publicado dia 23/06/2016

“Fazer educação inclusiva é construir uma sociedade inclusiva”

Reportagem:

A história de Ana Cláudia Domingues e seu processo educativo é uma história de obstáculos, mas também de conquistas. Durante o período de letramento, teve dificuldades para se alfabetizar. Chegou à 2ª série do Fundamental (hoje correspondente ao 3º ano) sem saber ler como outras crianças de sua sala. A professora convocou, então, os pais à escola. Chamou a atenção para o fato de que Ana “não acompanhava a turma” e que “apertava os olhos para tentar enxergar”.

Crédito: Aguinaldo Pedro

Da esquerda para a direita: Martinha Santos, Fernanda Camarotta, Regina Oliveira, Ana Cláudia Domingues e Shirley Maia. Crédito: Aguinaldo Pedro

“Muitas vezes é a escola que avisa à família”, conta Ana Cláudia. “Eu tentava decorar os textos lidos por outros para acompanhar. Minha professora não soube lidar, mas não a culpo”,  afirma a pedagoga, especialista em educação inclusiva e integrante do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo.

Ana adquiriu deficiência visual ainda pequena, de forma gradativa, devido a uma retinose pigmentar. A declaração foi feita durante uma das mesas do “Seminário de Educação Inclusiva – Avanços e Possibilidades”, realizado sexta-feira (17/06), pela Fundação Dorina Nowill.

O evento contou com a participação de diversos representantes de escolas, governos, organizações da sociedade civil, pessoas com deficiência e seus familiares. O objetivo foi traçar um panorama da educação inclusiva, identificar avanços e buscar experiências concretas pelo Brasil que apontem caminhos para os principais desafios encontrados.

Desbravadores

A pedagoga conta que passou por inúmeros outros entraves e constrangimentos, que ela atribui ao preconceito, à falta de preparo, de sensibilidade e formação dos docentes que cruzaram seu caminho. “Lembro de uma professora de Geografia que me pedia para apontar no mapa as capitais. Isso me marcou profundamente”, relembra.

Ao concluir o Ensino Médio, encontrou uma nova resistência na universidade, já no vestibular, quando a instituição escolhida por ela não aceitou, de primeira, sua solicitação por uma prova especial, com letras maiores. A coordenadora do curso de Pedagogia ainda conversou com ela, tentando dissuadi-la. “Disse que eu deveria repensar, pois pedagogia era um curso denso, com muita leitura. Chorei, me decepcionei, mas retornei e exigi a prova adaptada”, conta.

Ana relatou outras inúmeras barreiras que precisou ultrapassar em sua vida estudantil e profissional, pelo simples fato de ter deficiência visual. Mas acredita que sua insistência foi fundamental para abrir os caminhos. “Foi passando por esses preconceitos que pude reagir e marcar território. Temos que ocupar espaços e forçar mudanças”, afirma.

Para a pedagoga, o papel da escola, diretores e professores é fundamental e pode ser decisivo na vida de uma pessoa com deficiência. “Esses profissionais devem buscar estratégias para efetivar a inclusão, potencializar e empoderar o aluno. Assim ele ganha condições, dignidade e valores para seguir adiante”, finaliza.

A lei e a realidade

Apesar de alguns anos terem se passado desde que Ana frequentou a escola, o preconceito e as dificuldades persistem, embora algumas mudanças já tenham sido conquistadas. Em junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que escolas particulares não podem recusar estudantes com deficiência, nem cobrar taxas extras das famílias.

No entendimento do STF, a educação inclusiva “é política pública estável, desenhada, amadurecida e depurada ao longo do tempo e […] foi incorporada à Constituição da República como regra”. Ressaltou ainda que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência foi ratificada pelo Congresso Nacional, o que lhe confere status de emenda constitucional.

A medida foi elogiada durante o seminário, embora, para muitos, entre a lei e sua efetivação, exista ainda muito trabalho a ser feito. Anteriormente, já havia entendimento legal de que as escolas não podiam discriminar nenhum estudante, mas, ainda assim, escolas privadas recorriam na Justiça, o que, agora, com a medida do STF, não é mais possível.

O rechaço de instituições privadas foi o caso de Fernanda Camarotta, mestre em Psicologia da Educação, mãe de Miguel, criança com síndrome de down e que também possui uma doença rara, Moia-moia, que compromete sua mobilidade. “É triste chegar a grandes escolas de São Paulo, com mensalidades de R$ 3 mil, e escutar que não podem receber o Miguel porque não têm recursos”. 

28 rejeições

Fernanda conta que embora a lei seja essencial, é complicado forçar uma escola a receber um estudante que necessita de cuidados especiais. “Não queríamos brigar na Justiça para colocá-lo em uma escola que ia deixá-lo largado”, afirma. “Optamos por um escola que tem a educação inclusiva como princípio e que se posicionou diante do preconceito de docentes e outros pais”.

Shirley Maia, doutora em educação inclusiva pela USP, presidente da Associação de Atendimento a Múltipla Deficiência (Ahimsa), contou de um caso que acompanhou, de uma menina de 9 anos com deficiência que foi rejeitada por 28 escolas. “Hoje é uma mulher adulta, com trabalho e tudo. Mas todo esse processo é muito doloroso para a pessoa e a família. Temos que dar suporte a eles também, para que elas possam, por sua vez, dar apoio à pessoa com deficiência. As famílias precisam poder respirar, sentirem-se apoiadas e empoderadas”, avalia.

Para Fernanda, é essencial que os pais e outros responsáveis entendam que o acolhimento de seus filhos na escola é amparado pela lei. “A gente ainda sente que está pedindo um favor para nosso filho, mas é um direito”. Ela conta que outras crianças sem deficiência também utilizam, em seus processos de aprendizagem, as estruturas montadas pela escola para Miguel. “A presença do diferente ajuda aos outros e fazem todos crescerem de forma mais significativa”, reflete.

Shirley reforça esse aspecto. Para ela, universalizar o acesso também significa fazer um desenho universal da aprendizagem no qual qualquer criança possa aprender. O fundamental é não separar ou segregar crianças. “A educação inclusiva propõe olhar o ser humano a partir do que ele tem, para além da sua deficiência, e não a partir do que ele não tem”.

Avanços da última década

Martinha Santos, diretora da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), afirmou que garantir a qualidade de vida de pessoas com deficiência é uma tarefa pendente em toda sociedade brasileira. “Fazer educação inclusiva é construir a sociedade inclusiva. A escola é apenas um microcosmo”, opinou.

Ela argumentou que o Brasil pôde estruturar melhor as políticas públicas, o que se vê refletido nos números. De acordo com dados da Secretaria baseados no Censo Escolar, entre 2003 e 2015 houve um aumento de 85% na matrícula de estudantes público-alvo da educação especial. A queda no número de matrículas em salas especiais, acompanhada do aumento em classes comuns, mostra que há um esforço para não segregar crianças e adolescentes com necessidades especiais.

Crédito: Secadi/MEC

Crédito: Secadi/MEC

Saiba + A consolidação da educação inclusiva no Brasil de 2003-2016 

Ainda de acordo com a Secadi, em 2007, ao redor de 21% do total de pessoas com deficiência entre 0 e 18 anos estavam matriculadas na escola. Em 2012, esse número subiu para 70%.

Formação, o maior desafio

Durante o seminário, os organizadores divulgaram uma pesquisa com os participantes do evento. Pediram a todos que se inscreveram para identificar o que eles consideravam como os principais desafios para se efetivar a inclusão. Ao todo, analisaram 422 contribuições.

A formação e capacitação de docentes e gestores foi mais citada, seguida da batalha contra o preconceito e barreiras atitudinais. Em terceiro, as legislações e políticas públicas.

Para Ana Rita de Paula, psicóloga e consultora sobre inclusão, é necessário pensar a formação de forma diferente da tradicional, não em termos individuais, mas de equipe. “Deve existir uma atuação a partir de equipes interdisciplinares e intersetoriais. O professor não deve ser um especialista em deficiência e a escola não deve ter ‘o’ professor especialista, mas a questão inclusiva deve estar presente na formação de todos. Temos que formar professores com capacidade de aprender com aluno e de ver suas necessidades. Cada um tem uma forma peculiar de aprender, não importa se tem deficiência ou não”.

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