publicado dia 25/04/2017
Antecipação da alfabetização proposta pela Base é criticada
Reportagem: Thais Paiva
publicado dia 25/04/2017
Reportagem: Thais Paiva
Antecipar do 3º para o 2º ano do Ensino Fundamental, isto é, dos oito para os sete anos o prazo máximo para que todas crianças brasileiras estejam plenamente alfabetizadas. Com esta mudança, a terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), entregue pelo Ministério da Educação (MEC) ao Conselho Nacional de Educação (CNE), no início de abril, tem provocado acalorados debates.
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Se, de um lado, o MEC justifica a alteração alegando a necessidade de assegurar equidade às crianças matriculadas na escola pública e oriundas de famílias pobres, dizendo que as crianças da classe média conseguem ser alfabetizadas em idade inferior; de outro, especialistas criticam o autoritarismo da medida e a redução do conceito de “criança alfabetizada” a uma noção ultrapassada de instrumentalização das práticas de leitura e escrita.
Até sua segunda versão, a Base estipulava como limite para a conclusão do processo de alfabetização o 3º ano ou por volta dos oito anos de idade da criança – meta em consonância ao estabelecido pelo Plano Nacional de Educação (PNE) e com o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic).
O cumprimento do prazo, no entanto, já encontrava desafios. Segundo dados da última Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), aplicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), até 2014, 77,8% das crianças tinham o aprendizado adequado em leitura até os 8 anos, 65,5%, em escrita e 42,9%, em matemática.
Para Claudemir Belintane, professor da Faculdade de Educação da USP e pesquisador do Grupo Oralidade, Leitura e Escrita (GOLE), a mudança mostra-se como uma tentativa inócua de tentar resolver problemas educacionais com “canetadas” irresponsáveis. “Não adianta fixar uma idade mínima para alfabetizar, seja no 3º, no 2º ou no 1º, se as condições básicas para isso não são subsidiadas. Decretar este ou aquele limite significa apenas pressionar e responsabilizar. No final das contas, diante do não cumprimento das metas, joga-se a culpa nos ‘professores mal formados’ e nas ‘famílias desorganizadas’”, critica.
A nova meta, na opinião do educador, revela um esforço despreparado para resolver questões pontuais sem levar em consideração contextos mais amplos, que dialoguem com pesquisas, com o histórico do fracasso escolar no Brasil, entre outros pontos. “É preciso reorganizar a escola pública, recuperar salários, criar programas mais precisos que, de fato, coloquem a alfabetização e a leitura como verdadeiras prioridades”, aponta.
Artur Morais, professor do Centro de Estudos em Educação e Linguagem da Universidade Federal de Pernambuco, expressa opinião semelhante. Para o educador, a antecipação exemplifica o autoritarismo da atual versão da Base, cujo conteúdo não foi publicamente acordado e, em muitos pontos, desvirtua do que se vinha debatendo até então.
“Parece-me absolutamente sem sentido ficarmos opinando se dois ou três anos são necessários para alfabetizar todas as crianças sem discutirmos o que estamos concebendo como criança alfabetizada. Os direitos de aprendizagem do Pnaic, que pressupunham um ciclo de alfabetização nos três primeiros anos do Ensino Fundamental, têm uma concepção muito clara e avançada sobre isso”.
Especialistas criticam a redução do conceito de “criança alfabetizada” a uma noção de instrumentalização das práticas de leitura e escrita.
De acordo com o programa, as crianças, ao final do 3º ano, deveriam ler com compreensão e autonomia textos do universo infantil e ser capazes de escrever pequenos textos como relatos de experiências que vivenciaram na escola ou em casa. “Ora, isso não tem nada a ver com a visão restrita de alfabetização de antigas cartilhas e métodos fônicos, para os quais bastaria uma criança ler palavras soltas e poderíamos dizer que está alfabetizada. Os direitos do Pnaic, que respeitam o PNE, pensam num cidadão-criança que, ao concluir o ciclo de alfabetização, já exerce, num determinado patamar e com autonomia, as práticas de leitura e escrita de textos na vida social. Isso é tratar a educação como direito”, diferencia.
Embasado pelos resultados da ANA, Morais acrescenta que, se em 2014, apenas 2/3 das crianças das redes públicas concluíam a alfabetização com um aprendizado de escrita considerado adequado, é temerário querer antecipar metas. “Parece-me um tanto lógico que a antecipação, que os gestores do MEC querem impor, tem todo o potencial para produzir ainda mais exclusão. Sobretudo porque o que a BNCC propõe para o ensino de leitura e escrita, no final da Educação Infantil, é muito pobre”, lamenta.
A preocupação de que a nova proposta de alfabetização provoque alterações negativas na etapa anterior, a Educação Infantil, obrigando-a a trabalhar o mundo da leitura e da escrita sob uma perspectiva instrumentalizante e dando menos espaço para uma abordagem lúdica, é compartilhada.
“Na educação brasileira, prevalece uma visão espontaneísta da infância, com o isolamento de um período em que a criança deve brincar de forma não intencionada. Por outro lado, o contraponto desse visão vai no outro extremo: põe a criança para trabalhar exaustivamente a escrita aos cinco, aos quatro anos, ou seja, até dois anos antes do Fundamental I”, analisa Belintane.
No entendimento do professor, é inferível que por trás desta perspectiva de alfabetização da Base esteja a ideia equivocada de que há um sistema de ensino permissivista, no qual os professores não se importam com a sistematização dos elementos da escrita, isto é, com o treino para o aprendizado das letras, das sílabas, da metodologia fônica, etc.
“Querem voltar, talvez, ao que prevaleceu até a década de 80, quando a escola era competitiva e cultuava a reprovação. Mas é possível fazer uma política de transição da Educação Infantil para a Educação Fundamental, é o que chamamos dobradiça de entre-ciclos, mas quem quer baratear a educação não pensa nessas coisas”, diz.
Para Morais, preocupa também que o que está proposto na atual versão da BNCC para a área de linguagens na Educação Infantil traz objetivos relativos ao letramento, às práticas de leitura e escrita de textos, mas não traz objetivos que visem, explicitamente, ajudar as crianças a avançar na compreensão de como a escrita alfabética funciona.
“Essa omissão significa que o Estado não se compromete a garantir aos filhos das camadas pobres o mesmo que os aprendizes de classe média vivenciam na escola nessa etapa: oportunidades para refletir, curiosamente, sobre palavras, de modo a virem a compreender como as letras funcionam e, portanto, viverem mais chances de concluírem o primeiro ano do Ensino Fundamental tendo se apropriado da escrita alfabética”, conclui.