publicado dia 21/12/2015

Adolescentes da Fundação Casa lançam suas primeiras obras literárias

Reportagem:

Gabriel enfrentou muito cedo as adversidades. Aos 3 perdeu o pai, José, morto em um acerto de contas dentro de uma penitenciária, para onde havia ido após um assalto, cujo dinheiro iria para a compra de fraldas para filho pequeno. Já adolescente, o menino sofre discriminações ao buscar emprego, necessário para ajudar em casa e também pagar a escola de futebol que poderia aproximá-lo do sonho de se tornar jogador.

No entanto, não foi esse o caminho de Gabriel. Na adolescência, o garoto tem que lidar com decisão dolorosa de sua mãe, Cláudia, e do padrasto, Antônio, de enviá-lo para um orfanato, devido às dificuldades financeiras da família de mantê-lo e ainda prover o sustento do irmão mais novo, prestes a nascer.

Na instituição onde vai morar, Gabriel faz amigos, mas também lida de perto com a violência, além de ter inúmeras chances de “fazer coisa errada”, possibilidade que sempre o faz reviver a história e o desfecho trágico de seu pai. Talvez por isso, mantém-se afastado do crime. Já na fase adulta, ele reencontra sua mãe e, já distante da possibilidade de se tornar jogador de futebol, constitui uma família e tem um filho chamado Brayan, pessoa pela qual ele decide lutar por uma vida melhor.

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Nas entrelinhas

Não dá para saber se Gabriel é somente um personagem fictício ou se revive alguns dos episódios daquele que lhe deu vida. O enredo integra o livro Um jovem que aprendeu através das dificuldades, escrito por Heitor*, 18 anos, que hoje cumpre medida socioeducativa em uma das unidades da Fundação Casa.

Heitor não foi o único a apresentar sua história. Outros 23 garotos, também internos ou ex-internos, lançaram seus livros na última quarta (16/12) na Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, encerrando mais uma etapa do Projeto Primeiro Livro, que tem como objetivo conceder autonomia a estudantes para que eles possam escrever e ilustrar suas primeiras obras literárias.

“Foi muito difícil eu querer escrever um livro. Não me imaginava como escritor e na Fundação Casa isso fica ainda mais complicado. Mas quando eu comecei a escrever, me senti livre, mesmo estando preso. Eu consegui me expressar. Aí comecei a me empenhar e hoje tenho orgulho de falar que esse livro é meu. Quero agradecer a todas as pessoas que me ajudaram, acreditaram e me deram força e peço desculpas às pessoas que magoei. Hoje sou um novo adolescente”.
Bruno*, autor do livro Poeta da Vida, ganhou a liberdade no dia do evento.

Para além das unidades da Vila Maria e Paulista da Fundação Casa, a iniciativa esteve presente este ano em cinco escolas de São Paulo e Alagoas. O trabalho previu oficinas de acompanhamento para realização das obras e a impressão de cerca de 300 exemplares para todos os participantes, ação possível graças ao orçamento de R$ 56 mil alcançado após campanha de financiamento coletivo via Catarse.

Perspectivas de desenvolvimento

Para Luis Junqueira, um dos criadores do projeto, o mais significativo é o percurso trilhado pelos garotos até chegarem aos livros. “Eles partem de uma ideia abstrata e trabalham até que ela vire um objeto físico, o que exige esforço, disciplina, criatividade. É muito significativo ver as famílias desses meninos lendo o livro que eles escreveram”, comentou.

Flora Assumpção, professora de desenho e ilustração do projeto, entende que a autoria é determinante para que os garotos se percebam como sujeitos capazes de construir algo, o que acaba por influenciar no processo de formação identitária deles. Para a presidente da Fundação Casa, Berenice Gianella, também é forte a questão do protagonismo. “Ao fazer o livro, o adolescente não é um sujeito passivo, o que dá a oportunidade para que ele se conheça e se sinta capaz de algo fora do mundo do crime. O jovem ser protagonista de sua vida é entender a sua relação com os espaços, as pessoas e suas escolhas”, colocou.

* Os nomes utilizados na matéria são fictícios.

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