publicado dia 09/05/2014
Especialistas questionam projeto de lei que visa reformulação do ensino médio
Reportagem: Julia Dietrich
publicado dia 09/05/2014
Reportagem: Julia Dietrich
“Um dos pontos negativos da escola é que os professores têm uma visão que o aluno só está em sala para aprender algo para trabalhar, não para ter mais conhecimento. Outro ponto é não ouvir o jovem, só passar a lição e não querer saber nosso ponto de vista sobre o assunto. O espaço escolar é cheio de grades, há três portões para poder entrar. Eu me sinto uma prisioneira, me sinto na prisão”.
O depoimento acima é de Thayná Bernardo da Silva, de 16 anos, aluna do 3º ano de ensino médio de uma escola pública da Zona Sul da capital paulista. O entendimento da estudante de que a escola não serve apenas como porta de entrada para o trabalho também ganha eco entre especialistas que discutem a questão e criticam o projeto de lei da Câmara dos Deputados que leva em consideração a formação profissional em detrimento à formação humana.
Criada em 2012, a Comissão Especial de Reformulação do Ensino Médio criou o Projeto de Lei 6840/2013, que muda a forma como a modalidade aparece na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e defende sua jornada em tempo integral, uma nova organização dos currículos, divididos por áreas do conhecimento ( linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas) e a opção do aluno escolher apenas uma delas no 3º ano e voltar à escola caso mude de ideia. Além disso, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) passaria a compor até mesmo o histórico do aluno e o ensino profissional já faria parte da formação regular.
Para professores que pensam a educação, no entanto, a ideia não passa de uma desculpa para preencher o vácuo de mão de obra existente no país, deixando de lado a formação humana do estudante, que vai muito além da exigida no mercado de trabalho.
“É preciso pedir mais discussão. Quando pensamos na LDB, que foi aprovada após dez anos de discussão, temos risco do capítulo do ensino médio ser todo modificado”, criticou a professora Sandra Regina Garcia, especialista em políticas públicas da Universidade Estadual de Lavras (UEL-PR), durante seminário promovido pelo Observatório Jovem, da Universidade Federal Fluminense.
Sandra aponta ainda um problema na diversificação curricular do estudante ao chegar ao terceiro ano, quando poderá optar por uma área do conhecimento. “Se ele fizer só um, ele vai continuar seus estudos só nessas área; se ele tiver a possibilidade de ir para o nível superior, só vai poder estudar naquela área que escolheu [na escola]. E se achar que errou na escolha, vai ter que fazer novo terceiro ano, para pensar outra opção”, indica.
Paulo Carrano, professor da UFF e coordenador do Observatório Jovem concorda. “A quem interessa fazer tanta correria e pegar tantos atalhos? O que vemos são atores muito interessados em reduzir a formação humana. A pior coisa é jogar na lata de lixo a formação humana integral conquistada nas diretrizes curriculares, que dão base para um diálogo nacional”.
Para o professor Juarez Dayrell, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o processo educacional é essencialmente feito de relações, e pensar no jovem é pensar numa categoria relacional. “Existe jovem porque existe adulto, e escola é feita por uma relação intergeracional. É a escola que funda a perspectiva do jovem como sujeito e o coração da escola é a relação professor-aluno. Se essa relação vai mal, o processo de escolarização também vai mal”.
Intitulada “A maior zoeira”: experiências juvenis na periferia de São Paulo, a tese de doutorado do professor de Antropologia da Universidade de São Paulo Alexandre Pereira traz um retrato de como as escolas ainda não estão preparadas para lidar com as variadas formas de ser dos jovens. “Pelo que observei nas escolas, o maior desafio da educação no ensino médio está, em primeiro lugar, no modo como essa escola lida ou trabalha com os adolescentes e seus modos de vida. Percebi que havia por um lado a lógica engessada da forma e do tempo escolar e, por outro, as práticas do que os alunos chamavam de zoeira: gozações, brincadeiras e modos de, justamente, driblar essa forma e tempo engessado da escola”.
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Pereira acredita que a escola, de uma maneira geral , apresenta duas grandes questões, uma de autoridade e outra de alteridade. “No âmbito da autoridade, temos o problema do modo como a escola e o professor legitimam-se perante os estudantes e conseguem, a partir de uma estrutura arcaica, prender a atenção e o respeito de jovens que hoje acessam um turbilhão de informações e de estímulos pela televisão, internet e smartphones”, aponta.
Para o professor, a alteridade envolve pensar a diferença, levar em consideração os modos de ser e pensar do outro, de forma a colocar em questão os modos do indivíduo pensar, conceber o mundo e suas ações em sociedade. “A escola atual não apenas não se preocupa com as diferenças, como é ainda uma máquina de massacrar os diferentes”, complementa.
Segundo os especialistas, é preciso fazer do espaço da escola um espaço que os jovens possam ressignificar, ao passo que se constroem como indivíduos e aprendem e se descobrem no convívio coletivo. Para Dayrell, o ensino médio precisa oferecer elementos para a reflexão dessa juventude, levando em consideração o contexto de possibilidades que se apresentam cotidianamente a esse estudante, fazendo com que a escola e seus conteúdos façam mais sentido. “Os jovens que chegam à escola, gostam da escola. Eles não gostam é da sala de aula. Reconhecem a importância para o futuro, mas no presente acham a escola chata. Essa ‘chatice’ é a dificuldade de construir sentido, dificuldade de articular os conteúdos com a vida e interesses, e por isso, devemos repensar os currículos e as relações que se estabelecem nas unidades de ensino”.
Desse modo, a relação entre aluno e professor e, consequentemente, a formação inicial e continuada desse professor se configuram como elementos essenciais para o sucesso do aluno em sala de aula. Além do professor, no entanto, a participação dos outros membros da comunidade escolar, como pais e o entorno escolar, também é necessária, a medida em que agrega sentido ao espaço, promovendo a interlocução dos estudantes com a enorme oferta de aprendizagens que existe fora da sala de aula.