publicado dia 08/08/2016

Educação Física é espaço fértil para trabalhar relações de gênero

Reportagem:

Etiqueta Olimpíadas_final 2Meninos de um lado, meninas de outro. Eles jogando futebol. Elas, vôlei. Menino que não gosta de futebol é alvo de piadinha. Meninas que adoram bater uma bola, idem.

O enredo soa familiar para muitas pessoas quando o assunto é Educação Física na escola e revela como as relações existentes dentro do processo de aprendizagem podem reforçar os estereótipos e as desigualdades entre homens e mulheres existentes na sociedade. Por outro lado, problematizar e romper com essas práticas abre a possibilidade de desconstruir essas concepções e convenções que perpetuam as desigualdades.

Uma dessas convenções mais simbólicas é a separação de meninos e meninas. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional não há recomendação de separação. Já os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) preconizam as aulas mistas, vistas como uma oportunidade para que meninos e meninas convivam, observem-se, descubram-se e possam compreender e respeitar as diferenças.?

De acordo com Daniela Auad, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a ideia de que meninos e meninas devem estar necessariamente em espaços diferentes é um resquício do passado. “A escola foi inicialmente pensada apenas para os homens. Depois, quando as mulheres começaram a frequentar, se separava por completo. Na Educação Física há um último resquício dessa tradição”, contextualiza.

A docente também acredita que, para determinados conteúdos, a divisão até pode fazer sentido. Mas não deve ser vista como algo “natural”, nem feita de forma sistemática, eliminando a possibilidade de realizar brincadeiras, jogos e atividades físicas que promovam a convivência entre todos e todas.

Para Luciano Corsino, doutorando em Educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador do Flores Raras: Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Comunicação e Feminismos (UFJF) e coautor, junto com Daniela Auad, do livro O professor diante das relações de gênero na Educação Física escolar, a separação é apenas uma das práticas que podem reforçar a cultura machista e patriarcal dentro da escola. Para o professor, ao não fazer meninos e meninas compartilharem a mesma aula, perde-se “a possibilidade de construir uma educação coeducativa, aquela que ensina o reconhecimento das diferenças”.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Luciano Corsino ao Centro de Referências em Educação Integral:

CR: Ultimamente, tem se discutido bastante a importância de a escola pautar questões de gênero, tendo como um dos objetivos problematizar e combater as desigualdades entre meninos e meninas. Como essas desigualdades aparecem em uma aula de Educação Física?

Luciano Corsino: Elas ocorrem de variadas formas e aparecem por meio de relações de poder que permeiam todas as ações cotidianas, seja entre educadores/as e crianças ou entre as próprias crianças. Algumas são mais perceptíveis do que outras, principalmente por meio de agressões físicas e exclusão das atividades que ocorrem durante as aulas que exigem vivências corporais mais intensas.

Em relação às que não são facilmente percebidas, me apropriei de um conceito elaborado pela pesquisadora Eliane Cavalleiro: “aprendizagem do silenciamento”. Ela ocorre quando os/as estudantes passam a acreditar e agir segundo determinados padrões de gênero que são disseminados por meio de práticas discursivas como: “lugar de menina não é jogando futebol, é lavando louça”, “esse moleque não joga no nosso time, parece uma menina” ou até mesmo quando um/a professor/a comenta “essas meninas são cheias de frescura, não querem fazer nada”.

Além disso, é importante atentarmos ao fato de que as desigualdades aparecem de variadas formas, inclusive, por meio de conexões entre as categorias de opressão, ou seja, se prestarmos atenção, verificaremos que, por vezes, as desigualdades de gênero ocorrem em intersecção com opressões de caráter racial, de geração, de classe e assim por diante.

brincadeira educacao fisica

Atividades mistas podem auxiliar crianças a compreenderem e respeitarem as diferenças. Crédito:  Rawpixel.com/Shutterstock

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CR: Quais são algumas das práticas, ainda comuns em aulas de Educação Física, que reforçam a cultura machista?

LC: No meu livro, elenquei três principais práticas. A primeira delas são as formas de organização das aulas, ou seja, na maioria das vezes, o educador separa meninos e meninas e isso constrói aquilo que eu chamei de “aprendizagem da separação”. Os/as estudantes podem até se apropriar do conteúdo, mas também aprendem que meninos e meninas não podem praticar atividades de forma conjunta. Perde-se, portanto, a possibilidade de construir uma educação coeducativa, aquela que ensina o reconhecimento das diferenças.

Além disso, ao separar, muitos/as educadores/as dividem o tempo na metade, ou seja, uma aula que seria de 40 ou 45 minutos acaba sendo de 20 ou 25 minutos e, algumas vezes, são trabalhados conteúdos diferentes para meninos e meninas. Estamos falando de um direito garantido pela LDB, que é participar da aula em sua totalidade.

aspasAlguns dos estereótipos e preconceitos se fundam na falsa e absurda crença de que determinadas atividades corporais podem influenciar na orientação sexual, explica Luciano.

A segunda está relacionada aos conteúdos. A Educação Física abrange temas da Cultural Corporal, que é formada por jogo, brincadeira, luta/capoeira, dança, esporte e ginástica. São diversas possibilidades e cada um dos temas é composto por uma gama de atividades que, ao serem planejadas e oferecidas de modo diversificado, podem potencializar, por exemplo, as habilidades vistas – de forma equivocada – como essencialmente femininas, assim como proporcionar tais experiências aos meninos que, muitas vezes, são desencorajados a praticá-las, devido à absurda, mas ainda muito comum, representação de que determinadas atividades corporais podem influenciar a orientação sexual. Basta percebermos que, muitas vezes, mulheres que jogam futebol são chamadas de “maria macho”, tanto na escola quanto no meio profissional.

CR: Essas falas seriam outra forma de perpetuar esses estereótipos e o preconceito?

LC: Sim, o terceiro ponto diz respeito a essas práticas discursivas. Falas, comentários, e piadas feitas tanto pelos/as estudantes como pelos/as educadores/as, que produzem e reproduzem representações preconceituosas e inverídicas e acabam se tornando verdades de tanto serem repetidas. Afirmações do tipo: “as meninas só atrapalham ao invés de jogar”, “aquele menino não sabe nem chutar, parece uma biba”. Essas falas, quando não problematizadas pelos/as educadores/as, constroem identidades inferiorizadas e submissas.

CR: Em relação à separação, isso tem mudado?

LC: Sim, percebo que temos uma nova geração de professores/as de Educação Física que tem buscado lançar um olhar mais específico sobre essa questão. As relações de gênero influenciam as aulas de Educação Física constantemente, mesmo que isso não seja um aspecto que você queira problematizar. Eu diria que não há como não trabalhar questões de gênero durante as aulas de Educação Física, a pergunta é: ou você está trabalhando para o reconhecimento das diferenças por meio de um olhar específico para esta questão ou está trabalhando pela manutenção e construção das desigualdades, inclusive quando se deseja atuar de forma neutra, não há como fugir.

aspasNão há como não trabalhar questões de gênero durante as aulas de Educação Física, a pergunta é: ou você está trabalhando para o reconhecimento das diferenças por meio de um olhar específico para esta questão ou está trabalhando pela manutenção e construção das desigualdades, inclusive quando se deseja atuar de forma neutra, não há como fugir”.

Um dos pontos que eu tenho observado, é que mesmo sabendo da necessidade de misturar meninas e meninos durante as aulas, muitos/as educadores/as não têm adotado esta postura por não saber como lidar com os inúmeros conflitos que surgem. Os meninos, na maioria das vezes, já estão acostumados com o domínio da maior parte dos espaços da quadra e, quando os/as educadores/as propõem atividades que requerem maior equilíbrio na ocupação destes espaços e maior interação com as meninas, engendram-se múltiplos conflitos e os/as educadores/as acabam separando novamente.

CR: Juntar meninos e meninas basta? Como a escola/docente deve trabalhar de modo que realmente essa junção se traduza em uma prática de desconstrução das desigualdades?

LC: Como eu falei, o fato de apenas misturar meninos e meninas, muitas vezes, leva a inúmeros conflitos e os educadores/as acabam separando novamente. Durante o mestrado, eu trabalhei com o conceito de mixité, conceito elaborado pela pesquisadora francesa Claude Zaidman. Trata-se da necessidade de se pensar e proporcionar as misturas não apenas pelas misturas, ou seja, ela é uma estratégia necessária para que possamos atingir a coeducação, mas não a única. Não existe coeducação em misturas conflituosas, precisamos trabalhar para uma Educação Física escolar coeducativa e reconhecer que os conflitos existem e devem ser problematizados.

Muitos educadores/as separam meninos e meninas para evitar o surgimento desses conflitos, mas isso não é o suficiente, pois trata-se de uma falsa sensação de igualdade. Para a desconstrução desses padrões de gênero hierarquizantes, é importante que este tema seja problematizado, debatido durante as aulas, é necessário que os educadores/as trabalhem com atividades que reconheçam a importância das mulheres para as manifestações da Cultura Corporal.

CR: Como a Educação Física? pode contribuir para problematizar essas desigualdades? Qual o seu potencial específico?

LC: A Educação Física tem um potencial muito grande, as relações de gênero são exaltadas devido à questão corporal. Joan Scott nos ensinou que o corpo é um aspecto primário na significação das relações de poder, principalmente quando nos referimos às relações de gênero. Partindo daí, é possível dizer que é papel da Educação Física proporcionar reflexão sobre os processos pelos quais homens e mulheres foram submetidos ao longo da história das manifestações da Cultura Corporal.

Refletir sobre a participação das mulheres nos esportes. Trabalhar com grandes atletas como a Marta no Futebol, Serena Williams no Tênis, Maurren Maggi no Atletismo e outras tantas, é tido como um processo de reconhecimento da importância da mulher no cenário das manifestações da Cultura Corporal.

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Aulas mistas permite o reconhecimento das diferenças e criação de uma cultura de respeito entre meninos e meninas.

Além disso, é necessário que o/a educador/a lance um olhar sobre as relações de gênero em todos os momentos de suas aulas, com intervenções precisas em discussões dos/as estudantes que reforçam padrões de gênero hierarquizados. A historicização dos conteúdos é crucial para a desconstrução das representações equivocadas, ou seja, mostrar que até pouco tempo as mulheres não podiam praticar esportes, questionar o porquê, levantar aspectos relacionados à falta de reconhecimento das mulheres nos esportes.

Qual é o salário de um jogador e de uma jogadora de futebol que foram considerados/as os/as melhores do mundo várias vezes, como o Messi e a Marta? Por que é tão diferente? É justo? Enfim, são diversas as possibilidades de problematização durante as aulas de Educação Física, mas é preciso que o/a educador/a esteja preparado, pesquise sobre o tema, pois são pouco ou nada abordados, inclusive, em grande parte dos cursos de formação.

CR: Você poderia me citar alguns exemplos de atividades feitas em aulas de Educação Física que caminham nesse sentido de desconstruir as desigualdades e a cultura machista?

LC: Todas as atividades desenvolvidas nas aulas de Educação Física podem contribuir para a desconstrução das hierarquizações de gênero, é claro que há algumas que são mais problemáticas, como os esportes tradicionais, principalmente o futebol, que ainda é um esporte visto como masculino. Por outro lado, atividades que são menos abordadas como o badminton, alguns tipos de dança, ginástica, luta são exemplos de práticas que por si só colocam em evidência a questão de gênero, pois geralmente, cabe ao educador/a problematizar e mostrar que a luta também é coisa de menina, por exemplo. Partir da bagagem de conhecimento dos/as estudantes também é muito importante, pois em algumas turmas há meninas que lutam, meninos que dançam e assim por diante, trata-se de uma possibilidade de valorizar aquilo que estes/as estudantes/as possuem de experiência sobre as manifestações da Cultura Corporal.

Outro aspecto importante é perceber as formas de resistência durante as aulas, as hierarquizações de gênero nem sempre ocorrem de forma linear. Muitas vezes, é possível perceber diversas transgressões – para tomar emprestado o termo trabalhado pela pesquisadora feminista bell hooks. Essas transgressões ocorrem como forma de resistência aos padrões estabelecidos e muitas vezes são vistas como indisciplina.

Posso citar um exemplo: durante uma observação em de uma aula de Educação Física em uma turma de 8º ano, uma menina se recusou a sair da quadra, pois o professor havia dividido o tempo na metade, tal atitude foi vista como indisciplina e o professor a encaminhou para a diretoria para adverti-la. Ao conversar com a menina, ela disse que não saiu da quadra porque os meninos sempre tinham mais tempo de aula do que elas e que ela gostava de jogar futebol, mas o professor obrigava as meninas a jogar vôlei e o futebol ficava para os meninos. Nesse caso, o professor perdeu a oportunidade de problematizar esta questão, debater sobre a possibilidade de as meninas jogarem futebol juntamente com os meninos, ou seja, as resistências vão aparecendo como possibilidades de problematização, mas muitas vezes são ignoradas, pois ainda falta um olhar mais aprofundado para perceber que se trata de um conflito de gênero e não apenas um ato indisciplinado.

Marta, a maior jogadora de futebol de todos os tempos. Mostrar atletas mulheres bem sucedidas auxilia no combate aos preconceitos.

Marta, a maior jogadora de futebol de todos os tempos. Mostrar atletas mulheres bem sucedidas auxilia no combate aos preconceitos.

CR: Como você avalia o tema da formação dos professores/as de Educação Física em relação a esse tema?

LC: A formação dos professores e professoras ainda não abrange a questão de gênero de forma satisfatória, nem na graduação, nem na formação continuada. Na graduação, dificilmente encontramos disciplinas obrigatórias especificas sobre Educação Física e relações de gênero, quando encontramos, elas são oferecidas como disciplinas eletivas. O que ocorre é que muitos/as professores/as acabam abordando estas questões em suas disciplinas de modo transversal, o que não é suficiente, pois estamos falando de um tema central para as aulas de Educação Física.

A abordagem do tema ainda fica à critério de cada professor/a, de sua boa vontade. Na formação continuada, tal fato se repete, as redes de ensino – as que oferecem formação – raramente abordam as questões de gênero e, quando o fazem, geralmente são cursos não obrigatórios oferecidos no contra turno, para educadores/as que acumulam cargos e sequer conseguem participar destes cursos. Temos um longo caminho à percorrer.

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