publicado dia 19/11/2025
EMEI Antonio Bento: reação da polícia expõe violência e racismo religioso
Reportagem: Ingrid Matuoka | Edição: Tory Helena
publicado dia 19/11/2025
Reportagem: Ingrid Matuoka | Edição: Tory Helena
🗒 Resumo: O caso da EMEI Antonio Bento, em São Paulo (SP), expôs questões como racismo religioso e violência policial – além de reforçar a importância da Educação Antirracista. O episódio envolveu uma ação policial na unidade de Educação Infantil, após uma atividade pedagógica envolvendo religião de matriz africana. Catarina de Almeida Santos (UnB/Campanha Nacional pelo Direito à Educação) e Milene Cristina Santos (OAB-SP/MPSP) analisam a atuação da polícia no caso e explicam a diferença entre doutrinação religiosa e Educação Antirracista.
Há 22 anos, o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira é obrigatório em todas as escolas do país. Apesar de seguir o que determina a Lei 10.639/2003, a EMEI Antonio Bento, em São Paulo (SP), se viu no centro de um episódio complexo, que envolveu racismo religioso e ação policial.
O cotidiano da escola foi interrompido pela polícia em 12 de novembro, após realizar trabalho pedagógico antirracista e de promoção da diversidade cultural com as crianças. O episódio causou revolta entre educadores e comunidade escolar.
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A atividade integrava as propostas para o Mês da Consciência Negra, parte do planejamento anual da escola que se dedica à Educação Antirracista, como estabelecido em seu Projeto Político-Pedagógico (PPP). No caso, as crianças ilustravam histórias do livro infantil “Ciranda em Aruanda”, que apresenta a mitologia dos orixás, é recomendado por especialistas para trabalhar o tema e foi enviado pela Secretaria Municipal de Educação para todas as escolas.
“As famílias têm recebido o episódio com bastante indignação e revolta”, conta pai que presenciou a ação policial.
Crianças entre 4 e 6 anos estavam na unidade e presenciaram a atuação de policiais militares armados. “Nossos filhos estavam brincando no pátio, viram os policiais, a tensão no ambiente, e começaram a ficar tensas também. O pai que fez a denúncia não entrou na escola e retirou a filha antes dos policiais chegarem, mas as nossas crianças ficaram expostas à violência”, afirma o pai de uma criança que preferiu não se identificar e que participa do Conselho da Escola e da Comissão de Mediação de Conflitos
A comunidade agora organiza um abaixo-assinado e um ato político e cultural contra o racismo e a violência policial na terça-feira, 25 de novembro, às 15 horas, em frente à EMEI Antonio Bento.
“As famílias têm recebido o episódio com bastante indignação e revolta, e têm apoiado a escola. A maioria acha pertinente e necessário o convívio com outros saberes, para termos mais consciência de onde viemos. E nem são famílias de religiões de matriz africana, porque não precisa ser para apoiar, é só entender que se trata de conhecer outros jeitos de ver o mundo”, diz o pai ouvido pelo Centro de Referências em Educação Integral.
A Secretaria Municipal de Educação disse que “a atividade faz parte de propostas pedagógicas da escola, que tornam obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena dentro do Currículo da Cidade de São Paulo”, mas não informou sobre mais ações para apoiar a escola.
Quando há a necessidade de refletir sobre a conduta de uma escola, a legislação já prevê uma série de instâncias democráticas e participativas, como o Conselho da Escola, Conselho Municipal de Educação, Diretoria Regional de Ensino, Secretaria Municipal de Educação e até o Conselho Tutelar.
“Vivemos em uma sociedade militarizada e policialesca, que quer resolver tudo na força coercitiva”, pondera Catarina de Almeida Santos.
“Mas esse pai optou pela polícia. Vivemos em uma sociedade militarizada e policialesca, que quer resolver tudo na força coercitiva, tanto é que se defende militarizar as escolas como se isso fosse melhorá-las”, observa Catarina de Almeida Santos, professora na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.
Para a especialista, a ação desse pai evidencia que racismo religioso não é outra coisa senão racismo. “A questão dele não é tratar de religião na escola, mas a cultura negra. E não é um ódio à religião, mas ao povo que a manifesta. É a vinculação de que a cultura, as crenças e os corpos negros são perigosos e ameaçadores”, explica Catarina, que também é Coordenadora do Comitê DF da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.
Mais preocupante do que a decisão de um indivíduo, explica Catarina, é a resposta da instituição policial, que ao invés de identificar o crime de racismo em questão, o reforçou.
“Racismo religioso é crime e a polícia deveria ter sido acionada para o pai. Mas a história da criação da polícia está vinculada a coibir as pessoas negras. Por isso eles chegam na escola de forma violenta, armados, colocando crianças em risco, ao invés de olhar para o verdadeiro crime que estava acontecendo”, diz Catarina.
O Brasil possui largo histórico de perseguição às religiões de matriz africana. Até meados do século 20, terreiros de candomblé precisavam de autorização policial para funcionar, ainda com várias restrições. Durante a ditadura, agentes do Estado invadiram terreiros e destruíram peças sagradas. E apesar da Constituição de 1988 e várias leis seguintes garantirem liberdade religiosa e preservação dessa história e cultura, os ataques persistem.
Em 2024, o país registrou 80% mais casos de racismo religioso do que no ano anterior, de acordo com dados do canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Disque 100. Não fica claro se cresceram os casos ou os registros das ocorrências, ainda assim, no mínimo 3,8 mil pessoas foram violentadas em um único ano.
“Não podemos permitir a reatualização dessa perseguição estatal. Não consigo pensar em qual tipo penal eles imaginaram que estaria sendo praticado para fazer uma intervenção, nem o pai para fazer uma denúncia. É uma conduta atípica”, diz Milene Cristina Santos, advogada e membro consultora da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados Brasileiros de São Paulo (OAB-SP) e analista jurídica no Ministério Público do Estado de São Paulo.
“O que é crime é o racismo religioso e, para isso, temos a Lei Caó, que precisa ser aplicada”, complementa a advogada.
As escolas públicas brasileiras são laicas. Isso significa que elas não possuem vínculos com alguma religião. O trabalho pedagógico se baseia na razão, e não na fé, e no respeito à liberdade de crença de todas as pessoas, sem impor doutrinas.
“Quando as crianças assistem filmes da Marvel sobre Thor e Loki, conhecem a mitologia nórdica e ninguém diz que estão sendo forçadas a acreditar nesses deuses”, destaca Milene Cristina Santos.
Para as famílias que desejam, há o modelo privado de ensino religioso confessional, que segue uma única religião e cujos dogmas fazem parte do currículo. Compartilhar conhecimentos da mitologia e cultura de um povo não configura doutrinação.
“Quando as crianças assistem filmes da Marvel sobre Thor e Loki, conhecem a mitologia nórdica e ninguém diz que estão sendo forçadas a acreditar nesses deuses. Quando se estuda filosofia europeia, não dizem que estão convertendo as crianças à religião que os gregos professavam. As religiões afro não são proselitistas, ou seja, não tentam converter ninguém. É o pensamento eurocêntrico cristão que diz que há um único caminho certo e que o contrário é demoníaco e condenado a arder pela eternidade no inferno”, afirma Milene.
O papel da escola, respaldado pelas legislações, é ensinar sobre a diversidade cultural e de conhecimentos que fazem parte do nosso país, inclusive para fazer frente ao epistemicídio que a cultura negra sofre, seu sistemático apagamento.
A Educação Integral Antirracista é uma concepção educacional que considera as identidades, as diferenças e as diversidades, as práticas culturais e a interação de grupos e pessoas, os múltiplos saberes e a relação com o meio e o território como partes fundamentais que orientam as ações para promover a aprendizagem e o desenvolvimento integral das pessoas. Saiba mais nas Diretrizes da Educação Integral Antirracista.
Nas mitologias dos povos africanos, os orixás e outras entidades são profundamente vinculadas à natureza. “Iansã é o vento e a tempestade, Oxum é a água das cachoeiras e Xangô, as pedreiras. Não são demônios. E se conhecêssemos mais, talvez déssemos outra importância para a natureza”, indica Milene.
A escola, sozinha, não vai dar conta de combater o racismo. Ainda assim, tem papel fundamental em ajudar a derrubar suas estruturas, o que também depende de condições adequadas de trabalho para as equipes, como remuneração, formação e apoio institucional.
“Se o Brasil tivesse desde sempre trabalhado nas escolas e na sociedade como um todo a cultura que nos constitui, talvez não tivesse um pai demonizando as crenças de nenhum povo, ainda que o racismo não dependa só de educação. Junto com isso, é preciso rever a lógica da instituição policial que autoriza esse tipo de ação. Enquanto não olharmos para as causas, vamos continuar discutindo as consequências”, afirma Catarina.
Além da mobilização agendada para dia 25, o abaixo-assinado pede medidas das autoridades, como a apuração e responsabilização do pai, investigação da conduta dos policiais por possível abuso de autoridade e formação sobre diversidade e combate ao racismo ao pai e aos policiais.
“O Currículo da Cidade da Educação Infantil reflete a pluralidade da sociedade brasileira”, diz a Diretoria Regional de Educação Butantã
A deputada federal Luciene Cavalcanti protocolou uma ação no Ministério Público de São Paulo (MPSP) contra os policiais por “grave intimidação” e “preconceito religioso” e pediu a apuração do episódio e responsabilização pelo ato. O deputado estadual Carlos Giannazi e o vereador Celso Giannazi também assinam o documento.
A Diretoria Regional de Educação (DRE) Butantã também emitiu um comunicado de repúdio aos atos de “intolerância e abordagem abusiva sofrida pela comunidade educativa da EMEI Antonio Bento, que tem uma trajetória histórica na oferta de uma Educação Infantil Pública de qualidade e de excelência”.
A DRE também reforça que o trabalho realizado não possui caráter doutrinário, mas pedagógico e cultural, com o objetivo de formação cidadã e de respeito às diversidades.
“O Currículo da Cidade da Educação Infantil reflete a pluralidade da sociedade brasileira, valorizando a contribuição de todas as etnias e culturas, como determina a legislação vigente”, diz a nota.
Outros movimentos da Educação e dos Direitos Humanos também se posicionaram. O Movimento Renova Sinesp destaca que é “inacreditável que tantos anos depois de aprovadas as leis 10.639/03 e 11.645/08 que tornaram obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, em todo o território nacional, essa atividade pedagógica obrigatória ainda seja ameaçada por policiais munidos de metralhadoras”.
*Foto: EMEI Antonio Barros/Acervo pessoal