publicado dia 16/07/2015
Uma viagem pela infância em 32 países
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 16/07/2015
Reportagem: Ana Luiza Basílio
Um ano e meio fora de casa, aos 19 anos. 32 países e muitas histórias para contar. Esse é uma breve resumo da experiência de Felipe Sant’Ana Pereira, ou Felipe Gaúcho, como prefere ser chamado. O desejo de vivenciar essa jornada já o acompanhava desde a infância, mas, naquela época, ainda era um ideal distante.
“Minha mãe sempre viajou bastante e costumava trazer uns souvenirs um tanto quanto exóticos dos lugares por onde passava. Daí surgiu minha curiosidade e desejo de conhecer diversos países e regiões. Isso evoluiu para a ideia de dar uma volta ao mundo e, quando encontrei um amigo que tinha o mesmo ideal, aquilo virou um sonho”, conta.
A aventura, no entanto, não foi compartilhada pelo amigo. Felipe Gaúcho embarcou só, em 2012, acompanhado do compromisso que tinha e tem com seus sonhos, como ele mesmo define. Sobre a decisão de seguir adiante pesou o fato de que outras pessoas próximas estavam no momento de abrir mão de seus ideais em nome de outros compromissos próprios da vida adulta. Indispensáveis a eles, não a Felipe.
A ele interessava a busca pela juventude, a manutenção dela. “Via que meus amigos vinham perdendo a juventude, não no sentido literal, mas no idealizado, do apego à vocação, ao sonho, à obstinação pueril que ignora obstáculos e só para quando atinge o seu objetivo. Buscar essa juventude era o mote da minha viagem e nada fazia mais sentido do que ir atrás dela em sua fonte: as próprias crianças”.
Gaúcho conta que o destino se encarregou de apresentá-lo a uma “molecada diversa e incrível” nos mais diferentes países. Esses encontros nunca foram forçados, como ele explica. “Me mantive atento aos sinais do acaso e frequentei lugares populares entre crianças e famílias, nos quais sabia que poderia criar laços com gente nova e conversar com desconhecidos”.
No interior da Romênia, por exemplo, em um passeio por uma vila bem pequena, Felipe ensinou alguns truques de malabares para um grupo de amigos e, em seguida, conheceu uma moça que tinha aprendido “portunhol” assistindo a novelas latinas – jovem que acabou mediando a conversa que ele teve com com os pequenos. Na cordilheira do Himalaya, deu aulas de inglês em algumas escolas e também pôde entrevistar uma “meninada”. “Era assim que a coisa se desenrolava, de um jeito diferente em cada lugar. A única coisa em comum era a minha motivação: tentar entender, através dos olhares e das palavras delas, o significado da juventude, para tentar manter esse estado de espírito sempre vivo dentro de mim”, esclarece.
Felipe conta que, por mais que suas perguntas universais acabassem por induzir respostas curiosas e interessantes, a estratégia era sempre deixar o papo fluir com as crianças. Sonhos, medos, ídolos, hobbies, aspirações, crenças, dúvidas… Ia aparecendo de tudo um pouco em cada relato que ouvia.
Dois deles, no entanto, foram bastante marcantes, como ele relembra: “o primeiro é de um garotinho espanhol que, na sua inocência, me confessou sonhar em ser astronauta e prometeu que um dia visitaria Marte para conhecer os marcianitos. O papo transcorreu, e a ignorância dele quanto a quaisquer dificuldades práticas me abriu os olhos para o poder da fé. O segundo é de um pastor indiano que vivia no deserto e cujo sonho era o de ter cem cabras. Se tivesse direito a um desejo diante de um gênio da lâmpada, ele me contou que pediria farinha, para fazer muitos pães e conseguir alimentar a família”.
Felipe vivenciou bons e maus momentos em seu percurso. Em suas memórias, figuram entre os acontecimentos positivos o fato de ter sido “adotado” por uma família da Indonésia, e ter passado um mês vivendo em uma cabana à beira-mar junto com nativos, surfando, jogando bola e ensinando inglês diariamente. “É impressionante a capacidade que temos de criar laços e de aprender com os outros quando desaceleramos e damos tempo ao tempo”, reflete.
Entre as memórias mais negativas está o fato de ter testemunhado, na Índia, as condições precárias nas quais crianças crescem em comunidades desprivilegiadas. “Houve momentos em que doei atenção, carinho, roupas, alimentos, tudo o que tinha na minha mochila… E aí me pediam a própria mochila. A miséria avassaladora de alguns cantos me fez entender o significado da expressão ‘dar a mão e pedirem o braço’. Trazia à tona o instinto primordial da sobrevivência, que anula qualquer outro impulso humano. Num contexto assim, é muito difícil que um caráter íntegro se constitua, que um futuro promissor se alicerce, que uma vida digna seja levada”, reflete.
A diferença entre os tipos de pobreza que vivenciou foi algo bem marcante para o jovem viajante. “Na vila onde ‘morei’ na Indonésia, a renda média de uma família era irrisória e a subsistência vinha dos arrozais cultivados e dos animais criados ao redor das cabanas. A comunidade era pobre, mas essa pobreza se traduzia como simplicidade: vivia-se bem, dentro dos limites. Em favelas de metrópoles indianas, por outro lado, com uma renda até mesmo maior do que a dessas famílias indonésias, crianças cresciam tomando banho no esgoto, bebendo e cozinhando com essa mesma ‘água’. Dividiam espaços minúsculos com dezenas de familiares e eram expostas à poluição, violência e insegurança intensas – na Índia, a fé, muitas vezes, serve de justificativa para a aceitação de condições deploráveis como essas.”
Para Felipe, a pobreza é opressora, porque nenhuma criança é capaz de alcançar seu desenvolvimento integral em contextos de privação, escassez e miséria. “A lição que fica é a de que o dinheiro não é o único fator determinante na criação de um ambiente propício ao desenvolvimento saudável. Acho que o mínimo que se precisa oferecer para diminuir as chances de se comprometer o futuro de alguém é saneamento, alimentação e educação básicas, além de uma estrutura familiar sólida. E creio que pelo menos três desses pilares são de responsabilidade do Estado”, avalia.
Em relação à educação, Felipe lecionou no Nepal e na Indonésia e visitou algumas escolas principalmente na Bósnia, na Turquia, e no Laos. “Todos esses cinco países têm uma religião dominante e que permeia o sistema educacional (o budismo, no Nepal e no Laos; e o islamismo, nos outros). Essa peculiaridade (que nós, brasileiros, também temos) produz moldes educacionais completamente diferentes, e acho impossível compará-los para definir se há um melhor ou um pior. O acesso à escola, exceto em zonas relativamente inóspitas (que existem aos montes no Laos, no Nepal e na Indonésia) é similar ou um pouco pior do que no Brasil. Na minha opinião, pelas experiências que tive, a educação pública, na média, é de qualidade um pouco melhor do que a nossa no que diz respeito à valorização do professor e ao interesse dos alunos, e não tanto no que diz respeito à infraestrutura”, opina.
Os relatos das crianças compõem o livro de Felipe lançado recentemente, Jovem o Suficiente. Parte da experiência também pode ser conferida na página do Facebook que leva o mesmo nome. O jovem tem em mente escrever um novo livro, tarefa que pretende realizar na Amazônia. A ideia é produzir uma narrativa ficcional, ainda sobre a questão da infância, da vocação, que deve tomar como ponto de partida outro incômodo de Gaúcho: “qual foi a última vez que você encontrou uma pessoa que vive fazendo aquilo que realmente ama?”.
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