publicado dia 29/08/2014

Desvendando o PNE: aumento do tempo na escola não basta, é preciso repensar o modelo

Reportagem:

Meta 6: oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educação básica.

A meta 6 do Plano Nacional de Educação (PNE), em vigor desde junho, apresenta algo que parece selo-desvendando-pnenão trazer contradições: o aumento da jornada escolar. A ideia é que até 2024, pelo menos metade das escolas de ensino básico ofereçam ensino em tempo integral, atendendo à, no mínimo, 25% dos estudantes. O panorama atual não está muito distante disto. Em 2013, 34% das escolas possuíam jornada estendida, atendendo 13% dos alunos, segundo dados do Observatório do PNE.

No entanto, o debate sobre a ampliação da jornada escolar não pode vir separado de um tema fundamental: o uso e qualificação deste tempo. Especialistas ouvidos pelo Centro de Referências em Educação Integral concordam em afirmar que a escola não pode preencher a jornada com “mais do mesmo”.

“O fator tempo é crucial para que os alunos possam se desenvolver, mas aumentar as horas não é tudo”, aponta Dianne Cristine Melo, analista de educação da Fundação Itaú Social.  Para o pesquisador do Observatório da Educação Integral em Minas Gerais, Levindo Diniz Carvalho, a ampliação da jornada é uma oportunidade para a escola olhar de maneira mais integral para as crianças. “A ampliação da jornada pode ser um momento de repensar o papel da escola e seu significado. Temos uma possibilidade de arejar e criar novas formas de utilização do tempo”, explica Carvalho, que também é professor da Universidade Federal de São João Del Rei.

Já a diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz, Natacha Costa, aponta a necessidade de reformulação da escola e de se passar da perspectiva da educação em tempo integral para a da educação integral. “Para além de olhar o desenvolvimento cognitivo, que é a dimensão sobre a qual o modelo escolar se consolidou, é importante olhar para outras dimensões como a física, a emocional e a social”, defende Natacha. “Para que isto ocorra, é necessário repensar o modelo escolar, que se baseia na transmissão de conteúdos, para chegarmos a um modelo que incorpore novas oportunidades educativas. Isto implica em repensar que a escola e o professor não são os únicos espaço e agente educativos.”

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A própria meta 6 já indica, em suas estratégias, que o modelo escolar deve ser repensado. Na jornada ampliada, de no mínimo sete horas diárias, devem ser ofertadas “atividades de acompanhamento pedagógico e multidisciplinares, inclusive culturais e esportivas”.  Para isto, segundo o texto do plano, é necessário realizar a “articulação da escola com os diferentes espaços educativos, culturais e esportivos, e equipamentos públicos”.

Integração curricular

Segundo os especialistas, a diversificação de saberes, atividades e espaços educativos deve ser realizada sem que seja dissociada do conteúdo e saberes tradicionais no currículo. A divisão, comumente presente nas escolas, tem como consequência a existência de dois turnos contraditórios, muitas vezes identificados pelos alunos como o turno “chato” e o “legal”.

“Estas outras possibilidades educativas não podem ser vistas como atividades extracurriculares e devem estar articulados com os saberes tradicionais”, explica Dianne. “É fundamental que haja uma articulação dentro do próprio currículo para que, de fato, se ampliem as oportunidades de aprendizagem.”

A opinião é partilhada por Carvalho, que aponta a integração dos saberes como um dos principais desafios da educação integral. “É necessário pensar em um currículo único, visualizando a integração das disciplinas ditas tradicionais com as outras. Por exemplo, podemos trazer os saberes da história para dentro da oficina de capoeira.”

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Assim, a diversificação dos conhecimentos e atividades deve ser realizada com uma intencionalidade pedagógica, que almeje ao desenvolvimento integral do indivíduo. “As diferentes dimensões do estudante devem estar refletidas no currículo escolar”, aponta Natacha. Para Dianne, “o plano pedagógico das escolas deve trazer esta intencionalidade, pensando as diferentes aprendizagens que serão desenvolvidas e incluindo as características do território”.

A ligação da escola com a comunidade em que está inserida é ponto importante na educação integral. “O currículo precisa incorporar questões ligadas ao contexto em que a escola está inserida, ela não pode estar apartada do seu entorno e da comunidade com as quais ela lida”, explica Natacha. As questões culturais do local também devem ser trazidas para dentro da escola e do currículo.

Cidade educadora

O contato e a articulação da escola com a comunidade em seu entorno pode auxiliar a instituição no desafio da diversificação curricular, com a possibilidade de realizar atividades em distintos espaços, aproveitando os potenciais educativos das cidades. É possível aproveitar desde estruturas do próprio município como parque, praça, biblioteca e centros culturais, até do setor privado. “Belo Horizonte fez uma parceria para que os clubes pudessem ser usados pelas escolas ao longo da semana”, exemplifica Natacha. Os potenciais educativos das cidades podem estar também no terceiro setor, nas entidades que tem caráter pedagógico, e nas políticas culturais do próprio município, como formação em teatro ou música.

Dianne relata que é comum os gestores esbarrarem na questão do espaço físico quando pensam na ampliação da jornada, então “estas parcerias intersetoriais são essenciais para articular outros espaços que podem ser usados, apoiando a escola no desafio de ampliar o tempo”. “No levantamento Percursos da Educação Integral percebemos que não há apenas um jeito de se fazer, municípios e estados vão encontrando diferentes modalidades e formas.”

Educadores mais próximos

Toda esta reconfiguração da escola pressupõe também repensar o papel do professor no processo de aprendizagem. A meta 6 aponta que a extensão do horário escolar deve vir acompanhada da “ampliação progressiva da jornada de professores em uma única escola”. A dedicação exclusiva de professores é vista como um dos pontos centrais da educação integral.

No entanto, esta ainda é uma realidade distante do Brasil. Pesquisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, publicada em julho deste ano, revelou que 60% dos professores trabalham em mais de uma escola, enquanto a média dos outros países não chega aos 20%.

“O professor que se desdobra em três, quatro ou cinco escolas não tem condições concretas de conhecer o estudante e o contexto em que ele está inserido”, explica Natacha. Para a diretora da Cidade Escola Aprendiz, é importante que o professor “tenha tempo de planejamento e tempo de circular no ambiente escolar para poder conhecer seus alunos, assim ele poderá construir uma proposta pedagógica alinhada com a da escola, que por sua vez, deve estar alicerçada no contexto do programa e do território”.

Já Levindo Carvalho destaca que a dedicação exclusiva é um direito do professor, que atualmente tem seu trabalho precarizado . O docente destaca que os professores são uma das categorias que mais levam trabalho para casa, assim o tempo na escola não deve ser usado apenas em sala de aula, mas também em reuniões com os colegas pensando em projetos interdisciplinares, na preparação dos materiais e na sistematização de sua prática. “Estando em apenas uma instituição, o professor passa a de fato compor uma equipe de trabalho e tem a oportunidade de acompanhar o percurso formativo do aluno.”

Para os entrevistados, a presença constante do professor no ambiente escolar apoia a escola na sua função dentro da rede de proteção dos direitos das crianças e adolescentes. Convivendo mais com seus alunos, o professor passa a conhecer mais de seu contexto social e familiar, podendo, por exemplo, identificar casos de violência doméstica ou deficiências no acesso ao sistema de saúde.

Impactos e possibilidades

Como as experiências de jornada ampliada e de educação integral são relativamente recentes, é difícil medir seus impactos. No entanto, Carvalho aponta algumas questões que podem ser vistas nas experiências acompanhadas pelo Observatório da Educação Integral. O pesquisador relata que a ampliação da jornada tem significado novas oportunidades de formação e aprendizado; o acesso a bens culturais e equipamentos públicos das cidades, que antes eram desconhecidos dos alunos; e o acesso a bens culturais dentro do ambiente escolar, como livros e internet. “Ainda são dados insipientes no sentido de medir o real impacto. É interessante que agora estamos vivenciando um novo tempo nesta oferta de educação em tempo integral.”

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Para Carvalho, o acesso à educação integral é um passo fundamental na efetivação do direito à educação, previsto na Constituição brasileira e visto como um direito humano fundamental. “O direito à educação não é o direito apenas à escolarização, mas significa o direito à formação integral das múltiplas dimensões que compõe o sujeito.”

Já Natacha destaca que o desenvolvimento das diferentes facetas do indivíduo é uma demanda da contemporaneidade. “O sujeito hoje tem que ter autonomia na construção do conhecimento e tem que saber trabalhar em grupo, se comunicar, construir seu projeto de vida e estabelecer suas prioridades”, problematiza. “Não podemos achar que uma perspectiva instrucional pode dar conta disto.”

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