publicado dia 01/12/2014
“A sexualidade deve ser entendida como direito e trabalhada na autonomia dos indivíduos”
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 01/12/2014
Reportagem: Ana Luiza Basílio
Este ano, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) voltou a ganhar as manchetes da mídia, principalmente em decorrência do aumento do número de casos no Brasil, que vai na contramão da tendência global, em queda. Dados da Unaids, programa conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids, apontaram crescimento de 11% de casos de infecção no país de 2005 a 2013. Entre os jovens brasileiros de 15 a 24 anos, segundo o Ministério da Saúde, de 2006 a 2012, o aumento foi de 53%, passando de 7,7 casos por 100 mil habitantes pra 11,8.
No dia Internacional da Luta contra a Aids, o Centro de Referências em Educação Integral convidou a psicóloga e educadora social do Instituto Kaplan, Camila Macedo Guastaferro, para entender como o trabalho orientado para a educação sexual pode quebrar paradigmas e tabus e formar cidadãos mais preparados para lidar com as diversas questões da sexualidade, parte integrante do desenvolvimento integral dos indivíduos e ponto crucial quando se fala do enfrentamento ao cenário mencionado.
Para a educadora, é fundamental um trabalho pedagógico, sobretudo nas escolas, que lide com a sexualidade como direito, por ser inerente ao ser humano, buscando sempre a autonomia dos indivíduos nesse processo. “Quando você incorpora autonomia sobre o seu corpo, o prazer, de se ver como sujeito que merece prazer, você passa a lidar com a sexualidade a partir das suas decisões, o que é fundamental”. Confira a entrevista na íntegra.
Centro de Referências em Educação Integral: Entendemos que a sexualidade é própria do ser humano e se faz presente nos aspectos físicos e psicológicos dos indivíduos ao longo da vida. Como avalia a presença desse assunto e a abordagem dele pela escola?
Camila Macedo: A sexualidade envolve todas as esferas de nossa vida, desde as emoções e os afetos até o nosso desenvolvimento físico e biológico e ela deve ser abordada de forma diferente de acordo com a etapa de desenvolvimento de cada pessoa.
O problema está em como nos relacionamos com essas demandas. Nós adultos trazemos muito do erótico no que pensamos, e, embora faça parte, o erotismo é apenas um aspecto da sexualidade. Precisamos então, primeiramente, compreender esses múltiplos aspectos que constroem a sexualidade e discutirmos cada um deles em diálogo com as diferentes fases da vida do indivíduo.
E por que a sexualidade não é trabalhada nessa perspectiva? Porque ela estabelece uma relação de poder. A partir do momento que você incorpora autonomia sobre o seu corpo, o prazer, de se ver como indivíduo que merece prazer e que, portanto, vai viver com seu corpo a partir das suas decisões, você se apresenta como um indivíduo diferente, autônomo e nem sempre as políticas têm esse pressuposto como objetivo. No lugar, fica o cerceamento à sexualidade.
Existem boas metodologias e conteúdos importantes que devem ser trazidos à formação da pessoa, desde a infância. A prevenção de abuso, por exemplo, só se trabalha quando se tem clareza que outra pessoa te violentou. Se não se tem o reconhecimento da propriedade do corpo, que é seu, e não do outro e que o outro não pode te infringir alguma violência sem que você permita, fica difícil dizer não. Como a gente quer trabalhar isso se escondemos a sexualidade das crianças?
CR: E como a escola deve trabalhar para que a sexualidade seja entendida como parte integrante dos sujeitos?
CM: Primeiro é preciso que as escolas entendam que a sexualidade está lá desde o momento da entrada desse aluno, que faz parte dele e do que construímos no cotidiano. Devemos, então, trabalhar sua presença e não negá-la, gerando reflexões que possam promover a escola como um ambiente de valorização e acolhimento da diversidade.
E, do mesmo jeito que a escola tem que permitir a entrada de conteúdos além dos curriculares tradicionais, tem que abrir espaço à educação sexual porque a sexualidade faz parte do desenvolvimento integral da pessoa. Por isso também, entendo que a formação de educação sexual não deve ser dada somente pelos professores de Biologia.
Camila Macedo é psicóloga, educadora Sexual e mestre em Educação e Saúde na Infância e Adolescência pela UNIFESP. É educadora do Instituto Kaplan e atua no SOSex. Coautora dos materiais pedagógicos Vale Sonhar e Valores em Jogo e coautora da instalação interativa permanente Prevenindo a Gravidez Juvenil e da exposição itinerante Por Dentro da Camisinha.
E, para tanto, precisamos repensar a concepção de educação sexual na escola como um todo: é preciso fortalecer o educador a discutir o tema, abrir espaço para o tema na comunidade escolar e reformular a discussão de educação sexual para além de uma abordagem médica e de medicalização do corpo. Hoje, nossa tendência é falar com o estudante do que causa prejuízo e não do lado bom da sexualidade, do prazer, do desenvolvimento afetivo, do relacionamento.
Vejo muito uma concepção de que trazer um médico para dar palestra na escola resolve os problemas e evita gravidez na adolescência e isso não resolve. O que transforma é trazer o potencial de sonho dos estudantes, apresentando as várias possibilidades e projetos de vida que eles podem ter. A partir do momento que eles têm seus sonhos reconhecidos, eles passam a entender que talvez aquele não seja o melhor momento para engravidar, e isso pode fazer com que eles busquem métodos de proteção de maneira mais consciente.
CR: E as famílias nesse processo?
CM: A família faz educação sexual desde a hora que escolhe o nome dessa criança, e isso precisa estar claro. Todos os nossos comportamentos, as regras, implícitas ou explícitas, as crenças, o papel do homem, da mulher, tudo isso faz parte da educação sexual. É importante se colocar nesse universo como uma pessoa de segurança, que pode ser procurada pela criança ou pelo jovem ao passo que ele se sentir seguro para essa abordagem.
O importante é deixar claro que ele pode contar com você, e cada pai, mãe ou familiar vai conduzir isso do seu próprio jeito. O importante é ter clareza que essas marcas – positivas e negativas – da sexualidade estão em todos os lugares e que é preciso trabalhar com a promoção da autoestima, o que significa dar lugar para aquele sujeito ser diferente de você e se constituir, autonomamente, a partir dessa diferenciação. A família também deve passar com clareza seus valores, seus limites, não ter medo disso uma vez que isso possibilita ao jovem ter esse leque de experiências e a possibilidade de escolha.
CR: Como você mesmo disse, a abordagem do sexo com os jovens se associa ao seu caráter negativo, com ênfase às doenças sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada. Como trabalhar para que se crie uma postura de saúde reprodutiva, mas também se discuta a questão da sexualidade como um direito?
CM: É uma dança intensa. Como educadora social eu construí alguns nortes para a minha prática. Um deles é ter uma visão positiva da sexualidade que não vem associada ao medo e à dor. O conceito de vulnerabilidade, ligado à medicina e à epidemiologia, também me deu muitas bases para pensar que vulnerabilidade é pensar em todos os fatores que podem levar você a uma exposição de risco, mas a não escolher uma conduta preventiva.
E eu gosto muito de abrir esse leque para os jovens, de que todo mundo é vulnerável. Ele é vulnerável, eu sou vulnerável. Quando eu amo, sou vulnerável, uma vez que eu confio, acredito naquela pessoa, sou vulnerável. E aí, quanto que eu deposito a minha saúde na mão do outro? Pedir a camisinha não faz de uma mulher “menos mulher”, nem estabelece uma condição promíscua. Ter essas certezas, essas seguranças é fundamental. Diante dos muitos preconceitos que existem na nossa sociedade, discutir a sexualidade – em casa e na escola – é uma forma de enfrentar essas vulnerabilidades.
Mas, é preciso reconhecer que olhar para a sexualidade de uma maneira positiva implica em vivenciar uma sexualidade positiva e aí talvez esteja o cerne do problema. Ainda é recente a discussão do sexo para além da reprodução, que a mulher pode sentir prazer, que é possível se sentir insatisfeito em relação ao sexo e que sexo, amor e casamento não necessariamente andam juntos. Precisamos, cada vez mais, nos aprofundar nesses temas e fortalecer a formação de educadores, ampliando as possibilidades e repertórios de escolhas para cada indivíduo.
CR: E pensando que nem todo mundo tem essa experiência positiva com a sexualidade, como esperar que alguém eduque para isso?
CM: Lidar com a sexualidade do outro é sempre uma grande dificuldade, porque você pode ter que apresentar um espelho para aquilo que não foi sua experiência. Eu acredito que as pessoas não precisam viver uma sexualidade ruim para o resto da vida e a partir de uma formação reflexiva, existem muitas possibilidades de mudança; ninguém está estagnado. Não é porque eu tive uma experiência ruim, abusiva que não posso transformar isso e viver outra diferenciada.
Quando eu faço a formação dos estagiários que vão trabalhar comigo eu vejo uma mudança até no empoderamento deles em relação à camisinha, e um entendimento da abrangência da sexualidade. Então, penso que é primordial que se tenha essa temática nas licenciaturas, porque ele vai estar em sala de aula, e é lá que, muitas vezes, os estudantes vão expressar suas questões, seus comportamentos em relação à sexualidade. Independente da formação e da especialidade desse educador, ele precisa aprender a lidar com essa questão.
CR: E quais metodologias podem apoiar a escola a abordar a sexualidade de maneira mais significativa entre os alunos? E que postura esperar do professor, nesse caso?
CM: Nós, aqui no Instituto Kaplan, trabalhamos muito com as metodologias em grupo a partir de jogos educativos e estes têm várias linhas possíveis. Nós desenvolvemos atividades a partir do psicodrama educacional. Sempre temos um recurso de aquecimento, depois seguimos para a experiência principal – a dramatização – e depois um momento para compartilhar, que é quando os estudantes devolvem os conteúdos a nós mediadores, a partir da reflexão.
Em geral, atividades lúdicas que envolvem o protagonismo juvenil ou da criança funcionam melhor em sala de aula com a temática da sexualidade. O jogo é um bom mediador para esse contato com a sexualidade, já que preserva a pessoalidade de quem o aplica e de quem o recebe, assumindo o diálogo como uma representação.
CR: Este ano, o Programa da ONU para HIV e Aids divulgou números que mostravam o aumento de casos de infecção por HIV no Brasil. Entre as possíveis causas para o aumento aparece a desinformação entre os jovens. Não seria também uma falta de informação e conhecimento sobre o próprio corpo e direitos da sexualidade? Que outras razões justificariam esse aumento?
CM: Acho que temos algumas coisas a avaliar. Uma delas é que o aumento também se deu porque aumentou o acesso à testagem, mais pessoas estão chegando ao serviço e se descobrindo com HIV mais cedo.
A falta de informação é um tema muito polêmico. A informação existe, mas é fragmentada, e a pessoa, com os recursos psicológicos, simbólicos e cognitivos que tem passa a juntar essa informação que implica, eventualmente, na clareza sobre o prejuízo que o HIV causa no longo prazo. Precisamos pensar que a informação vai ser lida de formas diferentes, em contextos diferentes.
E temos ainda outros pontos a considerar, e a violência contra as mulheres é um deles. Os números de mulheres que apanham e até morrem nesses atos são assustadores; imagina se elas pedem uma camisinha. Não é só informação; a mulher pode saber de tudo e não ter como enfrentar uma negativa. Outro fator que não dá pra desconsiderar é o uso de álcool e drogas; nessas condições são mínimas as chances de se pedir um preservativo. Por que será que a sociedade está se entorpecendo? É preciso refletir.
Paralelamente, na nossa sociedade construímos a ideia de que o amor é a fusão, a entrega, o ideal de se entregar para o outro, o que faz com que a saúde do indivíduo fique na mão do outro. E nós não encontramos formas ainda de dizer que o amor não é só isso.
Então, quando falamos de informação em sexualidade, temos que considerar uma série de outras concepções e cenários sociais. A informação tem ser pensada, construída e acompanhada de sentido nessas diferentes perspectivas.
CR: Outro ponto que ainda preocupa os especialistas é a questão da discriminação das pessoas soropositivas. Como é possível trabalhar a conscientização e a prevenção sem a carga discriminatória para com os grupos tidos como vulneráveis: homossexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas?
CM: A discriminação voltou a ficar forte em todos os sentidos. Mas ainda acho que a adolescência é fantástica em relação a isso: vejo que os adolescentes se reconhecem, não se violentam. Tenho tido muitas perguntas de como se faz prevenção entre meninas, isso não acontecia antes.
E as formações, muitas vezes, carregam esse preconceito, aliás detesto falar em grupos vulneráveis. Existem atitudes que tornam as pessoas vulneráveis. Um caminho é não pensar ações educativas em uma heteronormatividade; precisamos concebê-las e atuar a partir da diversidade em sexualidade. Falar em grupos vulneráveis é voltar 30 anos no tempo, quando surgiu a ideia da Aids como epidemia. Esse caminho definitivamente não gera aproximação, que é o que precisamos ao trabalhar um tema dessa natureza.