Projeto valoriza saberes populares a partir das memórias dos rios do território
Publicado dia 18/01/2018
Publicado dia 18/01/2018
Por Nana Soares
O bucólico Alberto Caieiro, heterônimo do português Fernando Pessoa, escreveu em um de seus mais famosos poemas que nem mesmo o Tejo – mais importante rio de Portugal – era mais belo que aquele de sua aldeia, pois só no curso d’água local habitavam as histórias que acompanhavam sua vida.
Reportagem publicada originalmente no Portal Aprendiz, em dezembro de 2017.
Nas periferias da cidade de São Paulo, o argumento não é diferente. Mas se, por um lado, os diversos rios, córregos, riachos e afluentes que recortam os territórios evocam memórias, saberes e outras narrativas, de outro, protagonizam situações de dificuldade vividas pelos moradores como as frequentes enchentes.
Com esta percepção e buscando tornar as aulas da turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA) mais interessantes e contextualizadas ao cotidiano, a EMEF Carlos Augusto de Queiroz Rocha, localizada no Jardim Miriam, zona sul da capital, começou um processo de escuta de seus estudantes.
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“Percebemos que muitos não sabiam sequer o nome dos córregos que afetavam suas vidas, mesmo que morassem lá há 40 anos. Nessa região periférica, ficou claro que não só os moradores, mas também os rios estão invisibilizados socialmente”, conta a professora Tania Uehara Alves.
Da constatação, nasceu o projeto “Um rio que passou em minha vida” com a proposta de levar os conteúdos das diferentes disciplinas dentro da perspectiva das discussões e memórias em torno dos cursos d’água que banham o entorno da escola, com especial destaque para três deles: os córregos Zavuvus, Cordeiro e Apucas, todos pertencentes à bacia hidrográfica do Rio Pinheiros.
“Muitos não sabiam sequer o nome dos córregos que afetavam suas vidas. Ficou claro que não só os moradores, mas também os rios estão invisibilizados socialmente”, conta a professora Tania Alves
Assim, as águas foram utilizadas para entender porcentagens, estatísticas e proporções, ciclos hidrológicos e sua importância para a manutenção da vida. Os rios e a ocupação da cidade também adentraram a sala de aula por meio de manifestações culturais de diferentes naturezas, como textos de Mia Couto e Carolina de Jesus.
“Conseguimos fazer estudos do meio e percorrer toda a extensão dos córregos. Também fomos às casas dos alunos, conversamos com seus filhos e netos e envolvemos as famílias no projeto”, relata Tania, que coordena o projeto.
Outro ponto trabalhado foi que, de forma geral, os alunos – muitos deles migrantes – não viam os córregos da região com o mesmo carinho que lembravam dos rios de suas infâncias, sinônimos de diversão e sustento. Sabendo da importância de um olhar empático para a conscientização e aprendizagem, o projeto buscou então tecer, de maneira interdisciplinar, relações entre os rios de agora e aqueles que ficaram na memória de cada um.
O processo histórico e político de urbanização das periferias – negligenciado pelo poder público – também foi abordado pelo projeto “Um rio que passou em minha vida” com criticidade.
Como resultado, os alunos passaram a ter um novo olhar para as enchentes que periodicamente assolam a comunidade. “O discurso inicial era de que elas eram culpa dos moradores que jogavam lixo na rua e nos córregos. Nosso trabalho foi mostrar que isso também contribui, mas que, na verdade, há um processo maior de descaso pelo qual a cidade passou”, explica Tania Uehara.
Ao trabalhar esse aspecto, os alunos também se interessaram mais pelos canais de participação cidadã e têm demonstrado mais vontade em participar da vida pública.
Outra estratégia bem sucedida foi utilizar a arte como ferramenta para reavivar as memórias dos alunos e valorizar suas identidades. Na EMEF, frequentemente, apresentam-se grupos de choro e samba da região da Cidade Ademar, que usam a música para resgatar e expressar suas raízes.
“A população do bairro não se sente representada e nem valorizada, então trazer suas origens e identidades é uma ação de muita potência”, acredita Tânia. “Os alunos recuperam suas cantigas, reavivam memórias e trazem suas famílias para participar desse processo. É uma experiência profunda de conhecimento da própria história”, finaliza.
O projeto “Um rio que passou em minha vida” foi um dos 10 contemplados pela 2ª edição do Prêmio Territórios Educativos, iniciativa do Instituto Tomie Ohtake em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e patrocínio da Estácio. O prêmio busca reconhecer e fortalecer experiências pedagógicas que exploram as oportunidades educativas do território onde a escola está inserida, integrando os saberes escolares e comunitários. Este ano, o programa recebeu 67 inscrições oriundas de todas as Diretorias Regionais de Ensino de São Paulo e de diversos tipos de unidades escolares.