publicado dia 23/04/2015

Assembleias escolares, a chave para fortalecer a democracia

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A gestão democrática dentro das escolas está amplamente amparada na legislação brasileira. A Constituição Federal a considera como um princípio básico e tanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), como o Plano Nacional da Educação, em seu artigo 22, regulamentam a implementação de políticas de democratização da gestão.

Apesar disso, colocar em prática tais políticas não tem sido uma tarefa fácil. Um dos eixos estruturantes de uma política de gestão democrática é a participação de todos os atores envolvidos na comunidade escolar por meio de mecanismos de participação. Ulisses Araújo, professor da Escola de Artes e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, há mais de 15 anos se dedica à temática, fortalecendo a implementação de assembleias em espaços educativos como ferramentas fundamentais no processo de construção de valores democráticos e cidadãos, que primam pela cultura da tolerância e do diálogo.

O docente acaba de lançar, pela editora Summus, o livro  Autogestão na sala de aula: as assembleias escolares, no qual relata experiências nas escolas, escutando estudantes, docentes e gestores. Na publicação, o professor também apresenta um guia prático para implementar esses espaços de participação dentro das instituições de ensino. O livro se insere dentro da coleção Novas Arquiteturas Pedagógicas, que tem como objetivo ajudar os profissionais da educação a construir ambientes educativos inovadores, levando sempre em consideração a ética nas relações humanas dentro e fora da escola.

Leia, a seguir, a entrevista com o especialista.

Centro de Referências em Educação Integral: Como surge a ideia de seu livro e como ele se encaixa dentro da coleção?

Ulisses Araújo: A coleção se chama Novas Arquiteturas Pedagógicas e ela surge de um núcleo de pesquisas que eu coordeno na USP com esse mesmo nome e foi constituído em 2012. Somos 20 professores, majoritariamente da Faculdade de Educação (FE) e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (USP Leste), onde eu leciono. Nos reunimos em torno a grupos de pesquisas sobre diversos campos do conhecimento, em pesquisa base e pesquisa aplicada. Estamos tentando ressignificar o que seriam tempos, espaços e relações dentro do universo educativo.

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No caso desse livro, ele se encaixa numa proposta de mudanças de relações dentro da escola, por isso vai trabalhar o tema da autogestão e assembleias na sala de aula. Não se relaciona diretamente com as discussões do tempo e espaço, apesar de interligados, mas o foco é nas relações dentro da sala de aula. Da escola com as famílias, com o bairro e com a sociedade.

CR: A gestão democrática está definida por lei. Como seu trabalho dialoga com a legislação?

Ulisses: Quando comecei esse trabalho, em São José do Rio Preto, junto à Secretaria Municipal, o objetivo foi justamente ver como levar essa legislação para dentro das escolas. Minha ideia  foi trabalhar com os fóruns e assembleias docentes. Houve muita resistência por parte de diretores e gestores em geral, pois as pessoas estão acostumadas a um modelo mais autoritário. E a grande discussão aí é o conceito de democracia. Por isso inicio o livro falando desse conceito. As pessoas têm uma tendência a achar que democracia é cada um fazer o que quer. Tem um nó cultural nesse discurso que acaba gerando essa resistência. Na verdade, as pessoas não estão acostumadas com o diálogo. Por isso, uma gestão democrática, passa por gerar espaços de diálogo na escola, considerando as responsabilidades de cada ator envolvido.

CR: Você escolheu determinadas escolas para trabalhar sua pesquisa? Quais?

Ulisses: Eu trabalho com o tema das assembleias há 15 anos, então, são escolas nas quais já atuei e trouxe as experiências para dentro do livro. No final da década de 1990, início da década seguinte, trabalhei com a rede municipal de Porto Feliz (SP) e depois trabalhei outros quatro anos implementando as assembleias na Escola Comunitária de Campinas. Posteriormente estive na Escola da Vila, em São Paulo.

O que traz esse livro de novidade, além das experiências mais antigas que fui acumulando, é o trabalho com os fóruns escolares. É um projeto que eu desenvolvi para o MEC entre 2003 e 2010, que abrangeu o Brasil inteiro. Entre 2006 e 2007, implementamos aqui na cidade de São Paulo os fóruns escolares, o que representa um salto na relação escola-família e procuramos trabalhar a relação da escola com toda a comunidade, que é algo mais amplo. Nos fóruns a escola convida todos os atores do entorno – o que envolve igreja, família, comerciantes, polícia – para a discussão de temáticas relacionadas à cidadania. Os fóruns são o que eu chamo de um quarto tipo de assembleia.

CR: Como vão sendo implementadas essas assembleias? Quais os outros tipos?

Ulisses: O trabalho que eu faço tem muita influência do espanhol Josep Puig, que, inclusive, tem vários livros publicados no Brasil. Ele não defende que as crianças determinem o que vão fazer e estudar na escola. As assembleias, nesse caso, têm o papel de diálogo e de poder trabalhar e regular as relações de convívio entre as pessoas de uma comunidade. Com essa perspectiva, começamos a trabalhar na rede pública de Porto Feliz (SP), com as assembleias de classe, nas quais professores e alunos de cada turma realizavam sua assembleia, uma vez por semana. Esse é um primeiro tipo de assembleia.

CR: Qual seria o segundo tipo de assembleia?

Ulisses: Existe um segundo tipo que são as da escola inteira, dentro de um modelo de democracia representativa. No primeiro tipo de assembleia, a de classe, é um modelo de democracia participativa. Cada sala uma vez por mês escolhe dois representantes que vão participar junto a outros representantes – professores, funcionários e direção – de uma assembleia de toda escola para discutir questões de convívio, em que vão tratar dos espaços compartilhados da escola.

Tudo isso feito com os princípios da democracia: as salas discutem os temas que irão levar e escolhem seus representantes de maneira rotativa; não incentivamos a ideia do representante de sala para o ano inteiro, não queremos formar pequenos políticos. Cada mês é um novo representante, para que todos possam aprender a tarefa de representação. Então, participam além dos representantes dos alunos, um professor de cada série, a direção e funcionários da escola.

CR: Essas assembleias de classe e de escola debatem que tipos de temas?

Ulisses: Relações de convívio.  Não  propomos discutir se querem aula de matemática ou de português. A chave conceitual desse modelo de assembleia é a ideia de democracia e cidadania. Como disse, democracia, ao contrário do que muitos pensam hoje, não é as pessoas fazerem o que elas querem. Existem algumas instituições sociais em que a relação entre os participantes não se dá em condições de simetria, mas são naturalmente assimétricas. Puig dá como exemplo, nos hospitais, a relação médico-paciente. A relação pais-filhos não é simétrica tampouco. Nas escolas, entre alunos e professores, professores e direção, também não há uma relação simétrica porque estamos falando de responsabilidades diferentes, e esse é um conceito essencial na democracia.

A responsabilidade de um pai e de uma mãe para com seus filhos pequenos é preponderante. Os filhos não podem fazer o que querem, o pai poderia até parar no conselho tutelar se assim fosse. Então, acho que o central é o conceito de responsabilidade. Uma assembleia de crianças não pode decidir que aulas vão ter ou não. Foge, inclusive, da responsabilidade do professor decidir se ela vai ter determinados conteúdos ou não. Assim como uma assembleia de escola não pode decidir expulsar um aluno, porque isso extrapola a competência do próprio diretor da escola, pois existe uma legislação que regula isso.

O papel das assembleias se limita à responsabilidade dos atores envolvidos. Ela é feita para que as crianças tenham espaço de diálogo acerca dos problemas e relações de convívio. Aliás, não só falar sobre o que está ruim, mas também felicitar o que está indo bem, reforçar o positivo.

CR: Essas duas assembleias se dão de forma combinada?

Ulisses: Nos projetos que desenvolvi, aconteceram as duas com certeza, mas há escolas que realizam apenas assembleias de classe. Existem escolas onde não há assembleias de professores, mas que eles próprios, como grupo, organizam as assembleias. Tem muita gente fazendo isso. É difícil implementar isso numa escola inteira sem apoio institucional. Este é necessário para que as iniciativas não fiquem isoladas. Mas, tem muita gente que me escreve dizendo que faz por iniciativa própria.

Trabalhei muito isso conceitualmente em um curso de especialização de Ética, Valores e Cidadania na Escola, em parceria com a Univesp e a USP e trabalhamos o conceito de assembleia com cerca de três mil professores. Muitos deles relatam que estavam implementando assembleias, mas que havia muita dificuldade, que a direção da escola não aceitava, ou que os colegas não queriam.

CR: Por que há professores que resistem em realizar assembleias?

Ulisses: Porque a maioria dos professores está acostumada a decidir tudo em sala de aula e aí quando eles não dão conta, jogam para os estudantes. Mas os alunos não são bobos, não entram nesse discurso facilmente. Já outros educadores querem usar as assembleias para resolver indisciplina e aí é um tiro n’água, não resolve nada. Porque o papel da assembleia não é reduzir problemas de indisciplina; ela até resolve, mas é um efeito secundário.

O papel dela é construção de valores de democracia, cidadania, construção de diálogo e, consequentemente, você acaba melhorando as relações de convívio e indisciplina na sala de aula. Se existem alunos incomodando, se tem alunos fazendo bagunça, isso é discutido na assembleia e vai melhorando a atuação deles, mas isso é uma consequência. O mais importante é instaurar o diálogo, essa é a chave; sem o diálogo, caímos na violência, tanto por parte do professor que se utiliza de métodos violentos, no sentido simbólico muitas vezes, como por parte dos próprios alunos que podem começar a agredir uns aos outros. Com a assembleia democratizamos mais as relações e diminuímos os conflitos em sala de aula.

CR: Qual é o terceiro tipo de assembleia?

Ulisses: São as assembleias docentes nas quais todos os meses se reúnem professores e direção da escola. Geralmente, como se está lidando com adultos, eles não se limitam ao tema do convívio, vão falar de temas mais amplos e geralmente a direção das escolas não gostam disso. Por isso duram alguns meses e as iniciativas morrem. Isso vi na minha experiência. São poucas as escolas que levam isso a cabo.

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CR: Existem experiências em que assembleias discutam para além das questões de convívio?

Ulisses: No Brasil existem várias experiências que geralmente seguem o modelo da Escola da Ponte, que passou a ser referência e no livro eu cito algumas outras que vêm atuando nessa direção, em que os alunos debatem também sobre os conteúdos. Nos projetos que eu desenvolvo, isso só pode acontecer se não fere a legislação. Se são atividades extracurriculares, tudo bem, mas aquilo que envolve o currículo mínimo não cabe ao aluno discutir se ele vai ou não ter, na minha opinião. Onde a gente chega próximo a isso são com os fóruns.

Estes são o quarto tipo de assembleia, que desenvolvi mais recentemente. Por trás dos fóruns escolares existe a relação escola-comunidade, e há uma relação com a escola em tempo integral também. A minha proposta original é que as escolas façam o fórum a cada bimestre, mas é difícil, geralmente não conseguem. Então, uma vez por semestre, a escola organiza o fórum, convida todos os atores da comunidade, junto com representantes, pede aos alunos que organizem também esse evento que tem o papel de definir um tema que vai pautar os projetos da escola durante o semestre seguinte. É uma forma de aproximar as famílias que não seja ir lá ouvir falar mal dos filhos, ou seja, envolver a família de forma sistematizada no projeto pedagógico da escola. No MEC, a gente implementou isso nos 27 estados brasileiros, e há várias experiências publicadas.

Um dos temas escolhidos em uma dessas experiências, que está no livro, é a questão ambiental. Usamos muito essa ideia de trilha, em que os professores levam os alunos para conhecer o entorno com o olhar específico da questão ambiental e depois, em grupos menores, se estabelecem estratégias de como atuar no entorno. Mas o tema pode mudar a cada semestre de acordo com os interesses da comunidade. 

Os alunos começam a trabalhar tudo isso dentro do currículo da escola por meio dos conceitos de transversalidade e interdisciplinaridade. Vários projetos foram desenvolvidos nas escolas a partir dos fóruns, permitindo a comunidade a se envolver com a escola.

Em outro exemplo, uma escola dividia o muro com um posto de saúde e depois de um fórum conseguiram se aproximar para tratar as mesmas questões de forma conjunta, já que as famílias que frequentavam os dois lugares eram as mesmas. Assim, os fóruns permitem trabalhar projetos que envolvem uma concepção de educação integral.

CR: Quais são os resultados, os frutos de trabalhar dessa forma? Qual o balanço que se faz desse processo?

Ulisses: No livro eu trago dois tipos de dados concretos. Primeiro, a fala das pessoas. Um dado que não é estatisticamente confiável, mas há falas de diversos professores e alunos sobre os resultados das assembleias. Trago também os dados de uma pesquisa onde mostro que os alunos que participam desses processos buscam soluções mais dialógicas para os conflitos em sala de aula.

Fiz estudos comparativos entre três tipos de escola: uma que trabalha com assembleias, uma pública e uma privada que não trabalham com assembleias. A gente apresentou conflitos para os alunos solucionarem e a resolução dialógica é muito maior em escolas que trabalham com assembleia que em escolas que não, nas quais existiu uma tendência a apontar uma solução mais violenta e agressiva. Isso são dados concretos.

CR: Em relação aos docentes e direção da escola?

Ulisses: Normalmente é onde estão as maiores resistências, mas, em muitos casos, se não fosse o papel do diretor de encampar o projeto, a coisa não teria ido para frente. Quando é assim o processo ocorre e os professores vão aos poucos entrando no esquema e vão aprendendo e vendo os resultados coletivos. Nas escolas públicas, numa rede como a de Porto Feliz, a realização de assembleias era uma indicação, não era obrigatório. A gente começou o ano com 50 professores, dos quais 20 terminaram fazendo assembleias. A direção não pode impor, nas escolas públicas, a assembleia sem antes fazer um trabalho de convencimento.

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