda a questão da jornada, aspecto também ligado à carreira do professor. O trabalho docente tem uma especificidade em relação à maioria das profissões por se estender para além do momento de atuação, no caso, para além da sala de aula; é preciso considerar horas de formação/planejamento para que esse professor esteja preparado para dialogar com as questões sociais, culturais, econômicas, políticas, fundamentais para suas práticas, independente de sua especialidade.
Há estudos que comparam a jornada dos professores com a de outros profissionais e a entendem como reduzida. Contudo, é preciso checar a jornada que está sendo considerada. Se for só o momento em sala de aula, há um problema metodológico. E o que isso tem a ver com as condições de trabalho? Se eu tenho uma jornada de trabalho muito grande – e nós temos, por exemplo, em São Paulo, o professor pode ter uma jornada de até 70 horas de trabalho semanais, de acordo com o plano de carreira da cidade -, isso faz com que esse professor atue em mais de uma escola e até em redes de ensino diferentes. Isso é um problema. No Brasil, estamos bastante distantes, na educação básica, de chegar a uma prática em que o professor trabalhe em apenas uma escola, em uma única rede, com uma jornada semanal de 40 horas.
A outra questão relacionada à condição de trabalho é a salarial. Quando eu falo que a profissão docente é importante e o salário desse profissional se encontra abaixo da média dos demais trabalhadores que têm formação equivalente, eu reforço a desvalorização. Isso é tão verdade que temos uma meta no Plano Nacional de Educação, meta 17, que aborda a equiparação salarial. No estado de São Paulo, por exemplo, a diferença entre a média salarial dos profissionais com ensino superior e a dos professores, com mesmo nível de formação, é a mais alta. Isso significa que, concretamente, esse profissional não é valorizado. Não estou dizendo que a maneira de se fazer isso é só pela via salarial, mas ela é importante.
CR: Como fazer com a que a carreira docente valorize seus profissionais?
Marcia: Uma das formas de valorização docente é o estabelecimento de uma carreira atrativa, que estimule, incentive e que seja indutora no sentido de fazer com que as pessoas queiram trilhar a formação em cursos de licenciatura. Ela precisa ter um salário inicial correspondente à média salarial dos demais profissionais com formação equivalente e, ao longo dos anos, proporcionar uma progressão que incentive a permanência do docente na carreira. Claro que essa progressão está vinculada a avaliação, ao tempo na rede, mas é importante que se tenha essa possibilidade. Também há de se considerar o grau de dispersão salarial, ou seja, a diferença entre o salário final e inicial na carreira. Se o salário inicial é muito baixo, a profissão não será atrativa aos jovens, mesmo que no decorrer da carreira seja possível chegar a um salário melhor.
A existência dos planos de carreira é muito importante, com garantias de progressão, da formação continuada, da possibilidade de afastamento para os estudos. Eles regulamentam a atuação do professor e é importante saber a viabilidade da profissão em determinada rede.
CR: Como avalia a situação do Brasil em relação aos demais países?
Marcia: O Brasil está bastante atrasado, principalmente quando comparamos com a Europa em termos salariais. Na América Latina, fica atrás de alguns países também. O Brasil remunera mal seus professores. É isso que aparece nos estudos que se debruçam sobre essa questão. Tanto é assim que uma das metas do PNE, a ser cumprida até 2020 é a equiparação da média salarial dos professores de educação básica a dos demais trabalhadores com formação equivalente. De acordo com dados do governo, disponíveis no site “Planejando a próxima década: construindo metas”, a média salarial dos professores da educação básica no Brasil corresponde a 72,7% da média salarial dos demais profissionais com formação equivalente e, no estado de São Paulo corresponde a 63,8%.
CR: Como isso se deu, historicamente, no país?
Marcia: Algumas pesquisas já têm indicado que, do ponto de vista de vencimento, de salário, o professor nunca foi valorizado. Claro que se olharmos para 70 anos atrás, um professor que atuava no equivalente ao Ensino Médio hoje até tinha um salário melhor; mas o professor primário, já na primeira metade do século XX, tinha um salário baixo se comparado a outras profissões com o mesmo nível de formação. Historicamente, professores no Brasil nunca foram bem pagos.
Durante uma época, o professor primário trabalhava meio período. Isso permitia uma outra relação com os alunos, com a própria aula. Hoje, há professores que atuam em três turnos, em mais de uma rede, e o problema está em não considerar a especificidade dessa atuação se comparada a outras profissões, pois estamos falando de uma relação entre seres humanos, que se dá a partir de uma proposta formadora. E temos sujeitos, dotados de vontades, desejos, o que significa que o trabalho do professor demanda também um investimento emocional. Na verdade, a nossa reivindicação histórica é ter 50% de nossa jornada ministrando aula, e 50% reservada para todas as atividades de suporte à docência para que, de fato, se tenha um trabalho educativo que considere o trabalho coletivo, a comunidade e os estudantes.
CR: O Plano Nacional de Educação reserva metas específicas sobre a valorização docente. Quais articulações você julga necessárias para que a política pública consiga enfrentar esses desafios?
Marcia: É fundamental o investimento na formação inicial e continuada. Eu diria que precisaríamos fazer uma espécie de revolução na formação inicial do professor. Uma parte disso tem a ver com garantir que ela seja feita em nível superior e, preferencialmente, nas universidades públicas, exatamente o oposto do que acontece hoje. Ela também precisa se consolidar como uma formação que ao mesmo tempo que promove o desenvolvimento integral, estabeleça um vínculo com a formação profissional propriamente dita, ou seja, considere o conhecimento necessário ao professor e o relacione ao ‘como ensinar’ levando em conta o processo educativo com os estudantes. São conhecimentos interligados: os específicos a uma determinada disciplina, os relacionados ao como ensinar e os que consideram as especificidades de desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Depois, nós temos uma demanda que é a formação em pós-graduação. Ela é muito importante, mas também precisamos discuti-la do ponto de vista da qualidade. O que temos visto é a seguinte lógica: como não se forma bem na graduação, então projeta-se a pós. Não é uma sucessão de cursos que deve garantir isso, porque senão daqui a pouco teremos que lidar com o que não foi aprendido na graduação no doutorado. A graduação é um dos momentos mais importantes. Além disso, temos um conjunto de cursos de pós-graduação ministrados essencialmente pelo setor privado, que acabam sendo procurados pela contribuição funcional na carreira, mas que nem sempre estão vinculados à prática ou a uma formação teórica mais consistente. Talvez devêssemos pensar numa formação, seja no lato ou strictu sensu, mais vinculada à própria atividade, ou seja, que pudesse subsidiar a prática, não como receita, mas como processo de reflexão e diálogo entre teoria e prática.
Como política de Estado, em termos de formação, é preciso pensar em subsídios para melhorar o processo educativo nas escolas. Esse deveria ser o sentido da formação continuada nas universidades; e tem-se ainda as que ocorrem no próprio contexto escolar, e aí sou defensora da ideia do educador José Mario Pires Azanha quando ele diz que a formação continuada tem que estar vinculada ao projeto político pedagógico da escola, ao desenvolvimento dele. Então, ela não pode ser individualizada, nem ser igual a toda a rede, uma vez que deve responder o que os professores de determinada escola precisam para desenvolver aquele projeto educativo.
CR: A pesquisa “Remuneração de professores de escolas públicas da educação básica” avalia o impacto do Fundeb nos salários e planos de carreira dos professores das redes estaduais e municipais. Qual análise é possível?
Marcia: Antes de tudo, eu vou retomar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) porque ele implicou em melhoria salarial para o professor de estados e municípios que tinham salários ruins, às vezes inferior ao salário mínimo nacional. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) chega em um momento em que já se tinha feito algo nesse sentido.
A docente participa da pesquisa “Remuneração de professores de escolas públicas da educação básica”ao lado do também educador Rubens Barbosa de Camargo, professor doutor da Universidade de São Paulo. Em artigo, os pesquisadores discorrem sobre algumas demarcações legais da carreira docente.
Ambos os fundos propõem uma divisão pelo número de alunos e também a aplicação de no mínimo 60% com o pagamento de professores. Agora claro que, a partir dessa lógica, mesmo com o apoio da União, que não cumpriu nem a legislação do Fundef, estados e municípios não conseguem praticar o piso. Precisamos inverter essa lógica de financiamento que temos no Brasil que é de investir o que se pode em educação, ou fazer o que dá. É preciso investir o que é necessário para garantir um ensino de qualidade.
Quando a gente discute o Custo Aluno Qualidade (CAQ), também previsto no PNE, estamos trabalhando com outra lógica. Trata-se de um esforço de dizer quanto precisamos investir por aluno para garantir o mínimo necessário para uma educação de qualidade, do ponto de vista dos insumos. É preciso também que a relação numérica professor aluno seja equilibrada, que o docente tenha uma jornada de trabalho e um salário aceitáveis. E se temos dificuldade de implementar esses custos totais agora, temos que partir de um inicial que é o que prevê o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi).
CR: Há algum território que tenha conseguido colocar em prática políticas de valorização docente?
Marcia: Isso é difícil responder, porque para se dizer sobre uma valorização da carreira docente é preciso ter parâmetros. Por exemplo, Roraima, pelos valores que constam no plano de carreira deles e pelo valor do Fundeb, é um estado em que provavelmente a situação do professor em relação aos outros profissionais, do ponto de vista salarial, é valorizada. Isso é bastante diverso no Brasil. O Rio Grande do Sul, por ter uma carreira mais antiga, reúne algumas características que as mais novas vêm perdendo. São Paulo tem um salário baixo, mas não tão ruim se comparado ao de outros estados e municípios; a carreira, por outro lado, tem questões importantes de valorização e outras complicadíssimas como a carga horária de 70 horas. O problema é que os baixos salários tem levado a “soluções” individuais, ou seja, se trabalha mais para ganhar mais, quando o que deveria predominar são as lutas coletivas contra os baixos salários.
CR: A greve é um instrumento do trabalhador e evidencia a luta por melhores condições de trabalho. Só que, no período em que acontece, acaba por negar o direito de crianças e adolescentes à educação. É possível estabelecer essa relação de pensamento?
Marcia: A greve é um instrumento de luta dos trabalhadores. E ela sinaliza o limite de uma condição. O ideal seria que os professores não precisassem fazer greve, pois é uma situação difícil para todos os diretamente envolvidos com a educação. Acontece o seguinte: quando você faz greve no setor produtivo, você tem o impacto de não ter produzido aquilo naquele momento; o mesmo acontece com os serviços como o metrô, por exemplo, é um impacto daquele dia. Veja que essas greves não se arrastam por 90, 120 dias, e greve de professor dura isso. Isso nos sinaliza algo muito importante. Deixar os professores em greves estendidas dessa maneira é um sinal de desvalorização desse profissional. Os governos dão clara demonstração de desrespeito aos professores, mas também à população quando não negociam com a categoria em greve, quando não atendem reivindicações justas e fundamentais para a atuação docente e a realização da educação escolar. O aluno é prejudicado principalmente por não ter garantido um aprendizado de qualidade e isso não ocorre somente quando há greve.
A sociedade não pode aceitar que o Estado não negocie com os professores, permitindo assim greves extremamente longas. É preciso que a sociedade se mobilize para o cumprimento do direito à educação a toda a população e exija das autoridades competentes condições salariais e de trabalho adequadas aos profissionais da educação. A educação não é uma questão de professores e estudantes, apenas, é social. E, nesse sentido, é preciso ter uma participação mais ativa, no sentido de se posicionar, porque o prejuízo é grande para todos nós.