publicado dia 11/05/2018
Desvendando o Relatório do PL Escola sem Partido
Reportagem: Da Redação
publicado dia 11/05/2018
Reportagem: Da Redação
Por Salomão Ximenes*
Foi divulgado (dia 8/5) o Relatório Substitutivo ao PL 7.180/2014, da Comissão Especial denominada Escola sem Partido. O relator, Deputado Flavinho (PSC/SP, membro da bancada evangélica), aglutina 8 proposições legislativas.
Salomão Ximenes é educador e professor adjunto do bacharelado em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC). Texto publicado originalmente no Blog do Salomão Ximenes.
Não é banal, entretanto, que o PL principal proponha uma alteração pontual mas de grande significado na LDB, “pretende incluir entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”.
Leia + Especialistas desconstroem os 5 principais argumentos do Escola sem Partido
1. A impressão geral é que o Relatório busca distanciar-se da abordagem tosca e ultradireitista dos capitães reacionários, em favor de uma justificação conservadora tradicional sobre o sentido da educação escolar. Nesse movimento, dissimula uma retórica pretensamente democrática e pluralista;
2. A maior parte do relatório é dedicada a justificar o conteúdo e a necessidade de afixação de cartazes nas escolas com os “Seis Deveres do Professor”, propostos originalmente no PL 867/2015 (apensado), o projeto modelo do “Escola sem Partido”. Nessa justificativa o tom geral é “que não são normas inéditas a serem inseridas no ordenamento jurídico brasileiro, mas meras consubstanciações contextuais de princípios presentes na Constituição da República Federativa do Brasil. (…) Nenhum dever ou encargo a mais é posto sobre o professor que já não lhe compete; e nenhum novo direito é concedido ao aluno que já não o tenha”. Isso não é verdade em sentido jurídico, também não é verdade em sentido simbólico;
3. Juridicamente, os tais “Deveres” querem alterar o estatuto negativo de obrigações do magistério, com o agravante de incorporar obrigações de abstenção vagas e indeterminadas, como o dever de respeitar “o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Isso tem a ver com o que analisaremos adiante, no item 6;
4. Simbolicamente, os tais “Deveres” encampam a tese e o pressuposto da “doutrinação” generalizada como prática docente no Brasil, com isso atacam e deslegitimam o campo de autonomia profissional do magistério e o papel das secretarias de educação e das escolas na regulação do trabalho docente desde uma perspectiva político-pedagógica e funcional, com base nos estatutos profissionais do magistério. Nessa concepção, a inovação legal é retratar o professor como agente típico de violação moral, um antiprofissional militante que precisa ser controlado, urgentemente e a priori por um manual de abstenção de condutas;
5. Há, entretanto, um sentido estratégico em se jogar o foco no cartaz sobre os “Deveres do Professor”. Minha hipótese é que essa proposição de cartaz é um embuste para desviar a atenção do que é central ao propósito conservador, que não se esgota, nem de perto, na agenda imediata dos reacionários raivosos e oportunistas;
6. Desde o ponto de vista conservador, a proposição mais importante é a inclusão de um novo princípio do ensino no art. 3º da LDB, o princípio da precedência dos valores de ordem familiar “nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”. Não à toa essa é a proposição legislativa que encabeça todas as demais. No texto “O que o Direito à Educação tem a dizer sobre ‘Escola sem Partido’?”, publicado no livro “A Ideologia do Movimento Escola sem Partido – 20 autores desmontam o discuso” (Ação Educativa), detalho o significado dessa proposta na reconfiguração do direito à educação. Em resumo, tal proposição, aparentemente singela, objetiva retroceder mais de dois séculos de construção de uma educação pública laica e republicana, ao se propor a recolonização da escola por valores familiares privados e a interdição do ensino sobre campos de conhecimento consolidados na literatura científica. Retira da própria LDB, uma lei sobre o Ensino (art. 1º), o poder de regular uma parte significativa deste mesmo ensino, em favor da precedência da educação familiar, tecnicamente, da chamada “educação informal” sobre a “educação formal”. Esse é o núcleo da proposição, em termos de filosofia educacional conservadora, com profundas raízes institucionais, bem resumida na ideia “Professor não é educador”;
7. Essa visão conservadora sobre o papel da educação escolar serve de fundamento ao propósito mais imediato do Escola sem Partido, a censura sobre os estudos de gênero e orientação sexual nas escolas, assim inscrita: “A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, nem mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo “gênero” ou “orientação sexual.”;
8. Nesse ponto, não há como deixar de notar a contradição central do Relatório do PL Escola sem Partido e o caráter de pura dissimulação da retórica pretensamente democrática, pluralista e civilizada. Na justificativa de um dos tais “Deveres do Professor” vamos encontrar o seguinte:
“Portanto, é claro que é possível agir com o máximo de neutralidade em muitos contextos. E naqueles contextos mais controversos, em que a imparcialidade é realmente difícil, espera-se de um profissional ético e qualificado que, no mínimo, forneça aos alunos uma perspectiva plural. (…)
O que se espera de um docente competente é que as principais, não todas, teorias que possuem reconhecimento acadêmico e científico sobre o tópico sejam postas, na medida do possível, à disposição dos discentes, e que as mais importantes vertentes teóricas, inclusive antagônicas entre si, sejam tratadas de modo justo, em benefício do aluno. Todo bom professor conhece, presume-se, as principais correntes de pensamento sobre os tópicos mais controversos de sua disciplina. Não é possível construir uma sociedade justa com professores que são injustos no tratamento dado aos temas importantes do conhecimento. Faz-se, portanto, necessário apresentar a multiplicidade e complexidade de posicionamentos teóricos. Isto é o que promove o raciocínio crítico dos alunos, não a apresentação apaixonada de apenas um dos lados do debate. Todo alarde contra a possibilidade de o professor assumir uma postura ideologicamente neutra é apenas um subterfúgio relativista filosófico radical para ocultar o ponto central do projeto, o de que o professor não usará o tempo da aula para fazer propaganda partidária ou religiosa.”;
9. Parece civilizado, não? Mas o ponto é que a civilização acaba onde começam os propósitos conservadores e religiosos hegemônicos, nomeadamente, a dominação sexual com base nos esteriótipos de gênero. Aqui, a controvérsia científica é deslegitimada ao ponto de se pretender reduzir o pensamento de Michael Foucault, um dos pilares da ciência contemporânea, ao subsolo que fertiliza o próprio “Escola sem Partido”. Sai de cena a versão conservadora “paz e amor” que ocupa e dissimula a maior parte do Relatório, em favor da censura, do porrete, do discurso de ódio e do raciocínio primitivo:
“Aqui faz-se necessário tratar de uma das facetas mais tacanhas com a qual pode se materializar a doutrinação, que é a chamada “Ideologia de Gênero”, que alguns desejam implantar nas escolas. Trata-se de uma concepção extremamente controversa, defendida por uma minoria de intelectuais e ativistas políticos, como Simone de Beauvoir, Michael Foucault, Judith Butler e Shulamith Firestone, segundo a qual o “gênero” é um construto social dinâmico e suscetível de mudanças, não uma imposição biológica. (…)
A partir dessa distinção, altamente questionável em termos filosóficos e científicos, procura-se impor às crianças e adolescentes uma educação sexual que visa a desconstruir a heteronormatividade e o conceito de família tradicional em prol do pluralismo e diversidade de gênero. Mas aqui cabe ao legislador ponderar se é realmente necessária tal mudança, e até que ponto podemos confiar em seus frutos. Não há qualquer precedente civilizatório na história humana que demonstre que uma sociedade sexualmente plural seja realmente sustentável a longo prazo. Trata-se de uma concepção meramente “teórica”, pensada “de fora” como um ideal a ser imposto na sociedade, sem precedentes empíricos inquestionáveis. O que sabemos por experiência concreta é que uma cultura heteronormativa foi imprescindível à perpetuação da espécie humana e ao desenvolvimento da Civilização Ocidental. À despeito de quão avançada esteja a legislação de alguns países, no tocante a ideologia de gênero, não há base suficiente para sublimar a experiência milenar do Ocidente em prol destes parcos experimentos sociais contemporâneos de resultados ainda questionáveis.
(…) Ou seja: “macho” e “fêmea” – categorias biológicas – equivalem a “homem” e “mulher” – categorias genéricas. Contudo, reconhece-se que esta temática é muito complexa e envolve profundas reflexões em diversas áreas, tais como teologia, ciências da religião, história, sociologia, filosofia, antropologia, psicologia, moral, direito, biologia e genética. Não é, de modo algum, um ponto pacífico. E, portanto, não deve ser objeto de legislação.
(…) Ideologia de gênero é uma questão essencialmente política. Parte de uma revolução cultural baseada, entre outras coisas, no desconstrucionismo filosófico e no relativismo moral, concepções extremamente debatidas e criticáveis no âmbito acadêmico. Não é superior a nenhuma vertente filosófica alternativa. Logo, não deve gozar de status legal.”;
10. Para o propósito de reprodução da “heteronormatividade”, uma realidade social e um dogma religioso pretensamente hegemônico e certamente dominante na Comissão Especial do PL “Escola sem Partido”, a complexidade e a reflexão necessárias, a controvérsia científica com base em destacados(as) autores(as) e pesquisadores(as), não deve alimentar o pluralismo, a crítica social, o debate em sala de aula, a “neutralidade”, a “apresentação de todas as posições” etc, mas unicamente a mais burra censura, esta sim, devendo “gozar de status legal”.