publicado dia 01/02/2024
Contra a monocultura da Educação, a diversidade e a potência das escolas públicas
Reportagem: Tereza Perez
publicado dia 01/02/2024
Reportagem: Tereza Perez
🗒️Resumo: Em diálogo com o livro Arrabalde: Em Busca da Amazônia, de autoria de João Moreira Salles, a educadora Tereza Perez tece analogias entre os desafios e potencialidades da floresta amazônica e aqueles enfrentados pelas escolas públicas brasileiras. Para a diretora da Roda Educativa (antiga Comunidade Educativa CEDAC), é central reconhecer e valorizar as diversidades, bem como desmontar o olhar de homogeneidade (monocultura) na Educação.
O livro Arrabalde: Em busca da Amazônia (Cia das Letras, 2022), de João Moreira Salles, provoca, através do olhar e dos ensinamentos da floresta, a ampliação da escuta, da visão, da audição e do paladar para compreender não só a floresta, mas a sociobiodiversidade em geral.
Como educadora com muitos anos de experiência de trabalho na Amazônia Legal, não pude deixar de associar a grandeza e a complexidade da floresta à da escola.
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Ao longo da leitura, estabeleci paralelos entre a urgência de aprender a enxergar a floresta como ela é e enxergar a escola como ela é. Isso implica compreender as complexas interações que ocorrem nesses ambientes, saber sobre o que provoca erosões, para conseguir evitar que isso aconteça, e, acima de tudo, reconhecer o papel central da diversidade para que floresta e escola se mantenham vivas.
Tereza Perez é diretora-presidente da Roda Educativa (antiga Comunidade Educativa CEDAC), lidera diversas iniciativas voltadas para a melhoria das condições de ensino e de aprendizagem nas redes públicas brasileiras.
Compartilho a seguir algumas das analogias estabelecidas na minha interação com o livro.
Noções de pré-moldadas de ordem e beleza
“Ao folhear o livro de viajantes e exploradores da Amazônia, logo se percebe que eles podem ser distribuídos por duas estantes diferentes: uma, dedicada à floresta como inferno; a outra, à floresta como paraíso. Na primeira, como monotonia, solidão, medo, doença, fome, horror; na segunda, variedade, beleza, prodigalidade, deslumbramento. De modo geral, o que distingue uma estante da outra é a capacidade de enxergar a floresta nos seus próprios termos, suspendendo noções de ordem, beleza moldadas ao longo de séculos pela imaginação ocidental. Não sendo essa tarefa fácil, a primeira estante é naturalmente mais fornida que a segunda, a pilha de seus livros muito mais alta.” (p. 11-12)
Analogamente, podemos analisar a escola e quem lá habita.
Influenciados por noções pré-moldadas de ordem e beleza, há quem assuma que a escola pública não tem qualidade e seus estudantes não se interessam por aprender: são bagunceiros, violentos e indisciplinados. Já os professores são incompetentes e os gestores desconhecem a gestão e, portanto, é preciso implantar políticas de controle, realização de exaustivas avaliações para garantir que o funcionamento da escola e as aprendizagens sejam padronizadas, não importando quem são as pessoas envolvidas no processo, nem como essas ações as afetam.
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Por outro lado, há os que identificam a beleza da diversidade dos alunos e alunas, dos professores e professoras, a prodigalidade, o deslumbramento com o pensamento, suas referências culturais e modos de ser, enaltecem as produções das crianças, adolescentes e jovens.
Sabem ouvi-los, identificam inúmeras possibilidades de trabalho e de construção coletiva em um clima escolar que favorece o compartilhamento de saberes e potencializa a aprendizagem de conhecimentos diversos. Tal como ocorre com a floresta, este último grupo é mais escasso.
“Parece claro que uma das principais tarefas do país seria fazer com que os brasileiros conhecessem melhor seu patrimônio mais precioso, criando meios para que a floresta fertilizasse nossa imaginação. Um bom começo seria incluir nos currículos escolares as novas descobertas da arqueologia, que demonstram como a Amazônia é não apenas um bem natural, mas também a construção humana, um artefato de cultura, ou, no modo de ver dos povos originários, um sistema surgido da colaboração entre humanos e não humanos. Durante milênios, parcelas dessa floresta vêm sendo manipuladas por mãos indígenas, num trabalho de seleção de plantas e construção de solos férteis que revela um conhecimento profundo das interações entre plantas, bichos, fungos, microrganismos, chuva e vento. A floresta hoje, parte natureza, parte humana, é fruto dessa notável inteligência ecológica.” (p. 18)
Ao adquirirmos consciência de que a floresta é resultado do trabalho de não-humanos e humanos, reconhecemos um enorme patrimônio construído há milênios.
Quando penso nas pessoas que compõem uma escola, penso em suas histórias e suas marcas ancestrais. Penso em saberes constituídos por gerações, que o modelo educacional não valoriza, não resgata e busca destituir, sob a lógica de que a boa Educação hoje é identificada por avaliações pautadas em critérios externos.
Se voltássemos nossos olhos e ouvidos para a ancestralidade e para a ecologia das nossas escolas, em vez de pautar a qualidade da educação com base em referências uniformizadas e importadas, caminharíamos com mais firmeza em direção à construção da percepção da escola como patrimônio.
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Faltam-nos ferramentas para compreender e potencializar a notável inteligência ecológica que move o ambiente educativo, ou seja, a interação entre estudantes, professores, gestores, familiares, secretários.
Erosões – uma natureza trocada por outra
“O florescimento do agronegócio nasce de uma decisão do Estado sobre segurança alimentar. (…) A primeira tarefa foi, então, “aprender a construir a fertilidade do solo”. Em seguida, era adaptar ao clima do Brasil às espécies de maior circulação no comércio mundial de alimentos: milho, soja e arroz, plantas de outras partes do globo. Por razões várias – econômicas (cadeias produtivas e de insumos já estabelecidas), geopolíticas (influência das grandes multinacionais de sementes) e culturais (a condição de país periférico que traz de fora seus modos de vida) -, não houve esforço semelhante para desenvolver espécies nativas. Uma natureza foi trocada pela outra.
Por fim, a pesquisa brasileira teve de buscar técnicas de cultivo que protegessem o solo contra violência das chuvas tropicais. “A gente começou com um modelo de arar todo ano, o que funciona bem em clima de temperado, com chuva mais amena e mais bem distribuída’, explica Lopes. Aqui o modelo resultava em erosão. O problema foi enfrentado desenvolvendo novos métodos de manejar o solo.” (p. 89-90)
No Brasil, tivemos grandes pensadores que dispensaram especial atenção à educação pública, como Anísio Teixeira (1900-1971), Darcy Ribeiro (1922-1997) e Paulo Freire (1921-1997).
O ideário desses pensadores pautava-se pela escola pública de qualidade, considerando a autonomia da escola, a necessidade do trabalho com diferentes culturas, a valorização do conhecimento, da arte, dos esportes, da alegria, do bem viver e do convívio estreito entre escola e comunidade.
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Muitos dos atuais comandantes da Educação no Brasil citam o Manifesto dos Pioneiros da Educação em seus discursos. Na prática, porém, a indução de ações que formalizem atitudes de cooperação na busca de resolver problemas, corresponsabilidade com a aprendizagem, engajamento e autonomia estão muito distantes de acontecer. A imposição de modelos e o desrespeito com os saberes de quem está na escola tem sido uma constante.
É preciso reconhecer que já foram feitos vários esforços para melhoria da Educação pública, especialmente no início da escolaridade básica. Mas nunca houve no campo da Educação, um esforço radical.
Se houvesse mais investimento para as universidades realizarem pesquisas e se organismos internacionais se interessassem pela escuta das vozes escolares e pela valorização dos diversos saberes, talvez estivéssemos em outro patamar na discussão sobre Educação Integral: uma escola inclusiva, antirracista e que valoriza a diversidade.
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No entanto, o esforço é direcionado a outras prioridades: em vez de compreender melhor o potencial e os desafios da nossa escola, busca-se a padronização dos currículos e os resultados em provas externas.
Os projetos educacionais de qualidade são constantemente erodidos por soluções alheias à escola, cujas causas e consequências são pouco discutidas e analisadas, na busca afoita pelo novo. Um ciclo vicioso das erosões.
Ocupar sem se preocupar em ver
“Quando cheguei, aqui não tinha nada.”
A frase acima, ou alguma variação dela, ocorre com frequência nas conversas com pioneiros que colonizaram a Amazônia a partir da década de 1970. As sociedades indígenas espalhadas por todo bioma, as populações ribeirinhas, as comunidades quilombolas, a infinidade de criaturas da selva, os processos de retroalimentação entre floresta, água e clima – a complexidade de tudo isso se reduz a pouca coisa aos olhos de quem chegou para ocupar e não se preocupou em ver. Sendo razoável supor que é mais fácil destruir o que não se enxerga, a cegueira pode ser uma opção desejável, ver tem uma dimensão ética. Não ver, também. É uma escolha. (p. 102)
Assim como a floresta, a educação é complexa. Simplificá-la, pasteurizá-la, homogeneizá-la, “ocupá-la sem se preocupar em vê-la” está a serviço de projetos gananciosos, onipotentes e desrespeitosos.
Venda de materiais, implementação de projetos que prometem resolver todos os problemas, aquisição de computadores e de tablets com softwares milagrosos são exemplos de ações que buscam soluções imediatistas.
Educadores, crianças, adolescentes e jovens ficam com muito pouco diante de toda parafernália adquirida pelo poder público. Se o mesmo dinheiro fosse investido para gerar condições para que a escola fosse vista, ouvida e compreendida em toda a sua complexidade, provavelmente nossa educação já teria avançado enormemente para cada um e para a coletividade.
A escola precisa se pautar pela melhoria das relações entre as pessoas. Há mais de 25 anos a Comunidade Educativa realizou uma pesquisa sobre o que os participantes da escola mais desejam e o resultado foi unânime: respeito.
Ter os Direitos Humanos como eixo central no projeto político-pedagógico (PPP) da escola é essencial. As pessoas não nasceram no mesmo lugar, não têm a mesma história, não precisam dos mesmos alimentos, não gostam das mesmas coisas, não têm os mesmos interesses e curiosidades. A diversidade na escola demanda aprender a conviver bem com a diversidade.
Se conseguimos gerar situações de participação, construção coletiva, diálogo, respeito ao outro, teremos um microcosmo mais saudável. O exercício de alteridade e a compreensão das diferentes realidades, necessidades e possibilidades só será possível se aqueles que pensam a educação tomarem a decisão ética de ver a escola diversa e complexa, tal como ela é.
Um complexo sistema de interdependência
O peso dos tratores usados no desmatamento compactou o solo, tornando-o impermeável ao esforço das raízes que precisavam se espraiar e vencer a terra para alcançar a luz. E não só. No trabalho de mastigar o chão, as imensas pás do maquinário rasparam a fina camada de húmus. Empobrecendo ainda mais um solo já por si muito pobre.
A floresta não é o conjunto de animais, plantas, fungos microrganismos que vivem nela, mas uma trama, o produto das relações entre tudo que lá está. Onde Ludwig enxergava apenas desordem, havia um complexo sistema de interdependência em que cada parte necessitava da outra – animais de plantas, plantas de animais, fungos de plantas, plantas de fungos, animais de animais, plantas de plantas, fungos de fungos. (p. 109)
A escola não é um amontoado de pretos, brancos, pardos, amarelos e indígenas de classe A, B, C D ou E; nascidos na região Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste, em municípios urbanos no centro ou na periferia, intermediários, rurais ou de fronteira.
A escola é composta de pessoas interdependentes e complementares, de modo semelhante ao que acontece na floresta. Não são relações livres de conflito, mas o que acontece com um impacta o outro; há uma necessidade de usufruto de um território comum, de um equilíbrio delicado e complexo para assegurar a convivência.
Para que a Educação funcione bem, ou seja, para que produza aprendizagem e desenvolvimento integral dos estudantes, precisa haver essa busca de equilíbrio entre as pessoas da escola e da comunidade.
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O território complexo e conflituoso da educação demanda a colaboração desde a sala de aula, da escola, da secretaria de educação de cada município até as instâncias macro-institucionais, por meio do regime de colaboração entre municípios, Estado e União.
É preciso que se observe a horizontalidade dessas relações e não a superioridade de uns em relação a outros. É preciso ser anti-hegemônico, antipredatório, o que no contexto humano brasileiro significa não buscar impor uma cultura única, invariavelmente a de matrizes europeias colonizadoras que se sobrepõem à das populações originárias, indígenas e afrobrasileiras, desqualificadas como desprovidas de suas histórias, dos seus direitos, de saberes, de tecnologias. É preciso, portanto, ser antirracista.
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Os pretos e indígenas, para serem respeitados como cidadãos de Direito, precisam de um esforço descomunal porque os tratores do branqueamento fizeram de tudo para matar suas raízes, mas não mataram.
O movimento negro, quilombolas, os indígenas, com sua luta histórica, rompem o esmagamento e evidenciam que vivemos na interdependência. O sucesso na Educação só virá quando nós conseguirmos enxergar a potência e a beleza dessa trama, que não é desordem, é a vida como ela é aqui no Brasil.
Os perigos da monocultura
“Tudo caminhava bem até que, mais uma vez, a floresta mandou suas tropas. Desta feita, elas não vieram do céu, mas do solo. Provocada por fungos, a fusariose é uma doença que apodrece a raiz das plantas. Quando encontra uma monocultura pela frente, alastra-se sem piedade. Foi o que aconteceu na década de 1960 com as pimenteiras de Tomé-Açu. “Dizimou tudo”, relata Francisco Sakaguchi. “Os japoneses foram trazidos para instalar no Norte os mesmos sistemas do Sul. Ou seja, monocultivos. Só que aqui a coisa era diferente.” (p. 299)
Ao morrerem as pimenteiras, os colonos mudavam de lugar e faziam nova plantação, até que todas as plantas morressem, então, repetiam o ciclo, mudando novamente de lugar.
Na tentativa de compreender o fenômeno, o engenheiro florestal Noburo Sakaguchi pegou um barco e saiu em busca de respostas. Parou em uma comunidade ribeirinha e observou um homem comendo uma fruta em um quintal com muitas árvores frutíferas. Conversando com esse ribeirinho, se deu conta de que, no terreno, havia uma diversidade enorme de árvores.
O engenheiro pensou em fazer o mesmo com as plantações de pimenta do reino: rejeitar a monocultura e fazer um plantio diversificado.
O resultado foi excelente, outros colonos inicialmente descrentes passaram a optar pela agrofloresta e não mais pela retirada da floresta e plantio da monocultura de pimenta do reino.
“Noburo previu que as lavouras conviveriam com a mata. Ou, por outra, trariam a mata de volta, combinando reflorestamento natural – aquele feito por pássaros e outros dispersores de sementes- com plantio de espécies comerciais, um sistema híbrido…” (p.301)
Se queremos que todos tenham aprendizagens equivalentes, precisamos considerar a diversidade e os necessários investimentos para equidade. Ninguém aprende a mesma coisa, nem ao mesmo tempo que outro. Essa crença é a principal responsável pelo não aprendizado, pela reprovação, pelo abandono da escola e pela indisciplina.
A busca da homogeneidade, da monocultura, inviabiliza o desenvolvimento integral dos estudantes e suas aprendizagens.
Além da busca de homogeneidade nas aprendizagens, a cronologia escolar impõe o tempo de ensino para cumprimento do currículo linear e hierarquizado segundo especialistas. Aprendemos por ano? Ou ao longo dos anos, ao longo das nossas vidas? O que a escola está ensinando?
A escola muitas vezes está distante de ser um espaço que promove e estimula o desejo de aprender; ao contrário, o interesse pelos assuntos tratados na escola diminui a cada ano da escolaridade.
O direito de aprender é inegociável, mas o quê, o como, o para que e o quando precisa valorizar, reconhecer, respeitar as diferentes culturas e necessidades locais, bem como gerar condições para que a educação integral se institucionalize.
Queremos todas as crianças, adolescentes e jovens com seus direitos garantidos e com disponibilidade para batalhar para uma sociedade mais justa, em que a vida humana e não-humana exista com dignidade.
É urgente a transformação nas escolas para que o propósito de sua existência tenha sentido. Estamos em período de inúmeras transformações na qualidade do convívio, no meio ambiente, na tecnologia, na política, no futuro do trabalho.
Vamos nos arriscar a fazer diferente porque o caminho mais perigoso é não se dar conta do que está ocorrendo e achar que a “pimenta do reino” morre por desejo próprio. Que a não aprendizagem, o não engajamento é problema dos estudantes, ou culpa dos professores.
O problema está em como compreendemos e queremos a vida em sociedade.
Queremos uma escola barulhenta, viva e produtiva!
E precisamos aprender a ouvir e a apreciar os sons produzidos.
Muito se diz sobre as escolas que fracassam. É urgente tornar público o que é feito em inúmeras escolas que realizam uma verdadeira Educação Integral.
Escola em que a gestão democrática e os Direitos Humanos são a referência para toda e qualquer ação que ocorra na escola. Nessas escolas os estudantes aprendem, brincam, produzem, debatem e são ouvidos. A comunidade assume junto com a escola os caminhos a serem percorridos. São escolas vivas!
Pouco importa se o objetivo é fantasioso e difícil de alcançar. O que importa é o rumo. Para um país que sempre sonhou baixo, é uma linda ambição, apta a evitar que, no futuro, uma criança olhe para um mogno e acredite que está diante de uma pilha de tábuas de compensado. (p.380)
Sejamos utópicos para que nenhuma criança venha a se queixar num futuro próximo que foram abandonadas em meio ao turbilhão socioeconômico e ambiental e enganadas com as parafernálias educativas à venda no mercado
Parafraseando Darcy Ribeiro: vamos inventar as nossas escolas!
Vamos inventar a educação que queremos e podemos, como nos diz nosso conselheiro professor José Fernandes de Lima, para que haja futuro! Obrigada, João!