publicado dia 04/05/2022
Disque 100: Educação não é denúncia, é direito
Reportagem: Da Redação
publicado dia 04/05/2022
Reportagem: Da Redação
Por Associação Cidade Escola Aprendiz e Centro de Referências em Educação Integral.
A propaganda do Governo Federal veiculada repetidas vezes na televisão aberta nos últimos dias chamou a atenção ao divulgar o programa “Disque 100: Brasil na escola“. Num primeiro olhar, ela pode parecer razoável aos desatentos e bem intencionados. Afinal, mostrar um trabalho que tenha uma preocupação com crianças que estão fora da escola ou em risco de evasão é, indubitavelmente legítimo, urgente e necessário, considerando o crescimento da exclusão escolar em função da atual crise educacional no Brasil.
Ainda que o Disque 100 seja uma ferramenta importante do Sistema de Garantia dos Direitos das Crianças e Adolescentes (SGDCA), o problema neste caso é que a solução encontrada pelo governo, no formato proposto, tem poucas chances de sucesso. A forma pela qual a iniciativa é apresentada revela desconhecimento e despreparo em relação às políticas públicas direcionadas ao enfrentamento da exclusão escolar. Ou, então, revela uma intenção meramente publicitária.
Divulgar um número de telefone para que casos de crianças e adolescentes sejam “denunciados” não apenas não resolverá as situações a que estão expostas, como poderá piorá-las. Denúncias ao disque 100 podem ser anônimas e servem para proteger de violências. Quando se reportam crianças e adolescentes fora da escola a partir desta lógica, esses sujeitos e suas famílias correm o risco de serem criminalizados em vez de protegidos.
É fundamental compreender que a existência de uma criança ou um adolescente que está fora da escola envolve uma complexidade de fatores multidimensionais, que vão desde a precarização das condições econômicas das famílias brasileiras agravadas nos últimos anos até a negligência do próprio Estado em oferecer as condições adequadas ao acesso e à permanência escolar de estudantes cujas famílias sequer podem custear materiais escolares, uniformes e calçados por conta própria. Somam-se a isso dificuldades relacionadas ao transporte até à escola, ausência de vagas nas redes escolares, o crescimento do trabalho infantil e da insegurança alimentar, questões de saúde e deficiências não atendidas adequadamente, violências intraescolares, familiares e territoriais, dentre outras motivações específicas a cada realidade territorial ou regional.
No site do governo federal encontra-se o detalhamento de como as demandas serão tratadas: “As notificações recebidas serão encaminhadas ao Conselho Tutelar da localidade para a busca ativa e o acompanhamento de cada situação. O MEC também, em parceria com as secretarias estaduais, municipais e o Distrito Federal, acompanhará os registros, realizando o monitoramento para apoiar ações que possam garantir o direito à educação.” Neste caso, é importante ressaltar que é função do Conselho Tutelar atuar na garantia dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes e sua proteção social, porém sua capacidade de atuação em todo o país é, reconhecidamente, limitada pelas estruturas e capacidades disponíveis, seja em relação ao tamanho das equipes quanto às condições de trabalho. E, infelizmente, existe uma cultura largamente difundida entre a população Brasil afora que compreende equivocadamente o papel do Conselho Tutelar como instituição fiscalizadora e punitiva, fato que apenas será fortalecido por uma política que gera “denúncias” sobre crianças, adolescentes e responsáveis.
A partir de muitos anos dedicados a projetos e políticas públicas endereçadas ao enfrentamento da exclusão escolar, podemos afirmar que o caminho necessário para resultados realmente eficazes nesta direção precisam passar pelo envolvimento de toda a rede de proteção social, incluindo redes escolares, sistemas de assistência social e saúde, conselhos tutelares, Ministério Público, dentre outras instituições, numa atuação integrada e coordenada pela garantia do direito à educação e demais direitos fundamentais das crianças e suas famílias, numa perspectiva protetiva e preventiva, por meio de ações de busca ativa e articulação intersetorial cuja abordagem seja cuidadosa e identifique as demandas sociais de cada caso localizado para a procura de soluções.
Importante salientar que, em meio a esse cenário de agravamento das condições de vida das famílias e de fragilização dos vínculos dos estudantes com a escola, o governo federal encerrou 2020 com o menor orçamento e a menor execução orçamentária da década para a Educação Básica. Soma-se à falta de investimentos, a completa ausência de coordenação e orientação ao trabalho das redes e escolas pelo MEC na implementação de políticas educacionais adequadas ao contexto gerado pela pandemia e as constantes investidas de agendas que ameaçam o direito à educação ou desqualificam seu significado, como a militarização das escolas, os movimentos ligados ao Escola Sem Partido e a educação domiciliar.
Nesse sentido, é preciso perguntar: o governo planeja ampliar o número de conselhos tutelares e conselheiros? Aumentar seus orçamentos? Direcionar mais recursos para programas sociais, fortalecer CRAS, CREAS, equipar melhor as escolas e valorizar os profissionais de educação? Criar equipes próprias e estratégias permanentes para a realização da busca ativa? Ou trata-se meramente de um canal de telefone que não possuirá qualquer relação com os desafios reais enfrentados pelas políticas sociais em nosso país?
Esperamos que a execução deste programa governamental possa criar as condições adequadas para que, em vez de apenas jogar toda a responsabilidade sobre os conselhos tutelares já assoberbados de trabalho e demandas, uma concertação mais ampla seja orquestrada em prol do direito à educação, corresponsabilizando todos os atores envolvidos, sem os quais as crianças e adolescentes fora da escola permanecerão com seus direitos violados e nossa sociedade mais enfraquecida em sua vivência democrática e cidadã.
Baixe a nota do Centro de Referências em Educação Integral “Educação não é denúncia, é direito“.