publicado dia 23/05/2016
Crise da merenda, em São Paulo, abre debate sobre alimentação nas escolas
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 23/05/2016
Reportagem: Ana Luiza Basílio
Merendas escassas, alimentos processados, refeições intragáveis ou ausência de comida. A realidade em boa parte das escolas públicas brasileiras, quando o tema é merenda, anda na contramão dos processos que preveem autonomia e a manutenção de hábitos saudáveis.
Saiba + Alimentação escolar é parte do processo de aprendizagem
Os problemas vinculados à merenda escolar ganharam destaque na luta dos estudantes desde o início do ano. O tema está inserido nas pautas de ocupações de escolas em vários estados do país, como Paraná, que teve a primeira unidade escolar ocupada no último dia 18 de maio; Ceará, em que já são 49 escolas ocupadas; e Rio de Janeiro, em que as ocupações chegam a quase 70 unidades.
Em São Paulo, o movimento secundarista – que no fim do ano passado se mobilizou contra a reorganização escolar – apoiou o movimento dos estudantes das Escolas Técnicas Estaduais (Etecs); além das ocupações do prédio administrativo do Centro Paula Souza e da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), outras 14 unidades foram tomadas como forma de reivindicar por alimentação adequada.
Mesmo com a reintegração de posse de algumas unidades, como a do Centro Paula Souza, no último dia 6 de maio, em uma ação do Batalhão de Choque da Polícia Militar, os estudantes continuam mobilizados. Uma das conquistas foi a instauração da CPI da Merenda, para apurar os desvios de verba destinada à compra de alimentos para as escolas estaduais paulistas.
Os estudantes também mantém, desde meados de 2015, a página Diário da Merenda, na qual fazem registros fotográficos dos alimentos servidos. Muitas vezes, são apenas merendas secas – como bolachas água e sal – no lugar de refeições completas. Na última quinta (19/05) a reclamação dos estudantes ganhou o apoio do crítico gastronômico Jota Bê que durante uma semana experimentou as merendas escolares da rede estadual de São Paulo. A experiência foi registrada pela Revista Trip (ver vídeo abaixo):
Uma questão de direito
Pela resolução 26 de 17 de junho de 2013, do FNDE (que dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da Educação Básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar – Pnae), as unidades escolares que atuam em período integral devem atender, no mínimo, 70% das necessidades nutricionais diárias, distribuídas em pelo menos três refeições.
O documento também traz diretrizes para uma alimentação saudável e como o cardápio deve ser constituído, obedecendo a um equilíbrio nutricional. Segundo a publicação, ainda deve-se considerar a cultura e os hábitos alimentares locais, além da vocação agrícola da região.
O Centro de Referências em Educação Integral procurou a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e o Centro Paula Souza, instituição que administra Escolas Técnicas Estaduais e Faculdades de Tecnologia (Fatecs), para questionar a situação das merendas. Ambos se pronunciaram por meio de notas, reproduzidas em trechos abaixo:
Durante a apuração, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo também justificou que as merendas não manipuladas (merendas secas) são utilizadas somente quando há uma situação emergencial, como casos em que escolas passem por alguma reforma que impeça o uso da cozinha, por exemplo.
Não é o que conta uma das estudantes* da Escola Estadual Maria José, localizada na região da Bela Vista, centro da capital – unidade onde não há reformas. A jovem estuda no período da manhã (7h às 12h20) e relata que a merenda seca aparece várias vezes na semana e que os estudantes têm que escolher entre quatro bolachas de água e sal ou uma barra de cereal. Segundo ela, a alimentação completa só é oferecida em dois dias na semana, e ainda garantiu que no período noturno só existe a opção seca.
Outro estudante* da Escola Estadual Professora Etelvina de Góes Marcucci também não nutre uma boa relação com a comida servida pela escola, segundo ele, enlatada. “Eu nem como, [é] tudo cheio de conservante”, declarou.
Nas ETECs a situação não parece ser muito diferente. Um pai* de uma estudante da Etec Guaracy Silveira conversou com a reportagem e afirmou que a unidade, sem refeitório, não servia nenhum tipo de alimentação, situação especialmente delicada para os que cursam o período integrado. Ele também colocou que após a reintegração do Centro Paula Souza, o governador teria prometido marmita aos estudantes, mas o que chegou na unidade, no dia 9 de maio, foi apenas merenda seca.
Imagens e legendas extraídas da página Diário da Merenda.
A reportagem também entrou em contato com a Prefeitura de São Paulo para repercutir a informação de que 103 escolas da rede teriam ficado sem merenda no início do mês de maio. A diretora da divisão da nutrição escolar da Coordenadoria de Alimentação Escolar (Codae) da prefeitura de São Paulo, Helena Maria Novaretti, explicou que o problema foi localizado na Diretoria Regional de Ensino (DRE) Jaçanã/Tremembé e devido a um rompimento de contrato que a empresa terceirizada, que teria falido.
Na ocasião, até a contratação de uma nova empresa, Helena contou que cada escola fez as adequações que achou necessárias. Segundo a representante, a situação já está normalizada.
Entre as justificativas para os problemas com a merenda escolar, o governo do estado de São Paulo alega o fato da gestão ser tripartite, ou seja, de responsabilidade dos governos federal, estadual e dos municípios. O repasse do governo federal à merenda escolar é feito pelo Programa Nacional de Alimentação (Pnae) em caráter suplementar, como definido no artigo 208, incisos IV e VII, da Constituição Federal.
Isso significa que estados e municípios também têm que reverter parte de seu orçamento para o segmento. Segundo a nutricionista e mestranda em nutrição em saúde pública, Vanessa Manfre, esse valor seria definido em contrapartida, de acordo com o orçamento do ente federado. O valor de repasse do Pnae a estados e municípios toma como base o Censo Escolar realizado no ano anterior ao do atendimento e é definido de acordo com a etapa e modalidade de ensino, conforme tabela a seguir:
Dentro do programa são possíveis alguns modelos de gestão:
– centralizada: os recursos financeiros são enviados diretamente às entidades executoras (EE) que, por sua vez, compram todos os alimentos de acordo com as regras estabelecidas pela legislação pertinente e distribuem para sua rede escolar;
– semi-descentralizada: o recurso – destinado às entidades executoras – pode seguir dois caminhos a) a EE compra e distribui os gêneros alimentícios não perecíveis para todas as escolas de sua rede e repassa parte dos recursos financeiros para as escolas adquirirem os gêneros alimentícios perecíveis; ou b) a EE compra e distribui todos os gêneros alimentícios (perecíveis e não perecíveis) para as escolas localizadas nas zonas rurais, mas repassa o recurso financeiro para que as escolas da zona urbana comprem os gêneros alimentícios;
– terceirizada: o FNDE repassa os recursos financeiros para as EE e elas contratam uma empresa fornecedora de refeições;
– descentralizada: o FNDE repassa os recursos para as EE, que, por sua vez, efetuam a transferência para as escolas da rede beneficiada pelo Pnae. Cada escola efetua a aquisição dos gêneros alimentícios a serem utilizados na preparação do cardápio da alimentação escolar.
Ainda há a possibilidade (prevista no artigo 7º da Lei nº 11.947/2009, que dispõe sobre a alimentação escolar, e no artigo 6º da Resolução do FNDE nº 26/2013) do estado transferir a seus municípios a responsabilidade pelo atendimento aos alunos matriculados nos estabelecimentos estaduais de ensino localizados nas respectivas áreas de jurisdição e, nesse caso, autorizar o repasse de recursos do FNDE referentes a esses estudantes diretamente ao município.
Isso, no entanto, não isenta a Secretaria Estadual de Educação da responsabilidade pela garantia da oferta da alimentação adequada. No site da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo há a informação de que 2613 unidades escolares operam por esse modelo.
O mesmo acontece no Centro Paula Souza, autarquia do governo do estado de São Paulo que administra as Etecs e Fatecs. A instituição afirmou, por meio de nota, que não tem verba prevista em orçamento para merenda e que a responsabilidade é da Secretaria.
A assessoria de comunicação do Centro Paula Souza informou que 100% das Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) oferecem alimentação. “Em 144 delas, quase 70%, já são servidas refeições completas. As unidades construídas nos últimos anos são adaptadas para o armazenamento e preparo de alimentos, mas ainda existem escolas que requerem reformas para passar da oferta de merenda seca para refeição”, alegam.
Tudo indica, entretanto, que os investimentos em reformas necessárias para preparar e servir merendas apropriadas não têm sido feitos. Em reportagem do Estado de S. Paulo, fala-se em queda de investimentos da ordem de 36,3% entre os anos de 2014 e 2015 nessas unidades. Na prática, são R$ 44,1 milhões a menos do que em 2014 e que seriam utilizados em obras, melhoria das instalações e compra de equipamentos e material educativo.
“Para 2016, dez escolas migrarão da merenda seca para a refeição. Até o final de 2018, todas as demais passarão a atender os estudantes com refeições”, promete a assessoria.
Já no Estado do Ceará, um levantamento feito pelo Centro da Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), comparando a Lei Orçamentária Anual do Ceará de 2016 com os dados da execução orçamentária revelou que o governo estadual não tem feito os gastos previstos dos recursos federais. Em nota, a instituição afirma que, por meio do Portal da Transparência do Governo Federal, R$ 3.173.532 milhões já foram transferidos pelo Pnae; no entanto, o gasto total com alimentação para todas as modalidades de ensino foi de R$ 2 milhões, aproximadamente.
*A identidade dos personagens não foi revelada por uma questão de segurança.