publicado dia 05/02/2015

Vera Santana: uma história dedicada à educação e cultura

Reportagem:

Há quem diga que educação e indisciplina não caminham juntas. Mas a personagem dessa história preferiu trilhar a “desobediência” e, para sorte de muitos, segue assim há 58 anos. Vera Santana rompeu muitas barreiras para não se afastar das convicções que teve ainda muito nova, aos 14 anos de idade.

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Vera Santana. Arquivo pessoal.

Quando cursista do ginásio no Colégio Estadual do Atheneu Norte Rio Grandense, em Natal, sua cidade de nascimento, teve a oportunidade de ingressar como educadora em um curso de alfabetização de adultos, ligado à Secretaria Municipal de Educação. E se aliou aos ensinamentos de Paulo Freire seguidos pelo grupo de educadores que já desempenhavam a tarefa. Foram quatro anos pensando a educação em um contexto de sociedade, relembra: “discutíamos o educar a partir da realidade que tínhamos, daquela comunidade. Quais seriam as formas de alfabetizá-los?”.

Aos 17, passou em um concurso do estado e seguiu para a Escola Estadual Presidente Kennedy para outra vivência que determinaria sua forma de pensar a educação. “Ganhei uma turma que ninguém queria”, conta, referindo-se à sala de alunos especiais com deficiências mentais graves. Para entender daquele universo, Vera saiu de sua cidade pela primeira vez para se especializar no Rio de Janeiro, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, no bairro da Tijuca, e voltou à sala de aula. “Enquanto os outros achavam trabalhoso por não se poder trabalhar com um currículo, eu segui pelo caminho das potencialidades que cada um tinha”, relembra.

Um caminho sem volta

Dali em diante, a jovem educadora passou a contrariar as normativas do sistema educacional tradicional. Seguiu para outras escolas da rede desobedecendo currículos, secretarias de educação, muitas vezes desagradando a gestores e professores. O desconforto gerado fica quase incompreensível em sua forma segura de relatar o que fazia: “Imagine que eu tinha que explicar aos estudantes o que eram círculos. Eu só fazia de um jeito a estabelecer significado com a cultura local, com os desejos daqueles alunos. Por exemplo, João Redondo é um mamulengo conhecido no Nordeste. Por que não utilizá-lo?”. Para os que ainda questionavam a jovem, a resposta soava duplamente desafiadora: “estou dando aula a partir do lúdico, da cultura local, do que é realidade para os alunos, coisa que a escola também deveria pensar”.

“Eu nem queria ser professora, queria fazer arquitetura. Mas minha mãe sempre dizia que era uma profissão digna, e eu achava chato. Depois, entendi que como  professora encontrei a maneira de fazer a arquitetura que eu tanto sonhava, junto aos meninos, a arquitetura da escola, do saber, da vida.”

A frase “Ivo viu a uva” comum nos manuais de alfabetização, ganhava marcas claras da aproximação da cultura e educação nas aulas de Vera. “Aqui as crianças comiam pitomba, chupavam caju”, exemplifica para evidenciar como o diálogo poderia ser enriquecedor para o desenvolvimento integral de seus educandos. Esses conhecimentos, claro, iam sendo acrescidos de outros de acordo com o o nível psicomotor e intelectual das crianças e adolescentes com os quais lidava.

“Na geladeira”

Após concluir graduação em História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e rumar para o Rio de Janeiro buscando sua liberdade política no período em que a ditadura militar havia sido instaurada, e por lá concluir mestrado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, Vera retornou à sua cidade de origem para o “calvário”, como ela mesmo define.

Do chão da escola à Secretaria de Educação, como parte integrante da equipe de coordenadoria de atividades culturais, Vera sentia que suas ideias não emplacavam como antes. “Me senti na geladeira”, conta. Chegou a coordenar o Projeto Pixinguinha, que tinha como objetivo fazer circular pelo país shows de músicas brasileiras a preços acessíveis, mas, mais uma vez, optou pelo Rio de Janeiro e pediu transferência.

O encontro com o CIEPS

De olho na atuação do então governador Leonel Brizola, e de seu vice Darcy Ribeiro, que têm entre os feitos a criação do I Programa Especial de Educação, do qual os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPS) faziam parte, Vera cogitou a possibilidade de migrar sua carreira do estado para a prefeitura, feito que aconteceu por sorte, como conta. “Eu não tinha partido político, nem era conhecida, apenas uma amiga disse que me ajudaria a falar da minha vontade de ingressar na prefeitura”.

O convite foi para coordenar o projeto Palco Sobre Rodas, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Cultura, e que tinha o objetivo de levar cultura e lazer à população, com espetáculos pré definidos. O caminhão que seguia para as localidades com programações diurnas, vespertinas e noturnas para diversos públicos não escapou do desejo da educadora: de ver também a cultura local ali refletida. “Era isso que eu sabia fazer”, relata com o entusiamo de uma apaixonada pela causa.

Mobilizada com outros atores sociais que partilhavam de seu ideal, fez o projeto acontecer com a nova configuração por dois anos até que passou para a gestão das Secretarias de Cultura. À época, surgiu o convite para dirigir a ação comunitária do órgão, função que cumpriu juntamente com um coletivo que ia para as ruas discutir políticas de cultura para a cidade.

“Pensávamos isso tomando como base os CIEPS e os animadores culturais, figuras que coordenavam as atividades dos centros e tinham a função de instigar as escolas a pensarem a educação integrada à diversidade cultural da cidade”, explica Vera. Ela coloca que, com isso, cresceu a percepção da necessidade de se discutir a cultura com a comunidade e também a participação social validando as ações do grupo.

Ainda na atuação pela cidade, que durou um período de 20 anos, foi convidada a dirigir o Programa Especial de Educação, o que possibilitou que ela se reunisse com pessoas que faziam o debate da educação integral. “Situação para a qual era necessária vontade política”, atesta referendando a figura de Darcy Ribeiro.

Bagagem para Felipe Camarão

O reencontro de Vera com Natal se deu quando completou 43 anos. À época, uma rápida passagem pelo departamento de cultura do município, acelerada principalmente pela falta de avanços obtida com as 50 escolas com as quais teria que trabalhar. “Fui praticamente taxada de louca”, brinca a educadora ao lembrar que as oficinas realizadas pelos arte educadores consideravam apenas os grupos de teatro da escola, deixando os demais alunos em segundo plano. “Eu queria que eles considerassem os demais, que configurassem aqueles espaços como uma oportunidade para que as crianças explorassem seus desejos”, esclarece, justificando o porquê do insucesso da empreitada.

Ainda de dentro do gabinete, a educadora começou a procurar outras formas de promover o encontro e o diálogo da educação com a cultura, e fazer disso uma realidade no território em que atuava. Eis que a figura do Mestre Manoel Marinheiro, famoso pela execução de cantos e danças de boi-de-reis no bairro de Felipe Camarão, Zona Oeste de Natal, a fez procurar a localidade para, sobretudo, entender a realidade escolar.

Vera foi repreendida por invadir funções alheias e, de novo, se deparou com um terreno bem pouco fértil no quesito cultura permeando o desenvolvimento humano. Os arte educadores nas escolas de Felipe Camarão eram reconhecidos pelo calendário de festividades, por serem responsáveis por realizar ações dessa natureza. Mais uma vez, seria necessário um trabalho de mudança de percepção.

Fichinha para a incansável educadora. Ela não só encontra Manoel Marinheiro como cava um espaço para dialogar na Escola Municipal Professor Veríssimo de Melo, também do bairro. A unidade tinha alunos que dançavam no boi-de-reis e não promovia qualquer reflexão a respeito. Surgiu, então, a ideia de promover oficinas com os alunos, trabalho que, de início, sofreu críticas por parte da comunidade escolar.

“Nos diziam que as letras de Manoel Marinheiro continham erros de grafia; que ele falava errado”, relembra. Ela conta que as colocações foram prontamente problematizadas para justificar a importância de se resgatar a cultura do país e suas memórias – “em que medida isso dizia da formação do povo brasileiro?” – e trazer a mesma percepção para o local, ou seja, que a cultura territorial também desenvolvia esse papel com a comunidade.

Felipe Camarão se tornou o palco de estreia que trazia como atores principais a educação, a cultura, a história e a antropologia. O trabalho seguiu para outras localidades como o bairro das Quintas, por onde se tornaram comum cortejos que traziam as memórias locais.

Nasce um projeto: Conexão Felipe Camarão

Foi aí que começou a pulular na mente de Vera a possibilidade de abrir uma ONG, ideia ainda mais aguçada após encontro com Mestre Marcos da capoeira, outro combatente na luta para que a expressão fosse reconhecida como integrante da cultura, história e diversidade. O sonho se concretizou em 2002 com a criação da ONG Terra Mar que, originalmente, nasceu com a ideia de dar consultoria na área de cultura e educação no Rio Grande do Norte.

A mudança de rota veio da constatação de que a cidade ainda enxergava as coisas engessadas, compartimentadas, e tampouco reconhecia a necessidade de flexibilizar o currículo na perspectiva do desenvolvimento integral.

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Foto: divulgação.

O foco de atuação, então, se voltou para Felipe Camarão e sua forte expressão cultural oral, mantida pelo Auto do Boi de Reis [do Mestre Manoel Marinheiro], teatro de bonecos João Redondo do Mestre Chico de Daniel, musicalidade da rabeca do Mestre Cícero da Rabeca e capoeira do Mestre Marcos. O projeto Conexão Felipe Camarão se estruturou com base nesse cenário com o objetivo de fortalecer a identidade cultural local, contribuir com sua preservação e integrá-la como potencial educativo para a comunidade.

Da articulação com os mestres locais, o projeto virou uma realidade e modificou a conjuntura do território. Inicialmente de caráter independente e voluntário, as oficinas ganharam uma agenda fixa com a comunidade, e são realizadas na Escola de Saberes Conexão Felipe Camarão, hoje um pólo cultural local reconhecido como apoiador do desenvolvimento escolar.

Outros desafios, novas lutas

A vivência de Vera Santana com a educação integral via Conexão Felipe Camarão não se encerra aí. Isso porque sua projeção é nacional. “É preciso que haja um entendimento, sobretudo do sistema educacional brasileiro, do que é a educação integral, do que é ser educador, do papel da educação”, afirma, ao passo que condena o currículo do Ministério da Educação por julgá-lo engessado e aprisionador.

O problema, como coloca, diz também de nossa formação primeira: “que não desenvolve essa consciência política de cada um na sociedade”. Condução que segue intacta nas universidades. “Elas jogam no mercado profissionais que não dialogam, não refletem a sociedade em que vivem”, condena.

Para Vera, é luta que segue. “Precisamos buscar essa humanização, essa responsabilização com as outras gerações, e isso diz de instigá-los a pensar a vida. Não é o ter. É o ser em primeiro lugar”, conclui.

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